Carol observou as folhas seguintes e entristecida constatou que o material estava danificado, como se houvesse molhado, borrado ou sujado e inclusive estava mofado. Seria impossível fazer a leitura e tradução daquelas paginas seguintes. Aquela história que parecia tão interessante e envolvente, naquele momento ficaria sem um final concreto. Transcrevendo apenas o texto fiel, Carol interrompeu seu trabalho e levando o livro para o sol, tentou no que pode limpar as escritas, mas a leitura realmente era impossível. Muitas das folhas estavam grudadas uma nas outras e o final parecia ser um suspense quando ela conseguiu visualizar algumas das ultimas escritas no verso da penúltima pagina.
Segundo o que ela podia concluir e imaginar, sem nada para realmente comprovar, o redator daquela historia teria sido originário da Europa, provavelmente na Grécia, depois teria ido para o continente Africano, supostamente o Egito e no final, tudo levava a entender que fugira com o filho para alguma localidade da Ásia, talvez China ou Índia. Deve ficar claro que isso é apenas uma suposição, pois como dito, nada comprova essa desconfiança tida através dos estudos das localidades descritas, dos costumes e demais características detalhadamente observadas e meticulosamente investigadas pela leitura.
“Deixarei este livro para meu amado filho, se um dia ele tiver a coragem de lê-lo, entenderá que não tive culpa pela morte de sua mãe e saberá o quanto a amei e que tudo o que fiz foi pela luta de dar-lhe educação, amor e carinho, mesmo recebendo em troca a sua raiva e o seu desprezo. Não o culpo pela angustia e raiva que tem por mim, só espero que realmente ele um dia me perdoe e me chame de pai. Quando isto acontecer, talvez eu já esteja morto, mas mesmo assim, meu espírito se alegrará e minha alma em paz ficará, onde quer que eu esteja. Não sei o que me aguarda do lado de lá. Sei que se não pude ser nenhum deus nesse mundo, fiz o que me cabia, lutei, enfrentei a mim mesmo e tenho ciente em meu coração o quanto esta vida me valeu a pena.
Talvez daqui a milhões de anos, alguém possa encontrar essas escritas guardadas em algum canto. Não sei se meu filho continuará essa tarefa de escrever a própria vida, mas de toda e qualquer forma, já digo a quem quer que seja, eu senti o sentimento de amor e posso afirmar que ele sempre existiu. Ninguém consegue viver sem esse sentimento. Por mais cruel que o mundo tenha sido no principio de sua própria existência, garanto que o amor desde sempre existiu.
O amor fez eu mudar tudo em minha vida. Lutei pelo poder do amor e nunca consegui. Meu filho nunca me perdoou e morrerei sem saber se algum dia isso será possível. Emociono-me muito quando falo disso, escrevo sobre isso e penso nisso. Foi muito difícil viver dessa maneira, fiz o que pude, mas apenas recebi o desprezo, o ódio e os xingamentos. Mas estou com minha consciência tranqüila e sei que quando meu filho for pai, ele entenderá o quanto vale a um homem a vida e o amor de um pedaço de si, um pedaço de gente que nasceu originário de si próprio. Ele é ser do meu ser, é parte de mim também.
Meu filho não sabe, mas vou morrer preso por ter assumido o crime dele. Ele não deve nem imaginar as explicações do porque continua livre, mas a verdade é que eu me entreguei por ele. A vida é assim, ainda bem que meu mensageiro deixará essas escritas em sua casa.
O amor é o mais magnífico, esplendido e encantador dos sentimentos, mas devemos entendê-lo e senti-lo com a nobreza da alma. Vivenciar isso no dia a dia é uma conquista muito permanente. Hoje entrego a minha vida pelo meu filho, mas apenas pelo amor que sempre lhe tive. Busquei ter esse sentimento pelo numero maior de pessoas que comigo conviveram, mas nem com todas foi possível. Não me considero um homem fracassado, todas as minhas tentativas me serviram de consolo, tranqüilizaram a minha consciência na idéia da tentativa cumprida e sei que nunca será tarde para viver o amor, ou pelo menos para escutar a palavra pai.
Se antes eu queria ser um deus e não encontrava em mim nenhuma condição moral para isso, julgando-me que nunca valera mais do que um pequeno grão de areia, hoje vejo tudo de forma diferente. Por mais coisas erradas que tenha feito, eu assumo os erros que carreguei como fardos pesados e dos quais hoje estou pagando amargamente. Todos nós somos deuses pela essência de nossa criação perfeita. Somos seres humanos e temos inteligência. Fomos criados para raciocinar e transformar conhecimento em sentimento. Aprendi muito com a vida que tive e ainda mais com os males que cometi e tanto sofrimento me causaram. Nenhum de nós precisaria da justiça do mundo se fossemos guiados pelas ordens e os mandamentos dos deuses, se soubéssemos amar e perdoar. Ainda tenho muito para aprender, mas sinto que começo a compreender o que são sentimentos, afetos e relacionamentos verdadeiros.
Eu provoquei minhas próprias dores e ocasionei a revolta de meu filho. Mesmo recebendo sua ira, eu o amei e fiz de tudo para ser um pai correto. Olhar para o próximo e procurar nele um motivo de intimidade, algo em comum, é um caminho de incrível aprendizado. Cada homem precisa de cada homem para sobreviver, essa é a lei que domina o mundo. Por mais que cada pessoa viva por si mesma, os deuses da sabedoria sabem reger o universo fazendo com que uns precisem dos outros e tenham compaixão. Ter pena não é sentir amor, ter dó não é amar, mas posso dizer que é o começo de um valioso sentimento de reciprocidade. Quando o homem faz intriga e guerra querendo dominar o mundo e seus semelhantes, os deuses da natureza utilizam todas as belezas do mundo e coloca nelas uma fúria incrível. Quando somos mobilizados pelas tempestades, as pragas, as doenças, os tremores de terra, as catástrofes e demais aberrações que tudo destroem, inimigos se unem em prol da vida.
Quando encontramos dentro de nós uma fonte chamada amor, mesmo que estejamos num mundo horrendo, encontramos a chave perfeita do reino dos céus. É dando a vida pelo próximo, mesmo que este te humilhe, é que entendemos como somos frágeis e sensíveis. O amor é tão forte que meche com qualquer ser, por mais insensível que este seja. Foi preciso chegar a esse extremo para realmente sentir o viver de meus dias. Muitas das coisas que fazia eram mecânicas, sem sentido profundo, sem significado interno, sem atenção precisa e sem sentimento exato. Agora não, ponho sentimento nas minhas atitudes e me emociono com meus próprios pensamentos.
Se todos podemos ser um deus e temos o universo conspirando a nosso favor para conseguirmos alcançar os nossos objetivos, apenas desejo que realmente eu seja perdoado. Se um dia agi pela raiva e em função do ódio, nesse momento entendo que minhas atitudes não me levaram em nada que não fosse a ruína de minha própria alma. Tornei-me um deus pelo meu profundo arrependimento, por ter entendido o valor da vida com e sem os sentimentos autênticos vindos do coração. Somos todos deuses e usamos as forças do mundo para agir, quer no bem ou no mal.
Percebi e tenho em minhas concepções que não é preciso muito para se tornar um deus, apenas precisamos ter consciência de que nossa vida é um livro em branco que vai sendo escrito dia após dia e sobre as folhas, nós temos a força e a inteligência de governar as palavras, os fatos e toda a historia a ser escrita.
É complicado dividir nossa vida com nossos semelhantes. Nos meus conflitos de relacionamento com meu filho, acabei me tornando um homem muito sozinho e solitário. Ele me fez crer que eu era um homem tão monstruoso que passei a ter medo do julgamento alheio como se todos fosse me achar o pior dos homens. Fui me mascarando num cantinho de medos e temores. Vivi boa parte dos meus últimos tempos olhando todos os seres humanos como se eles fossem bichos ferozes, prontos para me atacar. Isolei-me de todos e de tudo vivendo a parte com meus sofrimentos e amarguras.
É muito difícil ter de viver como estou vivendo, olho para os outros e imagino o que eles poderão pensar sobre minha pessoa. Tudo o que mais queria seria poder estender meus sentimentos sobre os meus irmãos de vida e jornada desse planeta, mas por fim esse desejo se tornou impossível. Como posso amar se eu tenho medo dos outros? Como irei demonstrar tão belo e profundo sentimento se crio uma barreira de julgamentos pré-concebidos? Não consegui me aproximar de meu filho, daquele que é parte de mim. Fui eu quem lhe dei a vida quando ele nasceu e agora, lhe darei novamente, mesmo que para tal tenha de perder a minha.
Eu sobrevivi pelo amor de uma pessoa que tratei de modo injusto, agora morrerei pelo meu filho, de quem do mesmo modo também recebo um tratamento desonesto. As coisas são assim mesmo. A justiça do mundo não falha e meu maior aprendizado foi esse, enquanto a vingança do homem o leva mais cedo ou mais tarde ao arrependimento, a vingança do mundo o faz receber aquilo que se merece. É assim que minha vida funcionou e é desse modo que eu morrerei”.
Carol consultou as folhas seguintes verificando que nada mais fora escrito em continuidade aquele relato. Após cinco folhas já duras e também sujas por uma poeira que se pregara na superfície, Carol notou que existiam mais coisas escritas, mas a data do capitulo lhe encabulou. Esta era: CERCA DE 1.770 ANOS DEPOIS...
Carol parou para pensar no que aquilo significava. Em nenhum momento anterior da leitura constatara algum tipo de data que pudesse especificar de quando exatamente era aquele manuscrito. Porém aquele mesmo título lhe fez ficar bastante pensativa. Se cada pessoa vive em media uns oitenta anos, isso significaria que depois de quem a tudo aquilo escrevera, já houvera entre cerca de 20 a 25 sucessores até chegar ao próximo redator. Estaria tal data certa, seria realmente mais de mil anos posterior ao primeiro relato ou a contagem naquele tempo se dava de forma diferente? Não poderia ser apenas uma idéia baseada na quantidade de anos, uma vez que não possuía nenhuma data real escrita naquelas paginas? Carol estava intrigada, mas se nada podia concluir, a única coisa que lhe restava era crer que realmente o próximo relato houvera sido escrito posterior a mais ou menos vinte e três gerações.
Como pudera aquele relato sobreviver e existir escondido durante tantos anos? Estava claro que o próximo relato não era do filho daquele que escrevera o primeiro. Tudo levava a acreditar que alguém o carregara, mas o que daria veracidade ao prosseguidor da historia? Ali nada poderia garantir realmente que o próximo relato fosse escrito por um membro conseguinte da família.
Tudo o que Carol concluía com verdadeira certeza era de que desde o inicio do mundo, uma das melhores invenções e algo mais importante para toda a humanidade estaria exatamente na comunicação, no relacionamento, nos sentimentos e nas palavras escritas. Verificando que o tipo de escrita continuava no mesmo idioma, Carol prosseguiu a tradução ainda mais intrigada. Se tantos anos haviam se passado, o contexto do próprio mundo e a maneira de viver também já não deveriam ser os mesmos. Carol estava pronta para continuar numa nova investigação, prosseguir desvendando o significado daquilo tudo.
Há 4 anos
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