Eram por volta de quatro horas da tarde quando a enfermeira entrou no quarto de Carol. Haviam passado dois dias que Carol fizera sua cirurgia na perna e ainda imóvel sobre a cama, mantinha repouso aguardando o resultado dos demais exames. Ninguém, muito menos Carol, imaginava que o pior estava por acontecer, algo grave e violento.
___ Como está se passando? – perguntou a enfermeira com simpatia e afetuosidade.
___ Como pode ver, extremamente entediada por ter de estar aqui. Gostaria de tomar um suco qualquer, não poderia providenciar?
___ Infelizmente não, venho lhe dar uma infeliz notícia.
___ Não vou poder andar? Nunca mais?
___ Quanto a isso ainda não podemos concluir nada. O assunto é um pouco mais sério.
___ Está me assustando, o que pode ser pior do que ficar sem andar? Por acaso estou correndo risco de vida?
___ Sim, devo lhe informar que vai ter de se submeter a uma cirurgia no cérebro com certa urgência e é por isso que não poderei lhe servir nenhum suco.
___ Cirurgia no cérebro? – perguntou Carol com os olhos arregalados e muito assustados.
___ Não se exalte.
___ Como não me exaltar? – questionou Carol não acreditando no que escutara. – Sinceramente, de uns tempos para cá minha vida parece um joguete, me sinto como uma marionete, é como se estivesse dentro de um sonho por horas e depois mergulhada no pesadelo de um ser qualquer. Isso não pode ser verdade, deve ter alguma coisa errada.
___ Sinto em dizer que não terá muito tempo de se adaptar com essa notícia. Seu caso é grave, mas, por favor, não se preocupe. Terá a melhor equipe de médicos especializados a lhe atender.
___ Quero que me conte exatamente o que tenho.
___ O médico vai conversar melhor contigo. Agora lhe peço para que tente vestir essas longas meias cirúrgicas, são para manter intactos todos os vasos sanguíneos do corpo, da cabeça aos pés.
Enquanto Carol se esforçava em colocar a meia, Manoel entrou pelo quarto com os olhos vermelhos, demonstrando que estivera chorando.
___ Manoel! – disse Carol vendo o policial pela primeira vez depois que ficara novamente internada.
___ Carol – ele chamou se aproximando enquanto a enfermeira observava uma prancheta. – Foi um custo convencer o médico a deixar eu entrar aqui. Fiquei sabendo agora a pouco que vai se submeter à outra cirurgia e pode perder toda sua memória. Não poderia deixar de...
___ O que? – assustou-se ainda mais Carol ficando realmente pálida dessa vez. – Perder a memória? Como assim? Pode me chamar o médico? – perguntou Carol olhando a enfermeira com total assombro.
___ Ele já deve estar vindo. Já volto – informou a enfermeira se retirando.
___ E o meu livro? – preocupou-se Carol ainda mais. – Não poderão fazer essa cirurgia sem que eu autorize. Quero falar com esse médico imediatamente.
___ Se acalme, acho que me expressei mal. Nunca sentiu nada de anormal? Alguma dor forte de cabeça ou uma pontada de repente? – questionou Manoel dando uma de médico.
___ Ultimamente tenho passado muito mal, minha vista fica escura, às vezes vejo coisas que não existem e não tenho como dizer como minha cabeça tem passado.
___ Bem – disse Manoel olhando no relógio. – Tenho de voltar para meu trabalho, já estou afastado dois dias.
___ Já se passaram dois dias?
___ Sim.
___ Pois não posso crer – encabulou-se Carol que perdera a noção total do tempo. – E vai me deixar aqui sozinha e abandonada? E se eu ficar desmemoriada?
___ Se houver possibilidade mesmo disso ocorrer, deverá comunicar imediatamente a suas irmãs. Prometo que retornarei assim que puder, o mais rápido possível.
___ Está bem – considerou Caol ainda abalada e sem saber o que pensar direito.
___ Rezarei para que fique bem – garantiu Manoel com firmeza segurando na mão de Carol.
___ Vai rezar por mim?
___ Sim, farei isso por você.
___ Nunca poderei lhe agradecer pelo que me fez, salvou minha vida.
___ Não fui eu, foi uma força divina que me fez sair atrás de você e te encontrar no exato momento em que tanto necessitava de ajuda. Agradeça a Deus por estar vida e tenha fé, tudo vai ficar bem.
___ O que disse? – perguntou Carol se lembrando das palavras do pai no momento de desespero maior.
___ Tudo vai se resolver e ficar bem. Tenha confiança.
___ Ainda preciso de você – resmungou Carol dando início a primeira lágrima. – Estou com medo.
___ Eu irei voltar, prometo.
___ Por favor, faça isso – pediu Carol apertando firme a mão de Manoel.
___ Então, até breve.
___ Até – despediu-se Carol dando vazão aos soluços. – Se eu morrer ou ficar desmemoriada, saiba que foi verdade o que lhe disse aquele dia.
___ Me disseste tantas coisas – considerou Manoel sem saber do que Carol se referia.
___Tem algo em você que me chama a atenção e é inexplicável dizer do que se trata o sentimento que tenho por você. Não garanto ser paixão, mas é muito mais forte do que isso e tenho a impressão de que estamos caminhando juntos faz muitos milênios.
___ Pois independente do que acontecer contigo, vou continuar lhe amando e jamais me esquecerei de todas as lições que pude aprender depois de ter entrado na sua vida.
___ Por favor, não se esqueça de mim e me perdoe se eu vier a me esquecer de ti.
___ Talvez seja melhor assim, pelo menos em partes. A males que vem para bem e como ditado popular, Deus escreve certo por linhas tortas.
___ Não, eu não quero perder... – interrompeu Carol sendo cortada pelo choro compulsivo.
___ Eu já vou, tenho mesmo que ir. Tente se acalmar.
Carol apenas tentou enxugar as lágrimas e mesmo que se esforçasse, nenhuma palavra conseguiu pronunciar. Passado alguns minutos da retirada de Manoel, o médico adentrou pelo quarto e calmamente iniciou a conversar com Carol enquanto segurava em seus pulsos.
___ Seus exames acusaram elevadas taxas de açúcar no sangue, mas a ressonância magnética revelou outro problema, um aneurisma.
___ E o que isso significa? Não me esconda nada – informou Carol realmente tentando ser forte para saber de toda a verdade.
___ Se trata de uma dilatação na parede de uma artéria, que enche o sangue com o passar dos anos.
___ Quer dizer que isso não foi provocado pelo acidente?
___ Não, mas o aneurisma se agravou nos últimos meses e o acidente pode ter ocasionado maiores complicações internas. Como lhe explicava, cada batimento cardíaco lança ondas de sangue contra as paredes cada vez mais finas da bolha, até que um dia, o aneurisma se rompe.
___ Estou perdida, já até sei a conclusão disso tudo, a conseqüência mais certa será um cadáver a mais no necrotério, não é?
___ Não, está exagerando.
___ E o que vai acontecer comigo? Que mal poderá acontecer?
___ O pior que poderá lhe acontecer vai ser ficar desfalecida na sala de emergência.
___ Quem vai me operar?
___ Eu mesmo.
___ E quem é o senhor?
___ Chefe de neurocirurgia desse hospital. Já analisei a angiografia do seu cérebro, aqui estão os vasos sanguíneos mais escuros e amontoados, se é que assim pode entender – mostrou o médico apontando para o exame.
___ Não, não estou entendendo nada, ainda não cai na realidade de que tudo isso está mesmo me acontecendo, parece mentira.
___ Mas é verdade e o exame não está errado, muito menos trocado.
___ E o que são essas linhas? – perguntou Carol tentando realmente entender o que significava aquelas imagens.
___ Essas linhas emaranhadas são, bem... – interrompeu o médico sem saber como explicar. - Eu creio que não vai entender minha linguagem médica. – Está vendo, mostra aqui no filme que desse outro lado não tem nada. O aneurisma está localizado bem no meio da artéria comunicante, que converte os vasos de um lado para o outro. E pode observar essa bolha, o ponto onde o aneurisma está para se romper.
___ Vai me operar sozinho?
___ Não. Comuniquei com um especialista da capital. Ele vai pegar o primeiro vôo assim que tiver a autorização para efetuar a cirurgia. Digo-lhe apenas que deve ser operada tanto antes quanto possível. Tal médico já cuidou de milhares de casos iguais ao seu e inclusive de mais risco.
___ Pois preciso avisar minha família.
___ Sim senhora, poderá usar o telefone ao lado.
___ Está bem, vou ligar logo mais tarde.
___ Não demore muito, seu caso é de certa urgência.
___ Não fique me assustando – pediu Carol.
___ Retornarei dentro de algumas horas, com licença.
Carol olhou o médico saindo. Usava trajes cirúrgicos e touca azul amarrada com um cordão branco. Sob as mangas curtas da camisa via-se seus braços robustos e queimados do sol. As mãos eram grandes e seu rosto era composto de um sorriso gentil e um olhar firme. Seu jeito era agradável, mas naquele momento, nenhuma aparência ou jeito ia ser agradável a Carol diante do que se passava consigo própria.
___ Espere um pouco – disse Carol antes que o médico saísse. – Quem é esse outro médico?
___ O dono e fundador do Instituto Neurológico Spalazany.
___ Já ouvi muito falar desse instituto, não deveria ir para lá?
___ Não é possível transportá-la, mesmo que de avião.
___ Já estou nas ultimas? É tão grave assim?
___ Não quero te assustar, mas repito que seu caso é de séria urgência.
___ Vou perder a memória?
___ Corre esse risco.
___ E não podem fazer nada para garantir que isso não ocorra?
___ Logicamente faremos o possível. Determinadas regiões do cérebro são responsáveis por suas habilidades e segundo os exames, elas não serão totalmente prejudicadas. Agora, com licença, retorno depois – garantiu o médico.
Assim que o médico se retirou, Carol ligou para sua irmã Rosalinda, mas quem atendeu foi sua avó Marta e muito contente com a ligação de Carol avisou que Carolina e Rosalinda haviam viajado para a praia numa excursão. Totalmente perdida no tempo, Carol ficou sabendo de que era feriado prolongado. Sem coragem de dizer à avó o que se passava, Carol desligou o telefone sem nada revelar. Sem saber o que fazer e sem conseguir completar a ligação para o celular de suas irmãs, Carol ligou para Manoel e informou-lhe que ele seria o responsável por ela e caso acontecesse o pior, ele deveria comunicar a suas irmãs.
Desligando o telefone após ter a confirmação de que Manoel retornaria no dia seguinte, Carol sentiu uma incrível pontada no peito e pensou que fosse morrer de dor naquele momento mesmo. Gritando pelo médico, foi uma das enfermeiras que lhe atendeu.
___ Tem certeza que meu problema está na cabeça? Sinto uma dor horrível no peito – reclamou Carol.
___ Está com inflamação dorsal. Darei-lhe outro anestésico daqui a meia hora.
___ Meia hora? Estou com uma dor insuportável e terei de ficar esperando meia hora?
___ O remédio é muito forte e não posso lhe dar outro agora. Já avisou sua família?
___ Sim – disse Carol sem muito pensar.
___ Sua cirurgia será amanha cedo, logo que o outro médico chegar.
___ Mas...
___ Tente dormir e ficar calma.
___ Não sei se quero...
___ É a única alternativa. Com licença – disse a enfermeira sem muito se importar com o estado de Carol.
Sozinha no quarto, Carol olhou pela janela e lá embaixo pôde ver a rua vazia. No céu a lua grande e redonda brilhava iluminando ainda mais o ambiente exterior.
Carol apenas conseguiu dormir depois de algum tempo que tomara o outro anestésico. Quando acordou, olhou para o teto e este estava se mexendo como uma esteira rolante. Ao olhar para o lado, Carol notou que um enfermeiro a empurrava sobre uma maca.
___ Para onde estão me levando? – perguntou Carol assustada.
___ Para outra sala de cirurgia.
___ Mas não quero...
___ Seu caso agora é de vida ou morte.
Espetando uma agulha no braço de Carol, contendo um sedativo de ação rápida e prolongada, Carol sentiu em poucos segundos a sua consciência sumir. Naquele instante, Carol era apenas um corpo sobre uma mesa de operação, prestes a ter o cérebro operado. Sua cirurgia detalhada foi descrita como uma craniotomia pterional esquerda, com clipagem de aneurisma não roto da artéria comunicante anterior. O pterion é uma saliência óssea do crânio que separa a porção média da porção anterior do cérebro.
Na mesa de cirurgia, o corpo de Carol era protegido por uma coberta branca de espuma, semelhante a uma folha de isopor. Sondas intravenosas eram colocadas no braço e no seu pescoço. Uma linha era traçada no alto de sua testa. O couro cabeludo tinha cinco camadas de pele e uma por uma elas eram manuseadas cautelosamente pelas mãos médicas enluvadas.
Cada camada de pele era puxada como se fosse papel de embrulho. O rosto de Carol em poucos segundos se transformou num crânio vivo e lá dentro, a mostra, via-se a parte frontal do cérebro donde o aneurisma estava instalado, como uma bomba relógio.
Junto à mesa cirúrgica, um enfermeiro segurava com muito cuidado, uma mangueira com uma broca presa na ponta, a qual se assemelhava a uma pesada caneta-tinteiro. Girando a broca, pulverizava os ossos do crânio e evitava que lascas atingissem o cérebro. O pó era removido com água e aspirado em seguida. Com precisão, o médico fez um furo no topo da cabeça de Carol. Aquele era apenas o começo da operação tão minuciosa.
Depois de uma tentativa, o médico trocou a broca por outra e iniciou a cerrar o crânio de Carol. A broca tinha uma peça que se curvava em torno da ponta e regulava a profundidade da penetração do instrumento. O zumbido se aumentava à medida que o médico aprofundava a abertura oval, já com cerca de nove centímetros. Retirando a tampa branca de osso, o medico colocou-a sobre uma bandeja e cobriu com tecido esterilizado.
A operação se seguia minuciosamente e a cada etapa, Carol corria risco de perder partes de sua memória e assim, de sua própria vida.
O médico auxiliar olhava através do microscópio. Em sua mão segurava uma haste prateada como uma faca. Com cuidado extremo ele a manipulou separando os lobos do cérebro de Carol. Tais médicos estavam trabalhando nos limites da vida e qualquer movimento falso, por menor que fosse, faria com que suas carreiras fossem prejudicadas, juntamente com a vida de Carol.
Nos minutos seguintes, o médico bloqueou temporariamente todas as veias que levavam sangue ao aneurisma. Se a bolsa rompesse naquele momento, o sangue espiraria com força assustadora vazando com grande rapidez. Na mão, o médico mantinha um instrumento cauterizador, em formato de pinça, com cabos roxos de plástico e duas pontas. Quando as pontas se uniam, uma corrente elétrica cauterizava o que se mantinha dentre elas. Quaisquer uns daqueles vasos sanguíneos intermediários poderiam destruir o cérebro ou o próprio corpo a um simples toque.
O médico especialista procurou pelo nervo ótico. Sob a lente do microscópio, qualquer erro seria fatal e Carol ficaria cega para sempre. Partindo de tal nervo, o médico voltou-se à artéria carótida. Identificando-a, traçou-se um percurso de volta a artéria onde o aneurisma estava localizado.
Naquele momento, o médico fez uma careta e revelou uma nova descoberta.
___ Veja só, o aneurisma tem duas pontas. Cada uma delas está competindo com a outra para ver quem é que vai rebentar primeiro.
Sobre o aneurisma estavam redes finas de vasos, semelhantes a fios de cabelo emaranhados. Dali partiam até as áreas responsáveis pela fala e a escrita. Tudo na vida de Carol poderia ficar acabado naquele instante. Naquele momento, o médico se concentrava ainda mais fixando toda sua atenção naquele ponto específico do cérebro de Carol. Segurando uma pinça de metal, o médico analisava o aneurisma se contorcer com o sangue fluindo em seu interior.
Depois de três horas naquela mesma peleja, tendo a vida de Carol nas próprias mãos, o médico deslocou as sondas, sugadores e lâminas, remodelando o aneurisma. Finalmente o médico pôde posicionar sua pinça e bloquear a parte inflamada. Perfurando a bolha o sangue se esparramou sobre os chumaços de algodão segurados pelo outro médico. Aquilo servia para estimular a cicatrização e fortaleces as paredes externas da artéria. O aneurisma acabara de ser eliminado com sucesso. Pelo menos era o que parecia.
Encaixando o pedaço do crânio que ficara sobre a bandeja, o médico encaixou a cabeça como se fosse a ultima peça de um quebra cabeça. Tudo terminado, Carol foi encaminhada para a sala de recuperação. Não respondia a nenhum tipo de estimulo. Naquele momento e durante muitos outros, apenas poderiam esperar para verificar o que resultaria realmente da operação.
Quando Carol acordou, não sabia identificar o que exatamente sentia ou se tinha alguma noção plena do que se passara. Embora apresentasse sinais de bem consciente das coisas, estava muito dominada por uma grande ansiedade e assim, para não prejudicar seu estado de recuperação, era mantida por sedativos que a faziam dormir a maior parte do tempo.
Dois dias depois, ainda muito perdida e sem noção do que lhe estava acontecendo e do que se passava, Carol pôde receber a visita de Manoel. Foi com muita alegria que ela o reconheceu e teve assim, juntamente com os médicos, o primeiro sinal de que sua memória não tinha sido abalada.
___ Manoel, você demorou, estou com medo - reclamou Carol em cara de piedade.
___ Agora estou aqui, que bom que se lembra de mim.
___ Estou confusa de mais com tudo, mas não esqueci quem sou e, bem, não sei ao certo o que está me acontecendo. Sou carregada nessa maca pra lá e depois volto para cá, me dão remédio e durmo tanto tempo que acordo mole, com zonzeira e com o corpo muito pesado. Vou poder algum dia sair daqui bem?
___ Sim, imagino e tenho fé de que sim, mas só o tempo e os médicos poderão te responder melhor a essa dúvida.
___ E vai ficar comigo enquanto isso?
___ Não pretendo ficar por muitos dias. Mas lhe garanto que ficarei até que saiba o resultado da próxima cirurgia.
___ Outra? Quantas já me fizeram? Meu problema não era nas pernas?
___ Exato.
___ Mas eu não sinto nada nas pernas.
___ É por isso mesmo.
___ Será que nunca mais poderei andar? Agora me lembro, tive um acidente e... Puxa vida, estava com uma doença da cabeça, não foi isso?
___ É isso mesmo, mas sua memória está boa, é o que posso notar. Pelo menos se lembra de aparentemente quase tudo das coisas mais recentes.
___ A enfermeira me disse que iam me aplicar uns testes para saber sobre os exames e algo mais ou menos assim que não sei explicar.
___ Você lembra dos seus sentimentos por mim?
___ Quando se ama alguém, não se ama o tempo todo, exatamente da mesma forma, em todos os segundos da vida. Isso é basicamente impossível. É mentira fingir que isso acontece. No entanto, é isso que a maioria das pessoas exigem. Não acreditamos na força dos relacionamentos, no refluxo que eles possuem sobre a vida humana. Insistimos pela permanência dos outros, do amor, a duração contínua, mas deixamos de perceber que exatamente essa continuidade possível, tanto na vida, quanto no amor, está no crescimento, na fluidez e na liberdade. A verdadeira segurança do amor não se baseia em ter ou possuir o outro, nem muito menos em exigir de quem se ama, mas sim em reconhecer no relacionamento que não vale a pena olhar para o passado quando ele foi igual ao que nos aconteceu. Também não quero me precipitar em pensar no meu futuro, no que vai me acontecer, embora esteja muito inquieta com isso. Tudo o que quero é poder concentrar em viver o presente e aceitá-lo da maneira como ele é, sem me revoltar com nada. Quero aceitar os meus sentimentos e não pretendo mais fugir deles. Ainda estou bem lembrada sim dos meus sentimentos por você e não quero apagar isso jamais de minha mente.
___ A vida é tão engraçada, complexa e justa. Às vezes ela parece cruel, mas não devemos pensar assim. Eu não tenho palavras para dizer o que sinto por ti e nem para descrever o quanto suas palavras me deixa emocionado.
___ A vida é uma luta atrás da outra e não pretendo desanimar frente a essa enorme batalha que eu estou tento de enfrentar. É nas pequenas oportunidades que encontramos as grandes chances da vida. Nunca imaginei que tudo o que está se passando comigo fosse um dia acontecer. Também acredito que são nas maiores batalhas que ganhamos as melhores forças da alma e aprendemos as lições mais eternas.
___ Não tenha medo minha querida, vai dar tudo certo, estou rezando por ti.
___ “Minha querida”. Não sei o que o som dessas tuas palavras me causa. É um misto de confusão que abala todo o meu ser.
___ Me permite que continue a chamando assim?
___ Tudo bem. É que ainda tenho de exercer minha grande vontade de querer perdoá-lo. Na verdade já o perdoei, mas como vê, nem mesmo com algo tão sério na mente não esqueci o que... Bem, não quero falar disso, deixemos o passado para trás.
Naquele mesmo dia Carol realizou outra cirurgia nas pernas e mesmo nas semanas seguintes, foram feitas novas tentativas para salvar a sensibilidade e devolver os movimentos das pernas de Carol, mas tudo levava a crer que o processo seria muito lento e contaria principalmente com o esforço de Carol. Nas três semanas seguintes, Carol foi operada mais de nove vezes para recuperar as pernas.
Manoel foi vê-la mais vezes no hospital e o clima entre eles estava entre amizade e namoro. Muitas vezes ficavam sem graça um com o outro e Manoel se culpava por toda aquela situação. Carol tentava convencê-lo do contrario e os dias iam passando. Sempre achando que não era local e nem momento oportuno de revelar a verdade sobre o ouro, Carol ficava guardando segredo. Mas ela pretendia contar-lhe tudo, inclusive sobre o livro que encontrara. Embora ele lhe tivesse feito tanto mal, ela o perdoara e sabia que ele salvara sua vida, além do mais, acreditava no arrependimento fiel que ele tivera e em todos os casos, ele conseguira fazer com que Carol se livrasse dos pintores, tornando-se praticamente uma proteção a ela.
Menos de um mês depois, Carol foi submetida a novos exames e testes, inclusive ditado e pronuncia. Embora por vezes sua mente vacilasse e a fala ficasse enrolada, ou lhe dessem brancos repentinos donde se esquecia do mundo e de si mesma, Carol não tivera nenhuma afetação cerebral. Seu aneurisma tinha sido liquidado e como os próprios médicos diziam, a perfeição de sua recuperação, dia após dia e do seu estado consciente era um verdadeiro milagre que nem mesmo os médicos esperavam.
No final do mês, Carol já podia ir até o corredor e andar por ele numa cadeira de rodas. Se continuasse naquele ritmo, em breve teria condições de andar com a ajuda de um fisioterapeuta e um andador. Seu quadro clínico era realmente inexplicável. Não se tratava de sorte, mas de graça divina.
Quando o médico lhe deu alta, quase dois meses depois, Carol não sabia para onde ia e pela insistência, resolveu retornar para a cidade donde estava e se instalar no apartamento de Manoel, pelo menos até que pudesse resolver sua situação e decidir o que ia fazer de sua vida. A relação dos dois ainda estava formal e com um grau de constrangimento de ambas as partes. Embora os olhares e palavras doces não negassem os sentimentos entre eles, nada além de amizade fluía naquele relacionamento. Carol sabia que indo para a casa de Manoel, ganharia mais intimidade com ele e aquela situação tomaria outro rumo depois que ela lhe revelasse sobre o ouro. Os dois tinham muito para coexistirem juntos e os acontecimentos ainda dariam seqüência a muitas novidades.
Chegando no apartamento de Manoel, Carol desfez suas malas ainda tendo muita dificuldade para manusear cada peça de roupa estando sentada numa cadeira de rodas. Em alguns minutos se pegava pensando o que realmente fazia ali e sem respostas, ficava mentalizando que não seria fácil se adaptar aquela cadeira de rodas. De uma certa forma ela se sentia presa, sem movimentos, sem agilidade e sem uma parte de sua vida.
Manoel lhe tratava com muita atenção embora passasse todo o dia fora trabalhando. Enquanto Carol ficava sozinha, horas lendo, vendo televisão ou até mesmo fazendo crochê para distrair, pensava em sua vida como um todo.
Numa das tardes, já cansada de sempre fazer o mesmo, Carol ligou para um fisioterapeuta e não suportando a ansiedade de poder levantar daquela cadeira de rodas, ela recebeu a visita do médico no apartamento. Aconselhada a esperar mais um tempo para começar um tratamento intensivo, Carol ficou entristecida e quando Manoel retornou do trabalho, encontrou-a chorando pálida e desconsolada no quarto de visitas donde alojara-se.
___ Vejo que não está nada bem – comentou Manoel adentrando pelo quarto.
___ Não agüento mais, estou com medo de nunca mais poder andar. Eu prefiro morrer a ter de ficar para sempre nessa cadeira.
___ Não fale assim – comoveu-se Manoel aproximando mais de Carol e passando a mão sobre sua cabeça. – Tenho uma novidade para te contar.
___ O que é? – perguntou Carol sem animo.
___ Antecipei minhas férias, expliquei aos policiais sobre o que aconteceu contigo e disse que precisava...
___ Eu estou bem, não precisava ter feito isso – interrompeu Carol.
___ Não está bem, vejo em seu semblante. Por mais que queira me convencer de que está tudo bem, sinto eu por você e lhe garanto que eu não estou nada bem em te ver assim. Liguei para um amigo meu e conversando com ele aceitei o convite de passar as férias numa de suas casas de campo. Ele aluga para férias e imagino que lhe fará bem. Pelo menos será mais fácil de você se distrair enquanto aguarda esse período de...
___ O médico veio me examinar hoje – interrompeu Carol sem dar muita atenção ao que Manoel falava.
___ O fisioterapeuta?
___ Sim, aquele que você mesmo indicou.
___ Mas ainda é muito cedo para...
___ Foi o que ele disse e sabe o que me recomendou? – interrompeu Carol novamente.
___ Diga.
___ Repouso. Estou cansada de tanto repousar.
___ Então aceita meu convite de irmos passar uns dias numa casa de campo?
___ Precisamos conversar, tenho muitas coisas para te contar e isso é outro assunto que está me sufocando cada dia mais. É sobre aquele mapa.
___ Vamos esquecer aquele mapa, fazer de conta que ele nunca existiu, está bem? – desconversou Manoel. - Vou ligar para meu amigo e confirmar nossa ida. Você vai gostar de lá, é um lugar lindo e muito agradável. Ficarei todo o tempo do seu lado para que não se sinta sozinha. Alias, minha presença não lhe é desagradável, é?
___ Não, estou aprendendo a gostar de você e ultimamente tenho conhecido o seu outro lado, o de homem gentil e atencioso.
___ Fico feliz por saber disso.
___ Onde fica essa casa de campo?
___ Isso é surpresa.
___ Mas é longe daqui?
___ Não muito.
___ Mas agora não tenho mais carro.
___ E estando de férias não posso usar o carro da companhia de polícia. Mas não se preocupe, viajaremos de ônibus, se você não se importar.
___ Tudo bem. E quando vamos?
___ Amanha cedo, pode ser para você?
___ Claro.
___ Eu já estive nessa mesma casa de campo dele e é um local muito calmo. Se eu pudesse reservaria para passar todos os meus finais de semana. Quando fui fiquei num pequeno chalé no vale arborizado a pouco mais de um quilometro da água. Engraçado que lá é o único local no campo que não existem mosquitos. Pode-se ficar até de noite na beira do lago e inclusive nadei ao luar quando lá estive. Depois descansei encostado numa arvore e enquanto bebia vinho pensava no meu futuro. Pensei em todas as possibilidades que me poderiam acontecer, mas nem imaginava na que estou vivenciando agora – riu Manoel pensativo.
___ Me conte mais – pediu Carol.
___ Está bem, mas antes vou ligar para ele e preparar algo para nós comermos.
___ Tudo bem, eu vou arrumar algumas roupas para levar.
Momento depois, jantando na companhia de Manoel, Carol insistiu para que ele lhe contasse mais sobre o local donde planejava levá-la e passar as férias.
___ Faz alguns anos que fui para lá, imagino que muitas coisas não devem ser exatamente as mesmas, mas o lago com certeza permanece no mesmo lugar. Quando fui para lá, meu amigo tinha acabado de comprar um barco a motor que deixou na minha disposição. Eu percorria as margens do lago, olhando as casas e imaginando como seria ter uma propriedade daquelas, próxima às águas. Gostaria de poder morar num local daqueles, mas custa muito mais caro do que poderia pagar.
___ Mora aqui de aluguel?
___ Sim. É a minha despesa maior.
___ Continue. Como é o lugar?
___ É cercado por grandes arvores e antigas videiras. O terreno inclina-se suavemente para a margem do lago. Para mim, é um local perfeito. Completo de harmonia e paz. Imagino que ainda seja assim.
___ O que tem de diversão além da natureza tão bonita?
___ Pescaria, gosta?
___ Um pouco.
___ Pois na minha companhia vai gostar completamente. Acredite, sou divertido para pescar.
___ É entendido no assunto?
___ O bastante para encher uma vasilha grande em poucos minutos. De toda forma não garanto nada, faz anos que não pesco, posso ter perdido a prática. Quando eu estive lá, saia todos os dias pela manha, antes que o dia clareasse. Para mim esse é o melhor horário de uma boa pescaria. Quando não tinha vontade de ir pescar, dormia até ser acordado pelos pássaros. Eu mesmo preparava meu café da manha e ia comer minha omelete lá na varanda.
___ Nunca vi você comendo omelete de manhã.
___ Geralmente só como quando estou com tempo livre, em ocasiões especiais ou quando realmente sinto vontade. No dia-a-dia prefiro comer o pão normal e antes de tê-la aqui comigo, nem ao menos preparava café da manha, ia comer numa lanchonete próxima a delegacia.
___ Estou lhe dando trabalho.
___ É maravilhoso poder tomar café da manha ou fazer qualquer outra refeição aqui em casa, tendo sua companhia. Gosto de cozinhar e me sinto mais motivado e animado tendo alguém para compartilhar dos meus dotes culinários.
___ Se é assim, só posso dizer que cozinha muito bem. Não é apenas um elogio para lhe agradar, é a verdade.
___ Obrigada.
___ E o que mais tem para se fazer nessa casa de campo?
___ Conhecer os animais, eles são muito mansos.
___ Interessante. Sabe que nessa cadeira de rodas é perigoso para eu ir a tais locais.
___ Porque?
___ Imagine se aparecer uma cobra e daquelas bem venenosas, como vou correr dela? Nesses locais existem muitas tocas de serpentes.
___ Não se preocupe com isso, vou estar todo o tempo do seu lado.
___ Não sei, depois de tudo o que passei, algo me faz ficar com medo e só penso em coisas ruins. Acho que preferiria ficar aqui mesmo.
___ Não, você vai gostar de lá. Falei de animais como esquilos, marrecos e pica-pau. Quando lá estive estava na época de colher a plantação de tomates, era lindo ver aquela imensidão de tomates vermelhinhos. A melhor parte do dia é o anoitecer, tem um pôr-do-sol espetacular. Ficava acostado vendo o sol desaparecer aos poucos, mudando as cores do lago de azul para roxo, prata e negro. Poderemos aproveitar a noite para contemplar as estrelas ou sentar frente a uma fogueira bebendo uma xícara de chocolate quente. O ar daquele ambiente é fresco e cada minuto é precioso.
Durante todo o jantar, Carol e Manoel permaneceram trocando palavras de lembranças. Decidindo que deveriam dormir cedo para acordarem dispostos no dia seguinte, deitaram logo após saborearem uma torta de sobremesa. Carol não conseguiu conciliar o sono e sentia algo muito estranho que não tinha como definir. Era como se temesse alguma coisa e não soubesse exatamente o quê. Foi lendo algumas páginas do livro de poesia, presente dado por Manoel, que ela conseguiu ficar sonolenta e finalmente dormir tranqüila.
Naquela noite Carol teve mais um de seus sonhos impressionantes. Estava sentada no chão, com as costas contra a parede, a perna esquerda presa a um gancho de ferro pela corrente com cadeado. Grande chapa de metal cobria a janela, impedindo a entrada do sol de inverno. De tempos em tempos, a chama de uma vela crepitava na penumbra do ambiente. Se ela se apagasse, a escuridão seria total. Durante toda à noite, aquela era a cena que ficava repassando na mente de Carol. Seu pensamento tentava achar uma maneira de sobrevivência. Em sonho, ela estava presa em algum local. Sentia dores como se tivesse sido captada e espancada. Durante o dia, minúsculo raio de sol, infiltrava-se através de uma fenda da tranca e iluminava um canto do quarto. Aquele raio que viajara milhões de quilômetros pelo espaço ali chegava para lhe fazer companhia e dar fim à escuridão. Carol sabia que poderiam lhe destruir o corpo, mas jamais possuiriam sua alma. Aquele sonho poderia ser a visão de algo que vivenciara no passado, também poderia apenas refletir a maneira como ela se sentia estando numa cadeira de rodas ou então ser até mesmo uma espécie de aviso.
Acordando no dia seguinte, bastante atormentada com os sonhos que tivera, Carol se mostrou disposta a ir com Manoel para a casa de campo. Chamando um táxi, Manoel e Carol foram para a rodoviária e comprando as passagens, Manoel conduziu Carol em sua cadeira de rodas até a devida plataforma.
___ É tão frustrante estar aqui sentada – comentou Carol.
Assim que o ônibus encostou-se à vaga, Manoel carregou Carol até a poltrona e acomodou-a no banco sentando-se ao seu lado. Quando o último assento foi ocupado, o motorista percorreu o veículo pela ultima vez certificando de que não havia mais nenhum lugar livre. Sentando-se no volante, o motorista ligou o motor e depois de poucos instantes entrou no fluxo de trafego em direção a rodovia. Afundando-se na confortável poltrona aveludada, Carou virou as costas para Manoel e deixou os olhos se perderem na paisagem da janela.
Passara-se apenas quarenta minutos quando Manoel percebeu um movimento dentro do veículo. Um homem atarracado que segurava uma mochila de camping caminhava pelo corredor do ônibus. Sem perceber nada de mais, Manoel olhou para Carol e vendo que ela permanecia distraída na visão da janela, tirou de sua mala de mão um radinho e colocando os fones no ouvido tentou relaxar fechando os olhos em seguida. O mais importante Manoel não percebera. Aquele sujeito era um dos pintores e ele não estava ali dentro por coincidência.
O pintor, sujeito que se levantara segundos antes, caminhou até a cabine do motorista e entrando fechou a porta em seguida.
___ Posso ajudá-lo senhor? – perguntou o motorista. – Não é permitido entrar aqui quando o ônibus está em movimento.
Rapidamente, o pintor encostou um revolver na têmpora direita do motorista ordenando:
___ Estaremos seqüestrando dois passageiros e aproveitaremos para roubar o ônibus – sussurrou o pintor. – Continue dirigindo.
Atordoado o motorista continuou no volante enquanto dois outros sujeitos mascarados e também armados saíram das ultimas poltronas, no fundo do ônibus.
___ Isso é um assalto, não se mecham. Peguem todo o dinheiro e entregue-nos, assim ninguém morrerá – gritou um deles.
Enquanto Carol pegara no sono, Manoel de olhos fechados escutava apenas a música do seu radinho. Nenhum dos dois percebia o que de fato estava acontecendo.
Subitamente, os dois homens mascarados seguraram firme em suas armas e enquanto um deles percorria o ônibus recolhendo o dinheiro, o outro que ficara mais atrás foi ordenando:
___ Nada de confusão. Queremos apenas o dinheiro.
No meio de uma imensa gritaria, Carol acordou assustada imaginando que estivesse sonhando e sem entender o que se passava notou o sujeito mascarado com o revolver vindo para frente. Fechando os olhos novamente Carol fingiu estar dormindo. O motorista observava a movimentação dos passageiros atrás da cabine e pensava numa maneira de reagir àquele assalto. Se ele pisasse no freio, aqueles homens iriam direto para o pára-brisa, mas seria um tanto arriscado tomar aquela atitude.
Passando pela poltrona de Carol, o pintor notou que Manoel nem percebia aquela situação e Carol parecia dormir. Sem mexer com eles, o sujeito continuou percorrendo as poltronas seguintes. Com o olho entre aberto, Carol inclinou-se para frente na poltrona e levando a mão esquerda até o casaco de Manoel que permanecia sobre a mala de mão, pensou que talvez pudesse encontrar alguma arma, mas nada encontrou além de um telefone celular. Com as mãos trêmulas, Carol discou o número de emergência e temerosa escutou a resposta ao primeiro toque.
___ Estamos sendo assaltados dentro de um ônibus. Têm dois homens armados na parte de trás e um outro na cabine. Eles não podem me ver com esse telefone e...
___ Precisamos saber em qual rodovia está e o quilometro também.
Olhando pela janela, Carol ficou esperando ver alguma placa.
___ Não sei onde estamos, estou muito nervosa, acabamos de passar agora por um posto de nome Tizuca – sussurrou Carol. - Eu...
Naquele momento o sujeito virou-se novamente para trás e Carol foi obrigada a esconder o telefone atrás de si.
___ Passe o dinheiro você também – comunicou o sujeito indo diretamente até Carol.
Ainda bastante trêmula Carol abriu a bolsa e pegou todas as notas que tinha. Assim que o homem mascarado recolheu o dinheiro e se retirou, Carol retirou o fone do ouvido de Manoel e baixinho disse-lhe no ouvido.
___ Estamos sendo assaltados. Você é policial, faça alguma coisa.
___ Não brinque Carol.
___ Não estou brincando.
O ruído súbito e estridente de um tiro quebrou a tensão. Instintivamente Manoel se abaixou.
O motorista dando um pulo no assento perguntou nervoso:
___ O que está acontecendo? Estão...
___ Cale a boca e dirija.
___ Não calo não, são os meus passageiros e tenho de protegê-los.
___ Se quer mesmo proteger continue dirigindo.
___ Vocês são amadores e vão se dar mal. Estão pretendendo seqüestrar quem?
Perdendo a paciência, o sujeito golpeou a cabeça do motorista com a arma e atordoado, este perdeu o controle da direção. O ônibus derrapou para a direita e entrou no acostamento. Depois pisou no freio e puxou o volante para o outro lado, compensando demais. Irritado, movimentou bruscamente com o volante e o ônibus invadiu a contramão. Um caminhão passou zunindo e buzinou, enquanto guinava para evitar o choque. Fora por pouco que não acontecera uma verdadeira tragédia.
Um dos sargentos, em um carro-patrulha, aproximava-se da rodoviária quando viu o ônibus. Naquele momento começou a perseguição. A central informara sobre o assalto e em instantes chegava os reforços. Em seguida estavam várias viaturas atrás do ônibus.
Os pintores ainda não tinham realmente acreditado na historia de feitiço que Manoel lhes contara e desconfiados, imaginavam que os dois estavam viajando exatamente para irem atrás do suposto tesouro. Nenhum deles imaginava ou sabia do acidente que Carol sofrera e nem muito menos sobre o ouro que ela encontrara. Embora soubessem que Manoel era um policial, imaginavam que estando mascarados poderiam se sair bem. Mas não era isso o que ia acontecer. Ainda nervoso com o quase acidente, o motorista respirou fundo quando olhou pelo retrovisor. Luzes azuis e vermelhas piscavam na escuridão e o barulho da sirene já se fazia ouvir.
___ Continue dirigindo, não pare o ônibus – ordenou o sujeito fazendo mais força com a arma no pescoço do motorista.
___ Tenho de parar, eles vão atirar nos pneus e acabaremos batendo – informou o motorista voltando a ficar tenso.
___ Você vai morrer de todo jeito.
___ Se é assim, morrerei antes para dar a vida a meus passageiros – disse o motorista pisando imediatamente no freio e virando o volante para o acostamento.
___ Ligue esse motor novamente – berrou o sujeito enquanto os outros dois iam também para a cabine.
___ O que vamos fazer? – gritou um deles.
___ Vamos pegar as duas pessoas que temos interesse, serão feitas de refém.
Assim, um deles correu até a poltrona de Manoel e ordenando que se levantassem, disse que iam ser reféns.
___ Não podem fazer isso, ela não consegue andar – disse o passageiro ao lado que vira Carol na cadeira de rodas.
___ Ela sofreu um acidente e... – tentou explicar Manoel quando foi interrompido.
___ Não interessa, estão mentindo – disse o sujeito que conhecia o estado anteriormente normal de Carol e que entrara no ônibus bem depois do casal, sem nada ver sobre a sua incapacidade locomotora.
___ Escuta aqui... – reagiu Manoel com praticidade dando um golpe na arma que caiu longe.
Antes que pudesse fazer qualquer coisa, o outro sujeito mascarado aproximou-se ordenando que Manoel permanecesse quieto.
Agachado atrás do ônibus, um policial apontando a pistola para a porta esperava pelo momento ideal de agir. As radiopatrulhas com luzes piscando estavam por trás dele.
___ Vamos correr para o mato – informou o sujeito agarrando o braço de Manoel enquanto o outro pegava Carol.
Ao ouvir aquilo, Manoel respirou fundo. Com sua experiência, sabia que tudo ficaria bem. Aqueles pistoleiros estavam confusos demais para reagirem a tempo de fazerem a fuga. Aproximando-se em bando, a policia rendeu os sujeitos e foi então que eles tiveram noção do quanto haviam passado dos limites por causa de um tesouro que nem ao menos tinham comprovação de existir. Naquele momento também, foi que Carol e Manoel verificaram quem eram aqueles homens por trás das mascaras. Manoel sentiu-se ameaçado, mas antes que pudesse demonstrar seus sentimentos, Carol segurou em seu braço e perguntou baixinho:
___ Você não tem nada a ver com isso, tem?
___ Não, como pode desconfiar de mim desse jeito?
___ Me desculpe.
___ Eles vão alegar que vieram atrás de nós e que participei com eles na tentativa do seu primeiro seqüestro.
___ Qualquer coisa, eu estarei do seu lado. Negarei que você esteve com eles e encobrirei os males que me causou. Devo ter sempre em mente que se não fosse por você, hoje não estaria viva.
Sem condições de prosseguirem a viagem, o ônibus retornou para a rodoviária de onde saíra e então, Carol e Manoel desistiram do passeio à casa de campo. Os três sujeitos foram levados presos enquanto Carol e Manoel retornaram para o apartamento. Carol sentia-se como perseguida por tragédias e tormentos. Sua vida até então estava um verdadeiro horror, mas nem tudo continuaria sendo daquela forma. O rumo das coisas ia percorrer caminhos um pouco mais agradáveis e felizes.
___ Vejo que nossa viagem acabou em nada – reclamou Carol.
___ Podemos tentar ir novamente, com certeza não seremos...
___ Não, prefiro ficar quieta aqui mesmo. Sem minha mobilidade nas pernas me sinto muito indefesa.
___ Estarei sempre por perto para te proteger – consolou-lhe Manoel afetivamente. – É difícil te dizer isso depois de todo o mal que lhe causei, fui muito inconseqüente me juntando com aqueles pintores desumanos e sinceramente, não imaginava que eles fossem capazes de chegar a tal ponto, tudo por causa de um tesouro que nem existe, e eles sabem que realmente não existe.
___ Eu também pensava o mesmo, acreditava apenas na existência de um feitiço.
___ Não pensa mais? – desconfiou Manoel percebendo o jeito de Carol.
___ Preciso te mostrar algo, me leve até meu quarto e vai ficar muito surpreso com o que tenho para te mostrar.
No quarto donde estava se hospedando, Carol retirou de uma das malas guardadas de baixo da cama, o livro com os pergaminhos e também um saco preto donde escondera as barras de ouro. Manoel abriu o livro e revirou as páginas.
___ Não entendo nada disso aqui.
___ Pois eu tive todo o trabalho de decifrar e traduzir, mensagem por mensagem, folha por folha, cada linha, cada frase e passei muito tempo em cima de cada um desses desenhos.
___ Me conte logo do que se trata isso, onde estão as traduções?
___ Toda a historia é longa, vou reescrever no livro que estou escrevendo.
___ A denominada tradição de família?
___ Conhece?
___ Claro, já li o livro de sua avó Marta e também o de seu pai que foi o último a ser publicado.
___ Não leu o livro de Analice?
___ Ainda não, quando fui comprar já não havia mais, estava em falta e depois, quando teve o lançamento do terceiro, acabei deixando o segundo de lado. Quer dizer que você será a próxima?
___ Sim, escreverei tudo o que se passou comigo e continuarei levando a diante essa tradição de família.
___ Pois então deixarei para desvendar minhas curiosidades quando for ler o seu livro.
___ Mas tem algo que devo te confessar antes, se trata sobre isso – disse Carol entregando o saco preto a Manoel.
___ O que é isso?
___ Abra e veja.
___ Não é nenhum bruxedo, é? Ainda temo aquela coisa de feitiço.
___ Pois é, não sei se existia feitiço ou não, mas foi isso daí que encontrei. E acredite em mim, foi por acaso. É como se houvesse sido levada exatamente...
___ Puxa vida! – exclamou Manoel de queixo caído quando percebeu o que era aquele material.
___ Isso daí é ouro.
___ Mas é incrível, tem uma fortuna aqui. Tem noção do que isso significa? Onde conseguiu isso?
___ É longa a historia e não tenho explicações do porque encontrei essas barras de ouro. É como se eu mesmo soubesse que elas estavam naquele local, ou como disse, é como se alguém tivesse me induzido a chegar e encontrar tudo isso. Creio que nada do que encontrei foi por acaso. Sinto tudo isso como um peso sobre minhas costas. Tenho até medo de imaginar o porque tudo isso veio parar em minhas mãos. É como se já fosse meu antes mesmo deu possuir, sabe como?
___ Curioso, estou encabulado até a alma agora. Meu coração parece que vai sair pela boca. O que vai fazer com isso?
___ Não sei ao certo. O livro eu pretendo guardar, pelo menos até escrever o meu próprio.
___ Estou falando do ouro.
___ Pode deixar que na hora certa saberei o que fazer com ele – disse Carol retirando a barra de ouro das mãos de Manoel e novamente a guardando no saco preto. – Posso confiar de que não vai me roubar essas barras de ouro? – perguntou Carol seriamente.
___ Te dou minha palavra.
___ Tu es um policial e já prometeu me proteger, nada de querer me roubar. Compreenda que existe um motivo muito grande que me fez chegar até esse ouro e sinceramente, sinto medo por isso.
___ Realmente, parece tão preocupada. Qualquer pessoa em seu lugar estaria pulando de contentamento.
___ Já percebi o quanto minha vida correu riscos depois que encontrei esse livro e principalmente depois que achei sem querer essas barras de ouro.
___ Foi o mapa que a levou até o ouro?
___ Não, mas de forma praticamente inconsciente, creio ter sido através dele que descobri o ouro no local onde fui parar por acaso do destino. Uma eventualidade que tem para mim um porque desconhecido, um motivo, uma causa que não consigo perceber. Porque dentre milhões de pessoas fui encontrar essas coisas? Porque tenho de passar por assalto, acidente e até mesmo um amor que não queria para mim? Preferiria nunca ter encontrado esse livro ou esse ouro. É como se meu mundo tivesse mudado totalmente de um instante para outro e esse instante foi exatamente quando entrei naquele internato para fazer o orçamento da arquitetura, encontrei o livro e fui vista por aqueles pintores.
___ Você me deixa assustado. Será que esse ouro não é o próprio feitiço?
___ Não, creio que não. Mas sinto que existe uma carga muito forte de energias em torno de todo esse material. E acredito não serem nada boas.
___ Mas então se desfaça dessas coisas.
___ Farei isso quando convier. Como disse, nada veio parar em minhas mãos em vão. Não sei ao certo o que farei com todo esse ouro, mas eu o sinto como uma imensa responsabilidade acerca de qualquer decisão que eu possa tomar.
___ Sabe o que eu faria em teu lugar? – perguntou Manoel com tom de brincadeira.
___ Diga – sorriu Carol imaginando que Manoel ia dizer-lhe alguma bobeira.
___ Pedir-lhe-ia em casamento e convidaria todo o mundo. Ia fazer um ambiente inspirado nas fabulas de “As mil e uma noites” e assim marcaria a cerimônia de noivado. Ia dar um tempo no trabalho e apreciar as coisas mais interessantes da vida, como viagens, um bom carro, uma casa nova e até mesmo um emprego por conta própria, algum negócio produtivo, tendo meus funcionários e sendo eu o gerente engravatado.
___ Pois para mim, as coisas mais interessantes na vida não giram em torno dos objetos materiais, mas das atitudes que tomamos, na saúde que possuímos, os sentimentos e relacionamentos humanos. Esses são os tesouros mais valiosos que podemos adquirir na vida. Acredito que nem mesmo a maior das barras de ouro do mundo possui valor quando não somos preenchidos de bons sentimentos, da felicidade de amar e ser amado constantemente por todos aqueles que nos rodeiam. Quanto à possibilidade de casamento, saiba que isso ainda não é nem cogitado de um dia sequer ser planejado.
___ Pois lhe compraria um vestido lindíssimo e faria a festa em seis tendas.
___ Como assim?
___ Uma cerimônia em estilo árabe egípcio. Gosto tanto dessas coisas como se já houvesse algum dia sido um habitante do Nilo. Lá daquelas regiões próximas ao Mar Vermelho. Na verdade gostaria de algo marroquino bem egrégio.
Carol arrepiou-se com aquelas palavras e continuou atenta escutando o que Manoel dizia.
___ Contrataria organizadores de malabaristas, dançarinas do ventre e músicos. Garanto que teria até mesmo pássaros exóticos e camelos de verdade para completar o ambiente mágico. Parece até mesmo que eu sou um descendente de sírios e libaneses, mas não sou. Bem que adoraria ser. Arrumaria um padre de uma igreja ortodoxa oriental e celebraria a benção da nossa cerimônia de noivado. Contrataria uma industria fotográfica e montaria um jantar composto de cinco pratos feitos todos com comidas típicas. Os homens se vestiriam de preto e as mulheres usariam nas roupas e nos adereços as cores de pedras preciosas, como esmeraldas, safiras, rubis e diamantes. Eu ia ser o único homem a vestir roupas brancas e você reluziria no seu vestido dourado. Depois da festa poderíamos fazer uma viagem bem distante para um local não revelado. Quem tem possibilidade de esbanjar, ter poder e dinheiro, viver na mordomia e se dar ao luxo de viver cercado de maravilhas é que vive num paraíso. É impossível que não concorde com isso.
___ Depende do ponto de vista e do momento pelo qual vivemos.
___ Pois para mim depende até mesmo da criação que nos foi concedida. Dinheiro nunca lhe faltou e por isso faz pouco caso do que acabei de falar.
___ É por sempre ter tido dinheiro que lhe garanto, ele é apenas um mero instrumento em nossas vidas e quando não é utilizado corretamente, apenas nos trás desassossego e dor de cabeça. Existem muitas coisas mais importantes do que a matéria, mas nem sempre nossos sentidos ainda tão inferiores estão preparados para captar esses elementos ocultos.
___ Você fala de uma forma.
___ E então, o que vai ser de suas férias agora? – perguntou Carol mudando a conversa de rumo.
___ Não sei, poderíamos ir jantar fora.
___ Tudo bem – concordou Carol.
___ Gostaria que me respondesse algo com muita sinceridade.
___ O que foi?
___ Se sente à vontade vivendo aqui no meu apartamento? Fico receoso, meu lar não chega nem aos pés do local donde morava.
___ Estou bem e também posso lhe dizer que gosto daqui, de verdade. É legal notar que você conserva uma espécie de tropicalismo com o jardim da varanda e as plantas que cuida dentro desse pequeno local.
___ Sim, meu apartamento é pequeno.
___ Pois as plantas animam os cômodos.
___ Eu procuro todos os cantos mais iluminados para colocar um vasinho com orquídea e as helicônias. Lá na varanda eu cobri o piso com uma camada de seixos e o resultado foi aquele.
___ Os bambus têm um verde muito encantador – observou Carol.
___ A palmeira, a pitangueira e a jabuticabeira me custaram caras.
___ Pois seu apartamento tem uma personalidade bem própria e adoro ficar na companhia de suas plantinhas. São elas quem me fazem companhia. Combina muito com a decoração do ambiente e falando por base nos meus estudos de arquitetura e decoração, posso dizer que seu apartamento é bem divertido de se morar. Quando aqui estive pela primeira vez, devo confessar que achei um pouco estranho tantas plantas e vasos dentro de um apartamento, mas sabe que agora entendo e aprovo seu estilo.
___ Procurei pelas plantas mais resistentes, fáceis de manter e de adaptar ao espaço do meu apartamento.
___ Isso mostra um capricho especial de sua parte. Observei o quão bem você as trata.
___ Sim, gosto de minhas plantinhas. Se pudesse teria um animal de estimação, mas como em apartamento não é permitido, optei pelas plantas que inclusive dão menos trabalho para se cuidar.
___ Mudando de assunto, como vai seu trabalho?
___ Bem.
___ Me conte alguma coisa sobre sua vida de policial.
___ Tem horas que gosto dessa profissão, mas por vezes quero sumir do mundo e nunca mais ter de ver uma delegacia na minha frente. É bom e ao mesmo tempo é detestável, entende o que quero dizer? Vou te mostrar uma coisa, chegou ontem o que chamamos de inimiga oculta. Olhe só isso daqui – disse Manoel lhe mostrando um par de óculos que acabara de tirar de uma maleta.
___ Óculos de sol, o que possui de mais?
___ Não há criminoso que resista a um óculos desses, olhe bem aqui no canto, ele possui uma microcâmara escondida.
___ Mas isso é um instrumento que ofende o direito à privacidade humana – comentou Carol.
___ Pois para nós policiais isso daqui é uma ferramenta preciosa na denuncia de todo tipo de crime. Graças a ele, os espectadores puderam constatar que fiscais da prefeitura cobravam gordas propinas de comerciantes. Também tiveram a chance de assistir a confissão de um médico ortopedista que foi flagrado enquanto bolinava sua cliente durante uma consulta.
___ Interessante. Não andou me filmando com esse negócio, andou?
___ Não – sorriu Manoel. – Mas não é só isso.
___ Inimiga oculta, esse nome combina mesmo.
___ Alguns chamam de Cabeça de agulha. Essa coisinha aqui capta imagens por um orifício de apenas um milímetro de diâmetro. É um truque manjado colocá-la numa maleta como essa daqui. Os detetives particulares que servem a mais números de clientes dispõem de uma engenhoca como essa daqui para filmarem cenas de adultério. Já ouvi pessoas dizendo que isso daqui é um objeto estapafúrdio, mas eu discordo completamente. Para quem trabalha com espionagem existem microcâmeras camufladas em relógios, celulares, botões de roupa, gravatas, canetas, etc.
___ Mas não é um ato ilegal filmar alguém em segredo?
___ Não. Quem não tem culpa não teme. Existe discussão acirrada, os críticos dizem que a filmagem é considerada lícita apenas se feita por um dos interlocutores da conversa ou transação. Quando feita por um terceiro qualquer pode ser sim considerada ilegal, do mesmo modo que a legislação proíbe a escuta telefônica. Eu tenho esse óculos e também possuo uma microcâmera na minha pochete que filma até quatro metros de distância.
___ Isso me dá uma sensação horrível, é como se fosse me sentir sem liberdade de expressão.
___ Ninguém deve ter medo de perder a própria privacidade quando mantêm a consciência tranqüila.
___ O que realmente você gostaria de fazer como trabalho?
___ Como te disse, embora tenha horas que deteste o meu trabalho, eu gosto dele. Mas me sentiria mais interessado se pudesse trabalhar envolvendo meus talentos artísticos.
___ Como assim?
___ Tem pessoas especializadas para ajudar solucionar crimes juntando o talento artístico, a intuição e o treinamento com a medicina legal. Essas pessoas fazem a reconstrução facial com excepcional habilidade para visualizar o rosto de uma pessoa quando viva, simplesmente estudando-lhe o crânio. A partir desse tipo de imagem, eles elaboram um tronco de gesso e fotos são espalhadas na televisão, bem como impressas na esperança de identificação definitiva. Também têm pessoas que fazem desenhos artísticos muito perfeitos apenas com definições dos traços do sujeito criminoso detalhado num depoimento. A taxa de êxito geralmente para ambos os casos chegam a oitenta e cinco por cento. Quando as vitimas são por fim identificadas, freqüentemente se assemelham muito às imagens de gesso, até mesmo no estilo dos cabelos.
___ Que interessante!
___ Já examinei alguns materiais desses. Têm todo um procedimento de preencher com bolas de argila branca as cavidades oculares do crânio e depois prender sobre os ombros de gesso. Tenho um amigo que já trabalhou em casos similares para as policias municipais e estaduais. Também se espalha argila sobre os dentes e aos poucos o crânio se transforma em um rosto totalmente esculpido grosseiramente, com lábios franzidos, do tipo que encaram o próprio escultor com olhos que não vêem. Cheguei a ir a casa desse colega de trabalho e no entorno de suas mesas de trabalho, tudo o que se via eram esboços de gesso de antigas vítimas de homicídios que observam de seus lugares nas prateleiras.
___ Mas parece tão complicado mexer com isso – Carol transmitiu seus pensamentos assim que os teve.
___ Esse antigo colega de trabalho antes levava a vida com dificuldade, mantendo sua família com a profissão de fotografo, mas depois que descobriu seu talento com esculturas, trocou todas suas máquinas fotográficas por gesso e pincéis. Freqüentou até mesmo algumas aulas de arte e desenho. Já interessado por algo novo e diferente para a época, ele agarrou a oportunidade de trabalhar com reconstrução quando foi ao necrotério a fim de ter uma espécie de lição de anatomia sobre o perfil dos traços cranianos. Nesse momento já andava participando também das aulas da medicina legal. Imagine que sua mais perfeita reconstrução se tratou de uma mulher cujo corpo fora encontrado depois de três anos de sua morte, porém o mesmo ainda permanecia em estado de decomposição, estranho não acha?
___ Não sabia que um corpo poderia demorar tanto para degenerar ou decompor.
___ Pois por incrível que pareça o dessa mulher foi assim. Se não me engano ela estava num pátio de patinação e não se sabe como, o gelo trincou e ela caiu sem ninguém constatar o acidente. Não me lembro às explicações patológicas sobre o caso. O sucesso no trabalho com reconstrução é sempre muito notável tanto nas delegacias quanto na medicina legal.
___ Acha que isso seja mais interessante que ser apenas um policial.
___ Sem dúvida, não acha o mesmo?
___ Sim, parece que sim. Acho que já havia lido alguma reportagem falando de um livro a respeito de crimes reais com reconstituição dos criminosos através de esculturas.
___ Hoje em dia já existem livros e até mesmo filmes que mostram isso. É interessante o processo.
___ Espere um pouco, tem um cílio caído no seu rosto – disse Carol levando a mão para tirá-lo.
Retirando o pequeno cílio de baixo do olho de Manoel, Carol colocou-o na palma de sua mão e olhou para o profundo dos olhos de Manoel retornando depois a olhar para o cílio.
___ Pequeno não? – indagou Carol com um sorriso.
___ É, quero dizer, como assim?
___ Não acha que é pequeno?
___ É do tamanho de qualquer cílio – respondeu Manoel.
___ Pois mesmo assim é minúsculo diante do universo.
___ Mas existem coisas menores e muito mais minúsculas.
___ A única coisa que quero te mostrar é que todos os problemas que se passaram conosco são do tamanho desse cílio em relação ao sentimento que nos une.
___ Desse jeito você me emociona – sorriu Manoel abraçando-a sem saber o que dizer.
___ Me sinto tão mal nessa cadeira de rodas. Perdi minha liberdade de andar, de me mexer por completo – chorou Carol num resmungo.
___ Os médicos disseram que sua chance de voltar a andar é possível e real. Sei que vai andar novamente. Tenho certeza disso.
___ Pois para mim está sendo atormentável, não sei até quando vou agüentar isso.
___ Fique calma, garantiram que você não ficara assim para o resto de sua vida.
___ Mas porque tenho de esperar tanto tempo para começar a fisioterapia?
___ Os médicos é que sabem, não deve ficar se questionando.
___ Pois me arrume um andador que quero sair logo desse estado, não vou esperar médico algum. E já providencie uma muleta para garantir mesmo...
___ Não se precipite – pediu Manoel tentando acalmá-la. – Vá se arrumar, eu vou levá-la para dar uma volta e depois vamos jantar, tudo bem?
___ Tudo bem. Pode me ajudar de novo?
___ Claro – respondeu Manoel graciosamente com respeito virando a cadeira de Carol.
___ Nunca tive tanta dificuldade na vida para tomar um banho.
Carol estava usando apenas vestidos abertos na frente que facilitavam sua troca de roupa. Para tomar banho, Manoel retirava-a da cadeira e a colocava num banco plástico de modo que ela mesma conseguisse se despir e tomar sozinha o próprio banho. Depois que se enxugava e com muito custo colocava outra roupa, Manoel ia lhe carregar para seu quarto. Aquela situação era bastante constrangedora para Carol uma vez que não possuía grande intimidade com Manoel. Tudo era muito difícil, principalmente pela falta de costume de fazer tudo sentada, mas de algum modo ela ia enfrentando aquela situação. Manoel lhe propusera de contratar uma ajudante, mas Carol sem querer incomodar não aceitou a idéia. Já se sentia um pouco sem graça por estar ocupando o apartamento dele e lhe causar tantas preocupações e transtornos.
Na mesa, enquanto aguardavam a refeição, Carol e Manoel trocavam olhares carinhosos quase num clima de namoro. No menu, pizza napolitana e vinho tinto davam o toque italiano ao jantar. Manoel escolhera um dos melhores restaurantes na zona sul da cidade.
___ De vez em quando venho aqui com alguns amigos tomar um chope e comer uma pizza.
___ Ainda não tinha vindo aqui.
___ Desde nossa ultima conversa estou refugando para não lhe perguntar algo, mas serei obrigado a perguntar-lhe agora.
___ O quê?
___ Acha mesmo que é impossível a idéia de algum dia ser minha noiva?
___ Não vou pensar mais nada a respeito do meu futuro, já vi que ele é mais incerto do que meus pensamentos. As coisas acontecem de forma tão inexplicável que nem sei o que devo planejar para daqui a diante.
___ Como gostaria de realizar o evento de noivado ou a festa de casamento?
___ A meu pedido tudo seria simples, intimo e elegante. Luxo e ostentação seriam jogados para escanteio – riu Carol.
___ Eu não acredito que namoros longos antes do casamento tenham resultado melhor. Quando encontramos a pessoa certa, em pouco tempo percebemos que ela é tudo em nossa vida e se o amor é o ideal nas vidas de ambos, o casamento é mais ainda, para unir as duas almas – disse Manoel olhando bem nos olhos de Carol como se fizesse uma declaração romântica.
___ Eu preferiria uma festa num jardim bem decorado com flores do campo. Mas não pretendo me casar tão cedo – ela garantiu.
___ Vejo que para conseguir amar com simplicidade é preciso saber demonstrar amor e pelo visto, o simples é o contrario do fácil.
___ Sinto-me aliviada por ter lhe dito sobre o ouro.
___ Não se preocupe, como disse, por certo ele estava predestinado a chegar até suas mãos e tenho certeza de que o usará da melhor forma possível.
___ Estive pensando em fazer uma doação, talvez várias doações.
___ Não considera como sua aquela fortuna? Quer se desfazer dela por achar que todos esses males que sofrestes são decorrentes daquele ouro?
___ Farei o que deixar minha consciência tranqüila. Não preciso daquele dinheiro, sempre tive uma vida muito controlada financeiramente e espero me recuperar logo para retornar a andar e voltar ao meu trabalho que tanto gosto.
___ Porque não cria uma fundação?
___ Fundação do que?
___ Não sei. Uma instituição qualquer dessas de caridade.
___ É – respondeu Carol muito pensativa.
___ Posso dar um conselho, uma opinião?
___ Fique a vontade.
___ Pensando nessa possibilidade, acho que no momento atual seria muito importante você pensar num núcleo de proteção a criança e ao adolescente. Eu posso lhe ajudar e te apoiarei em todos os sentidos sem maiores interesses que não sejam os de ajudar aos mais necessitados. Poderíamos fazer uma operação policial visando punir os responsáveis por difundir a pornografia infantil via internet. São inúmeras as pessoas de diversas classes sociais e de varias nacionalidades que vão para a cadeia por conta desse tipo de crime, sem direito a nenhuma fiança. A pedofilia via internet se multiplica com a mesma velocidade da tecnologia digital e desafia as polícias. Precisa rapidez na troca de informações e uma legislação absolutamente severa. Já existem núcleos de proteção a crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual e maus tratos, mas você poderia criar uma delegacia especializada no atendimento a vítimas de violência, tendo médicos e psicólogos, com assistência total. Policiais assim como eu poderia receber treinamento especializado. Gostaria de um trabalho assim, criar um ambiente que oferecesse segurança e conforto sem constrangimento.
___ Tinha pensado numa doação a algum hospital que faça transplante de medula óssea, sei o quanto é importante à alternativa de tratamento a crianças carentes e que possuem algum tipo de câncer. Se gasta muito com cirurgias, quimioterapia, radioterapia, e principalmente com a minimização das multiplicações anormais de células doentes. Talvez pudesse criar um hospital com atendimento gratuito, com condições adequadas para pós-operatório longe de possíveis contaminações.
___ Mas devemos pensar que aquelas barras de ouro não dão para construir, montar e manter um hospital de tal nível por muitos anos.
___ Sei disso, mas depois poderemos contar com a iniciativa de leilões e bingos beneficentes.
___ Pois eu prefiro auxiliar crianças vítimas de violência domestica ou que sofram qualquer tipo de agressão, seja pela pornografia infantil ou por qualquer mau trato e abuso.
___ É, sua idéia parece realmente melhor do que a minha. Depois decido sobre isso.
___ Tudo bem. Posso te perguntar algo?
___ Claro, não se acanhe.
___ O que diz naquele manual cigano que está lendo?
___ Acredita que ganhei aquilo na promoção de uma livraria a muitos anos atrás e ainda não tinha lido. Lá fala sobre os símbolos.
___ Você gosta de simbolismos, estou certo?
___ Sim. Quer que lhe fale sobre alguns?
___ Quero sim.
Terminando de comer, os dois continuaram na mesa conversando como se ainda não houvessem terminado a refeição.
___ O punhal significa luta, é o símbolo que determina sedução e ousadia. A coroa simboliza o conservadorismo à elegância, a praticidade e a persistência. As candeias eram usadas para iluminar os acampamentos dos ciganos e representam clareza de idéias. É símbolo da inteligência, do brilho da luz. A roda é símbolo de mudanças constantes, de insegurança.
___ Faz sentido. Continue, não sabia dessas coisas.
___ A estrela veio ao mundo para brilhar e é símbolo de carisma, de amizade. A de seis pontas traduz-se em equilíbrio de espírito. Já o sino era um objeto usado como relógio comunitário nas comunidades dos ciganos e, portanto representa a disciplina, a organização e também a ambição. A moeda tem dois lados e quer dizer justiça. A adaga é símbolo do mistério total, da força e do respeito. O machado representa intuição, ação, aventura e bom humor, não me lembro porque. A ferradura é usada pelos animais e representa esforço, força de vontade. A taça representa a fissura para tudo, a disposição e a extroversão. Também pode ser símbolo da fidelidade e sinceridade. Quanto à capela, esta pode representar a fé, os sonhos, a emoção e as forças espirituais. Existem milhares de símbolos, depois se quiser pode ler o manual, é interessante, mas nada disso tem muito sentido real se for analisar bem.
___ Falando nisso, estou me recordando do sonho que tive esta noite. Quero que me diga com sinceridade, acha que é possível existir algo entre nós? Tenho tanta vontade de te pedir em namoro, mas acho que é cedo para isso e fico constrangido de...
___ Pois lhe tiro as esperanças, não teremos nada um com o outro – interrompeu Carol.
___ Quer dizer que não tenho nenhuma chance? Nem se conquistá-la?
___ Você já me conquistou, mas não pretendo ceder aos seus encantos.
___ Porque não?
___ Não acho que seja viável ou prudente de minha parte. Por acaso sonhou que estava namorando comigo? – perguntou Carol indo direto ao assunto.
___ Não, foi um pouco diferente. Sonhei que você estava grávida.
___ E você era o pai?
___ Não sei.
___ Não quero filhos tão cedo – comunicou Carol. – Além de dar muito trabalho ainda é um risco muito grande para uma mulher, minha mãe morreu no parto e talvez por isso tenha medo de que o mesmo venha a me acontecer. Para mim já chega o fato de estar numa cadeira de rodas, nada de filhos por enquanto e muito menos um namorado, já sofri muito com a separação de Joaquim.
___ Vai sofrer quando se separar de mim?
___ Sim, obviamente. É por isso que não manterei maiores intimidades contigo.
___ Mas não disse que está envolvida e apaixonada por mim?
___ Os sentimentos não valem de nada quando devemos agir com a razão.
___ Não está sendo muito dura consigo mesma?
___ Não, faço isso apenas para não sofrer depois. Para dizer a verdade, não sei como estou tendo coragem de morar contigo lá no seu apartamento. Tudo bem que você salvou a minha vida, mas também já estou passando dos limites.
___ Porque pensa assim?
___ Estou lhe causando preocupações e transtornos, pensa que não sei?
___ Estou feliz em tê-la no meu apartamento. Viver sozinho era um sofrimento muito grande, uma solidão insuportável. Você não está me dando trabalho nenhum, é um prazer chegar e ter alguém para compartilhar o mesmo ambiente do lar, dividir meus sentimentos e desabafar aquilo que penso.
___ Ainda somos muito estranhos um para o outro.
___ Eu sinto o mesmo certas horas, mas em outras, tenho a impressão que lhe conheço há tanto tempo – comentou Manoel pensativo.
___ Somos incógnitas, uma frente à outra.
___ Porém, mais profundo a isso, existe algo que nos uniu e continuou nos deixando junto.
___ Sei disso e confesso que é exatamente esse fato que me amedronta. Mas conte-me como foi seu sonho.
___ Já lhe disse, sonhei que você estava grávida.
___ Tens vontade de ser pai?
___ Sim, bastante. Não agora, mas algum dia. Eu cresci sem o carinho de um pai e em algum momento de minha infância guardei como meta me tornar um bom pai um dia.
___ Se tiver com seus filhos o mesmo cuidado e zelo que tens com suas plantas no seu apartamento, lhe garanto que será sim um bom pai.
___ Para mim, a primeira responsabilidade de um pai é a de estar presente e não perder os acontecimentos mais importantes da vida de seus filhos. Durante muitos momentos de minha vida fiquei imaginando como seria se pudesse ter um pai verdadeiro por perto. Foram estas lembranças que guardei e que quero tornar reais quando puder ter meus filhos. Não sei se meu primeiro filho vai ser planejado ou se serei pego de surpresa, despreparado, num momento em que estiver atolado de trabalho, atarefado e fatigado. Espere um pouco, também sonhei com uma criança. Estávamos num piquenique. Eu acabara de fugir dos meus compromissos de...
___ Continue – insistiu Carol.
___ Vai rir quando eu disser, tem horas que sonhamos cada besteira.
___ Pois diga, não vou rir, prometo.
___ Quase perdi o piquenique por conta dos meus afazeres e das decisões que tinha de tomar como faraó.
___ Andou lendo minhas traduções?
___ Não.
___ E nem remexeu no livro que estou escrevendo?
___ Não, porque?
___ Me jura que realmente sonhou com isso?
___ Claro, porque o espanto, o que tem naquele livro que encontrou que eu não sei e nem posso ficar sabendo?
___ Vai saber quando publicar meu livro.
___ Não tenho nada a ver com um faraó, não sei porque tive esse sonho, nem ao menos vi filme nos últimos dias que pudesse fazer minha mente produzir isso.
___ Continue me contando do piquenique – pediu Carol empolgada.
___ Estava eu e meu filho sentado num jardim próximo ao local donde morávamos.
___ E a mãe da criança, não estava junto?
___ Não.
___ Certo, continue.
___ Meu filho estava sentado na grama. O sol batia em seu pescoço, ele estava sujo e suado, tinha brincado toda a manhã. Naquele momento em que cheguei, ele estava encolhido observando um gafanhoto que andava no meio da grama. Quando o bicho ficava em fuga quase fora do alcance, meu filho armava uma barreira com os dedos. Vendo que eu acabara de chegar, ele me mostrou o pequeno inseto e comentou alguma coisa mais ou menos assim: Ainda bem que chegou, estava com medo que o gafanhoto fosse embora e você não pudesse vê-lo, olhe só, ele não é uma gracinha? Não sei o que um sonho assim pode querer dizer, mas pensando bem, ele me ensinou algo muito importante. Existem momentos que são únicos e minutos que são preciosos. Sentado na grama já com as pernas dormentes de observar meu filho brincando com aquele inseto, acordei ainda sentindo a mesma formicação nas pernas.
___ É interessante seu sonho.
___ Quando tiver meus filhos, quero estar presente na vida deles a cada minuto, assim como não pude pessoalmente desfrutar disso no decorrer dessa minha existência. Só podemos usar as boas lembranças quando as temos em memória, quando transformamo-las em realidade e a fazemos existir. Alegrarei-me de pensar que um dia, darei aos meus filhos a alegria que não pude ter. Não serei nenhum pai super protetor, pois a experiência de uns não vale aos outros e cada um deve aprender por si próprio a viver, mas carinho e amor na dose certa não irão faltar.
___ Você está falando e fico aqui a pensar, o que vai ser de mim?
___ Tudo vai se ajeitar. Tenha fé.
___ Eu reclamo de mais, sei que existem pessoas em situações muito piores do que a minha e mesmo assim fico desse jeito, deprimida sem motivos. Tento colocar na minha cabeça que estou passando por um momento ruim e nada disso é o fim do mundo, porém, me sinto tão arrasada, sem forças – disse Carol com os olhos cheios de lágrimas. – Fico lamuriando como se tivesse toda a vida condenada ao sofrimento e apenas enxergo as coisas ruins que me acontecem. Ultimamente tenho sido tão pessimista que nem consigo de fato me reconhecer. Estou sendo injusta rezingando desse tanto da minha sorte. Porque não consigo ser uma pessoa resignada? – chorou Carol por fim. – Tenho a vida que mereço e sei disso.
___ Não é só você, a maioria das pessoas está descontente com a vida que têm e acha que só os outros é que são felizes.
___ É isso que sempre me desgosta, enquanto muitos me invejam pela vida que tive, por ser filha de quem fui, eu choro e sofro as escondidas. Podemos ir para casa? – pediu Carol.
___ Claro, vou pedir a conta.
Num instante, os dois retornaram para o apartamento e antes de subirem, Carol pediu para que Manoel ficasse com ela próximo ao playground donde algumas crianças brincavam.
___ Ainda quero ficar mais um pouco fora daquele apartamento, não que ele seja cansativo, mas sei que logo vai acabar ficando e o quanto puder evitar ficar presa por lá... Entende?
___ Claro – concordou Manoel.
___ Deveria avisar minhas irmãs, sinto tantas saudades delas, principalmente de Rosalinda que sempre foi uma mãe para mim e minha irmã gêmea.
___ Porque não faz isso?
___ Não quero preocupá-las. Quando voltar a andar retornarei para minha cidade e não pretendo mais sair de lá.
___ E eu?
Carol se calou olhando para Manoel até que por fim disse sem remorso:
___ Você continuará sua vida e eu seguirei a minha.
Manoel se calou observando o vento levar as folhas caídas no chão. Olhando em seguida para o poste de iluminação sentiu a luz forte penetrar em seus olhos e lhe ofuscar as vistas. Colocando a mãos no rosto, Manoel apertou os olhos novamente voltando seu olhar para o chão.
___ Sabe me dizer se observou no seu sonho como era o local donde morava? – perguntou Carol momentos depois dando fim ao silêncio dentre eles.
___ Não sei ao certo explicar, parecia-se com uma fortaleza e no centro geométrico, junto a uma parede, existia uma torre. Ali tinha uma fileira de ordenadas gaiolas com corvos. E creio que eu era o mestre dos corvos, o único que podia me aproximar deles. Posso te dizer uma coisa?
___ Diga.
___ Depois que veio para meu apartamento, tenho tido sonhos muito estranhos e parecem ter uma seqüência embora para mim seja muito sem sentido.
___ Pois conte-me – pediu Carol com um brilho diferente nos olhos.
___ Já andei sonhando com corvos por duas vezes. Num dos sonhos eu organizava as gaiolas e servia os bichos com pedaços de carne crua. Nas ameias das muralhas, os falcões selvagens aguardavam para mergulhar no local e roubar a comida dos corvos. Já sonhei que estava sentado no gramado brincando com os corvos. Isso não é um absurdo? – riu Manoel.
___ Estou gostando, conte-me mais, por favor – pediu Carol também sorridente.
___ Não tenho mais nada a contar, acho que tais sonhos são confusões que minha mente faz, principalmente quando tenho algum caso novo para investigar e incriminar.
___ Você não tem censo de culminância no seu trabalho, tem?
___ Em que sentido? Não entendo sua pergunta.
___ No sentido de ser perfeito em tudo o que faz.
___ No princípio eu tinha, mas já sofri muito por isso. Por mais que faça o melhor de mim mesmo, não tenho como fazer sempre coisas perfeitas se ainda sou um ser imperfeito.
___ Entendo.
___ Foi difícil, mas acabei aprendendo que muitas desgraças podem ser atribuídas à noção de que errar dá margens aos outros de ter razões para não sermos amado. Ninguém precisa ser perfeito para ser amado pelo seu próximo se todos nós ainda somos seres imperfeitos. Digo isso honestamente olhando para minha própria vida. Lido com problemas de inúmeros condenados e sei do que estou falando. Nada nos faz sentir pior com relação a nós mesmos do que a convicção de que não merecemos ser amado. E é esse sentimento que temos quando somos perfeccionista e erramos gravemente.
___ É verdade – comentou Carol.
___ A desaprovação num momento errado pode apenas piorar a situação de uma pessoa. Deus não nos mantém em padrões rígidos acerca do certo e do errado, nem obriga que sejamos perfeitos. Ele apenas garante a perfeição como alvo final a todos os seres, mas não nos condena quando erramos. Tudo o que temos são as conseqüências das quais ninguém consegue fugir. Deus sabe de tudo, até mesmo dos nossos pensamentos mais secretos e nem por isso se intromete no livre arbítrio que temos. Aprendemos com nossas escolhas e quanto mais erramos, mais chances nós temos de fazer correto. A vida é assim e ninguém escapa dessa verdade. Não podemos estabelecer padrões que não conseguimos alcanças, porém, sem martírios ou punições o esforço deve ser contínuo. O ser humano não é perfeito ainda. Enfrentamos situações de tamanha complexidade que não estamos ainda aptos a poder agir corretamente e com perfeição em todos os instantes ou acontecimentos. Devemos sempre lutar para fazer o melhor de nós mesmos, mas saber que o sofrimento de errar é o mais importante no aprendizado de uma derrota. Nossos erros não devem ter peso de culpas sobre nós, mas sim de aprendizado e ser sinal de melhoria para o próximo passo. As culpas devem ter ligação aos atos e não as pessoas. A culpa é útil também para motivar mudanças e assim deve ser, pois é totalmente destrutiva quando paralisa a pessoa e a deixa com sensação de indignidade e desmerecimento.
___ Você fala como se fosse um psicólogo.
___ Andei aprendendo boa parte disso tudo com os erros que cometi ao lhe conhecer. Na minha opinião, quando erramos, criamos situações em que boa parte de nosso ser fica em guerra com o lado fraco e egoísta. Perdemos a ação do tudo que nos faz reparar as coisas e realizar ações importantes. Um homem que tem tudo é, sob meu aspecto de ponto de vista, uma pessoa pobre, pois nunca soube o que é ansiar, esperar, nutrir a alma com o sonho de algo melhor para si. Nunca saberá o quanto é importante encontrar o que nunca teve, mesmo que através dos erros.
Manoel falava tão intensamente que seus olhos refletiam um fulgor inédito.
___ Foi assim que eu encontrei o amor. Agora apenas espero dar valor ao que encontrei e investir nesse sentimento para receber de quem amo algo que sempre quis e nunca tive – continuou Manoel tendo os olhos úmidos de lágrimas. – Mas não serás minha cativa prisioneira se realmente quiser ir embora para sempre. Já valeu por tudo o que aprendi e pelos doces e delicados momentos que pude ter ao seu lado. Como você mesmo disse, seguirei a minha vida e você irá atrás da sua. Ficarei realmente triste se o tempo me disser que minha vida não será ao seu lado, mas não serei contra o destino dos acontecimentos e das suas decisões. Desejo que você seja feliz ao lado de quem quer que seja e principalmente de que se realize. Devo dizer que vai superar tudo isso. Saiba que há integridade em quem aprende que é forte o bastante para atravessar uma tragédia e sobreviver, ver que pode perder alguém e ainda se sentir completo pelo pouco que com essa pessoa pôde estar.
___ Não fale assim – pediu Carol começando a se emocionar.
___ Nosso objetivo enquanto seres humanos é poder ganhar mais do que perder, mas também devemos aprender a conformar com as perdas. Hoje entendo algo que sempre soube e nunca aceitei, o fato de que a plenitude está em sermos corajosos o bastante para enfrentar nossas próprias imperfeições, em sermos fortes para perdoar, generosos para exultar com a felicidade alheia e finalmente sermos sábios para perceber que o amor é o maior sentimento do mundo e existe suficientemente para todos.
Manoel esfregou novamente a mão nos olhos sem mirar o rosto de Carol e em silêncio revirava seus pensamentos. Carol, sem ter o que dizer, também deixava suas lágrimas escorrer pela face. Uma enorme confusão tomava conta de si e seria impossível dizer o que se passava em seu coração naquele momento. Embora tivesse vontade de abraçar Manoel e lhe acalentar com palavras de consolo como ele mesmo tanto lhe fizera, ela permanecia intacta sem mover nem mesmo a pupila de seus olhos. Se pudesse, sumiria dali para nunca mais ter de aparecer. Mesmo não querendo, sentia-se revoltada com a vida que estava tendo e não encontrava maneiras de resolver toda aquela complicação sentimental que se passava consigo. Assim, apenas lhe restava seguir a vida naquele mesmo ritmo e aguardar pelos próximos acontecimentos.
Há 4 anos
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