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sábado, 14 de fevereiro de 2009

Capítulo 10 – Escrevendo a própria vida III

Ainda medicado com fortes remédios, Luiz sentia uma dor imensa por dentro de todo o seu corpo. Os diagnósticos constatavam que o peso dos destroços lhe causara danos irreversíveis e sem cura. Uma hemorragia interna fatal o fazia vomitar sangue e ter convulsões em pouco espaço de tempo.
Com o passar dos dias, enfrentando um tratamento de alto nível, Luiz ainda mantido em observação no hospital, era cercado de carinho pelas filhas, familiares e conhecidos mais íntimos. Embora os repórteres tentassem, Luiz não permitia que nenhuma notícia sua fosse dada ao vivo pela televisão ou em qualquer jornal. Mesmo fraco e entristecido, ele ainda sabia que sua vida não se findaria antes de terminar o seu relato de vida, a sua lembrança maior: um livro que desde tanto tempo se empenhava com dedicação e benignidade. Diante daquele ultimo acontecimento, Luiz se obstinava ainda mais em aproveitar o pouco tempo que imprevisto por certo lhe restaria e segurando a caneta com a ponta dos dedos, buscava lembranças e pensamentos positivos.
Saber que estava morrendo não era fácil e para suas filhas, que já não tinham desde criança uma mãe, a dor era ainda maior.
Luiz lembrou-se de sua infância quando costumava tocar piano algumas vezes. Seu pai não gostava muito que ele mexesse no piano, mas vivia lhe dizendo que um dia ainda ia lhe ensinar uma bela melodia.
“Eu adorava ver meu pai cantando, dançando ou demonstrando estar se divertindo de alguma forma. Certo dia ele chegou com um atabaque em casa e fiquei fascinado, porém, diferente do piano, o instrumento com o tempo foi ficando mudo e cobriu-se de poeira guardado num canto. Seu gosto realmente estava no piano”.
Um dos primeiros instrumentos que Luiz teve vontade de possuir foi um violão, comprado com seu próprio dinheiro. Imaginava que aprenderia a tocá-lo mais rápido do que os demais tipos de instrumentos, mas verificou que não tinha muito talento para aquilo.
“Lembro-me de ir para a escola de música pouco tempo depois e lá descobri alguns amigos que também almejavam o mesmo que eu tendo gosto pela melodia. Cheguei a tocar junto deles e tentei compor minha própria musicalidade. Jamais tinha o sonho de montar uma banda e ficar horas ensaiando como era desejo da maioria que ali estavam”.
Sem saber o que realmente queria, Luiz abandonou o violão e arrumou uma guitarra elétrica de marfim, com um amplificador que levava o som longe. Mas sua vocação também não estava ali.
“Durante algum tempo, o fato de eu ainda saber tocar algumas músicas, dava-me nova vontade de continuar me empenhando naquele mundo de sons, até que determinado dia nada mais me influenciou a tocar qualquer instrumento que fosse. Minha ultima tentativa foi com um violino que ganhei de um velho amigo. Se a guitarra amplifica, o violino parece comprimir e explicitar”.
Para tocar um violino era preciso mais sentimento do que ritmo e diante disso, Luiz sentia que estava novamente começando a tocar um instrumento sem dar fim ao estudo e prática dos outros.
“Ao deixar aquele mundo da música para trás, percebi que meu grande talento era outro. É engraçado analisar como tudo na vida muda, os costumes e gostos. Muitas coisas têm suas exceções, mas conforme a idade e os acontecimentos vão se passando, a vida vai tomando novos rumos e a mentalidade muda incrivelmente até mesmo sem percebermos. Meus pais sempre eram muito ocupados e sem irmãos ou crianças vizinhas com quem brincar, muitas vezes eu passava horas lendo ou reproduzindo batalhas famosas com minha imensa coleção de soldadinhos de chumbo. Meu pai sempre foi disciplinado e muito do empenho e autocontrole que hoje tenho me foi passado desde meus primeiros anos de vida. Posso dizer que ele era feliz, mas não permitia nenhum tipo de humor no seu dia-a-dia, estando sempre sério”.
A criatividade de Luiz se desabrochara uma vez que ele se mostrava totalmente desinibido, embora fosse sempre mantido pelas severas regras familiares de comportamento. A melhor maneira de agradar os pais era tirar boas notas no colégio e para isso, muitas vezes Luis se esforçava lendo textos e ficando sentado por mais de duas horas frente aos cadernos refazendo os exercícios dados em sala de aula.
“Estava entrando numa seleta universidade quando me inscrevi num curso breve de teatro de improviso. A principio apenas buscava abrir meus horizontes e vivenciar novas experiências, mas não demorou muito para perceber que de uma vez por todas, estava ali a minha vocação. Inesperadamente, havia descoberto o meu destino, a minha carreira. Compatibilizar os estudos na escola e o teatro era complicado, pois tudo em minha vida foi ficando em segundo plano e apenas tinha cabeça para ensaiar textos, fazer exercícios vocais e demais atividades que me eram passadas no curso de teatro. A principio tive medo que meus pais descobrissem e brigassem comigo, tendo assim a máxima cautela para agir sempre às escondidas. Porém, foi impossível uma vez que eu fui reprovado na maioria das matérias do meu curso superior de agronomia. Também, o que agronomia tinha a ver comigo? Nada, era apenas o que meu pai desejava que eu fosse, um agrônomo”.
Luiz não queria ser agrônomo e seu brilho de criatividade no palco demonstrava o que realmente ele queria ser. O teatro passou a ser a paixão de sua vida e seus pais tiveram de aceitar, pois em caso contrario, ele estava disposto a sair de casa e desaparecer em busca daquilo que julgava ser os seus ideais de vida.
“Meu pai não queria aceitar, pois achava que o teatro não era profissão”.
Sem nenhum apoio financeiro, Luiz ingressou numa universidade federal de cantos e artes donde se sentia à vontade para libertar seu espírito vivo e talentoso não só em improvisar, mas representar e imitar. Com os trabalhos que foram apenas aumentando, ficou evidente para qualquer um perceber que as interpretações de Luiz não se tratavam apenas de comédia. Logicamente ele não era apenas um comediante, mas alguém que tinha gosto pelo que fazia e capacidade para papéis sérios, com dedicação, equilíbrio e maturidade. Não demorou muito para conquistar palcos por todo o mundo e trabalhar em ritmo acelerado nos bastidores cinematográficos. Concorrer a Oscar e ganhar prêmios nem passava pela sua cobiça, mas não tardou a acontecer.
“Embora ainda me considere novo para morrer, de nada tenho a reclamar da vida que tive. Tudo foi muito bom enquanto durou e cada dia teve seu valor precioso, principalmente agora que não sei quantos dias mais terei pela frente. De toda forma, não quero me entristecer por isso embora a realidade seja imensamente cruel. É o meu instinto de conservação pela vida”.
Luiz não estava revoltado e nem desesperado, apenas dedicava todos os seus segundos escrevendo aquilo que mais julgava de importante para o lançamento do livro que se daria o mais breve possível.
“... O sol brilhava enquanto o barco navegava nas proximidades da entrada montanhosa de um dos portos, na bravia costa ocidental...” – escrevia Luiz relatando uma de suas viagens. - “... Uma imensidão de olhos observava permanecendo fixos na água. De repente, um dos companheiros apontou e gritou para que olhássemos naquela direção. A curta distancia, um imenso golfinho saltava a grande altura, desenhando um meio circulo contra o céu. O animal mergulhava de cabeça na água e em seguida, voltava a projetar-se no ar, saltando alegremente uma, duas, varias vezes em curvas graciosas. Ainda posso lembrar perfeitamente do cheiro de mar e a incrível sensação de liberdade que invadia meu peito ao ver aquela criatura tão maravilhosa dando seu espetáculo no mar. A aldeia isolada dos pescadores ficava do outro lado e foi divertido passar por lá. Era um mundo até então desconhecido que me fez ficar encantado. Naquele mesmo outono, os pescadores haviam percebido que o porto tinha atraído um novo golfinho que nadava sempre junto as traineiras...”
Ficou guardada com Luiz a tradição de que um golfinho era sinal de boa sorte. Todas as manhas e tardes, Luiz passava horas frente ao mar aguardando um novo espetáculo e realmente este sempre acontecia com a precisão de um relógio.
“Assim que a traineira deixava o píer nas primeiras luzes da manha, o golfinho a acompanhava, nadando brincalhão, ao seu lado. Ao anoitecer, quando os homens regressavam, corria ao encontro deles. Os banhistas e mergulhadores já haviam se acostumado com a presença encantadora do golfinho se interessando cada vez mais por aquela espécie. Ser como aquele golfinho, livre, brincalhão, afetuoso e companheiro ficou sendo um dos meus objetivos de vida e nunca me esqueci disto. Popular eu já era até de mais” – sorriu Luiz consigo mesmo ao escrever aquilo.
Grande parte do tempo, Luiz nem percebia as horas passarem, pois suas lembranças lhe desviavam do mundo real e concreto. Aquela retrospectiva de sua própria vida lhe estava fazendo um bem inimaginável.
“Os moradores locais da região caminhavam ao longo do penhasco coberto de relva para ver o golfinho de relance, ou levavam as famílias aos finais de semana em passeios de barco para visitá-lo”.
Experiências sobre viagens era o que não faltava na vida de Luiz.
“Veterinários e mergulhadores ensinaram o animal que passou a auxiliar no tratamento de dezenas de crianças doentes ou portadoras de deficiências. Aquela também era uma de minhas metas, poder ajudar o meu próximo em qualquer sentido. Essa foi à tarefa mais difícil que pouco consegui desempenhar, mas sei que fiz aquilo que estava em meu alcance. Tais lembranças são capazes de curar a minha dor e aliviar o meu pesar de estar à beira da morte. Muitos acreditam que o sofisticado sistema sonar dos golfinhos lhes permite perceber e responder ao estado emocional das pessoas. Acho que todos devem ser como os golfinhos, eles encarnam tudo o que vale a pena em nossas vidas, alegria, liberdade e amor, tudo coroado por sorrisos contagiantes. É com tal lembrança que no dia de hoje busco ter esperança e um sorriso no rosto”.
Luiz não se cansava de escrever e quanto mais pensava, mais idéias cintilavam em sua mente.
“Posso claramente dizer que embora a habilidade certamente seja necessária ao êxito, nunca poderá garantir felicidade e satisfação, a menos que se desenvolva algo chamado caráter. Um dos primeiros passos para formar o caráter é enfrentar uma escolha difícil, comprometer-se a mudar e manter-se firme na decisão. O que começa com um grande esforço acaba se tornando um hábito e este forma a capacidade de desenvolver a força de vontade em esferas mais importantes. Um fator essencial é a confiança, sendo fiel aos amigos principalmente na ausência deles mesmos. É de total importância reconhecer os erros e lidar de forma correta com aquilo que sai errado. É preciso coragem para confessar nossos fracassos e pedir uma nova chance. Faço isso o tempo todo comigo mesmo” – brincou Luiz consigo enquanto escrevia. – “O verdadeiro caráter começa dentro de casa, no próprio lar donde somos mais vulneráveis aos lapsos, sendo constantemente posto a prova. Ser um bom profissional como ator e, por exemplo, não ser um bom pai, em nada me adiantaria. Todos os nossos relacionamentos seguem o relevo da vida tendo altos e baixos, e é por isso mesmo que precisamos de equilíbrio para ter caráter sempre, em todos os momentos, independente do que aconteça”.
Naquele momento, embalado por novas emoções, Luiz recordou de algo que há muito tempo ficara adormecido em algum ponto de seu passado.
“Certa noite, minha mãe acordou com um barulho abrupto. Por um instante ficou deitada, imóvel e então ouviu que alguém andava pela casa imaginando que fosse meu pai”.
Luiz era apenas um bebê e somente tinha conhecimento de tal episódio por sua mãe lhe relatar a história enquanto ainda era um garotinho. Na época, o pai de Luiz estava dormindo num quartinho nos fundos do terreno, pois precisava de ventilação já que naquelas ultimas semanas sua crise de alergia voltara a atacar. Luiz que dormia no berço permanecia tranqüilo estando num dos cômodos principais da casa.
“Mas a questão era a seguinte, o barulho não se tratava do meu pai. Minha mãe despreocupada tentou voltar a dormir, mas segundos depois ficou encabulada pensando o que meu pai estaria fazendo naquele horário. Ela pode notar que a luz da cozinha estava acesa e logo depois se acendeu a do corredor. Minha mãe achando aquilo estranho foi até o berço e me pegou no colo como num instinto materno. Avançando pelo corredor, deparou com um sujeito que procurava por dinheiro. Pelo visto, ele procurara na cozinha, no escritório e estava revirando uma coleção de potes de cerâmica no corredor. Minha mãe ainda calma perguntou se o conhecia, mas era obvio que nunca o vira antes, estava falando com um ladrão. Este ao virar bruscamente, deixou cair moedas pelo chão e viu minha mãe de pijama, segurando-me adormecido no colo. A reação dele foi empurrá-la novamente para dentro do quarto. Ela sentiu uma onda de pânico dominá-la quando ele atirou-a sobre a cama. Vendo que ele queria pegar-me, minha mãe o chutou violentamente na barriga fazendo com que fosse arremessado no corredor caindo de costas. Assim, ela saltou da cama enquanto ele se recompunha levantando do chão. Minha mãe gritou com todas as suas forças e o ladrão pegando uma arma escondida no calcanhar, dentro da meia do pé direito, disparou pelo corredor na direção da cozinha”.
Ao mesmo tempo em que escrevia, Luiz recordava dos cômodos da casa donde vivera quando criança e imaginava sua mãe correndo para fechar a porta do corredor enquanto o ladrão forçava com o ombro para abri-la, empurrando sua mãe para o quarto mais uma vez.
“Na luta um contra o outro, minha mãe conseguiu correr até a cozinha donde pegou uma faca. Sem saber se defender e desesperada, o metal rasgou a palma de sua própria mão. Ela tornou a levantar a faca e em defesa própria enfiou o pedaço de metal no peito do ladrão. Em seguida, ele ainda teve força para puxá-la contra si e dar-lhe um soco com força. Minha mãe caiu no chão sentindo uma explosão de luzes em sua cabeça. Retirando a faca fincada no peito, ele ia golpeá-la quando ela já meio inconsciente começou a chutá-lo furiosamente”.
Cada fibra do corpo da mãe de Luiz, naquele momento de desespero, se concentrava na tarefa de sobreviver. Com um gesto veloz, ela tentou pegar a faca na mão do ladrão e apanhado de surpresa com a rapidez do movimento, ele deixou a arma cair.
“... Minha mãe pegou a arma sem hesitar, mas não tinha coragem de fazer nada e estava mais tremula e fraca que uma gelatina. Não demorou nada para que ele tomasse posse tanto da arma quanto da faca e assim, golpeasse-a perto da têmpora. Sem condições de continuar a se defender, minha mãe preparou-se para morrer. Mas sua preocupação maior fez indagar o que ia acontecer-me e essa idéia queimou-lhe no cérebro. Ela tentou mexer-se, mas não conseguiu sequer levantar os braços. Desesperada começou a gritar e unindo mais forças do que tinha, sem saber como, conseguiu pegar-me na cama, donde eu ficara aos berros, e entrando no banheiro bateu a porta com violência trancando-a em seguida. Minha mãe estava coberta de sangue e sabia que lhe restava pouco tempo se um socorro não chegasse logo. Ela me acalmou e pôs a escutar atentamente. Não havia movimentos na casa. Confiar em Deus era sua força naquele caos que se passava. Juntando força e coragem, ainda segurando-me com um só braço, ela arrastou-se pelo corredor e cambaleou até onde meu pai estava. Bateu com força na porta, mas não houve sinal, meu pai por certo tinha o sono pesado além do barulho do ar-condicionado ligado. Quando a porta finalmente abriu, apenas houve o segundo dele ampará-la, uma vez que ela já não conseguia mais ficar em pé. Não querendo voltar dentro de casa para pegar a chave do carro, meu pai segurou-me num braço e fez esforço para apoiar minha mãe até a casa vizinha donde pôde pedir socorro. Antes de entrar no hospital, minha mãe parou e deixou escapar um arquejo. Lá estava o ladrão diante da porta, com curativos no peito, no ombro direito e a cabeça enfaixada. Quando a polícia chegou para prendê-lo, os médicos atendiam minha mãe saturando as feridas e fazendo uma transfusão de sangue. Mais tarde eles disseram que o gesto de manter-me apertado contra o seu peito, enquanto estivera sentada no chão do banheiro, havia reduzido o fluxo de sangue dos cortes e provavelmente salvado sua vida. Mas o que a salvou foi à fé e tenho certeza disso. Minha mãe passou por uma recuperação lenta, principalmente do trauma que muito a abalou. Ela recebeu visita de amigos e vizinhos no hospital e revelou a estes que mesmo depois de sofrer tamanha agressão, não tinha raiva do ladrão que a atacara, pois tinha consciência de que ele não pretendia machucá-la, mas ficara com medo e agira por impulso”.
Ali descrevia Luiz uma grande lição aprendida: não importa quão ruins as coisas possam ficar, sempre há esperança e o perdão é a melhor cura, pois alivia a alma e o coração. Temos sempre coisas novas para aprender e é preciso grande sabedoria, só para perceber a extensão de nossa própria ignorância. A mãe de Luiz subiu ao banco de testemunhas e prestou depoimento contra o ladrão, que de acordo com a lei, foi condenado a quinze anos de prisão.

Quando adolescente Luiz tinha consigo a preferência de qualquer coisa a ter de se casar. Em notório, caçoava o casamento dizendo que aquilo já se tornara ultrapassado, mas sabia que em seus sonhos, imaginava-se junto de um grande amor que o faria esperar cheio de ansiedade.
“Levou muitos anos, mas meu conto de fadas realmente se realizou. No primeiro casamento, casei-me com uma esposa da qual nada tenho a reclamar, só acho que minha felicidade ao lado dela ainda não estava completa”.
Ao principio, Luiz sentia até mesmo um certo temor em se casar, mas por outro lado, achava que apenas viver junto compartilhando do mesmo dia-a-dia não era o suficiente para refletir a intimidade da vida em comum. Para sua primeira esposa, o casamento já era algo mais valioso e as idéias de tal união insinuavam milhares de pensamentos. Casar não era tanto um desejo de ambas as partes, mas aos poucos cada um foi se envolvendo mais e mais na mesma convicção de respeitabilidade e principalmente a uma necessidade de esclarecer a situação diante dos familiares. Ao principio Luiz não imaginava que o seu desejo de permanecer ao lado daquela mulher pelo resto de sua vida seria quase nulo diante da carga de sentimentos provindos em seu encontro com o destino em determinado momento especifico de sua vida, pouco tempo antes de encontrar-se com Analice. Luiz ainda tinha muito para aprender e sairia totalmente fora do seu imaginário conto de fadas.
“Conhecer Analice de certo modo foi construir algo muito mais significativo que um conto de fadas. Aprendi junto a ela como é ser uma família, como partilhar não só os tempos românticos e apaixonados, mas também os duros e difíceis”.
Após descansar por cerca de meia hora e tomar um copo de água, Luiz imaginou o que mais poderia relatar de sua historia de vida e emocionado com as lembranças de sua infância e saudade de seus pais, pegou novamente na caneta para descrever aquilo que lhe brilhava na mente.
“Como precisava de dinheiro e meu pai não me dava nenhum por ser totalmente contra os meus estudos de teatro, inventei após uma idéia brilhante, uma especiaria culinária que muito me ajudou e favoreceu-me a continuar meus planos de me tornar um ator. Passei a trabalhar pouco menos de meio expediente numa lojinha do centro que vendia quitandas, sorvete e café. Consegui emprego lá, pois como disse, inventei uma espécie de bolo rosca, era metade de doce e metade de sal. A loja ficava localizada num quarteirão onde paravam dezenas de ônibus e servia aos passageiros que tinham de esperar alguns minutos pela condução, sendo assim, um ponto de venda maravilhosos que estava sempre cheio. A principio levava de casa as rosquinhas de massa de bolo, mas como foi um sucesso, deixaram um local reservado para mim na própria cozinha atrás da lojinha. Depois disso ficava servindo café e atendendo os fregueses. Todos os dias, por volta das cinco horas da tarde, um grupo de crianças e estudantes que saiam da escola a um quarteirão abaixo, invadiam a loja e novamente tinha de fazer outra remessa da minha especiaria. Ali ficavam esperando até o ônibus chegar, era, sobretudo, um trabalho compensador e distraído”.
Luiz estava morrendo, mas podia ver sua vida recomeçando.
“Agora vou contar sobre algo que fiz antes mesmo de conhecer minha primeira esposa. Numa discussão com alguns amigos, desafiei-os a uma aventura e fiquei surpreso quando todos aceitaram sem medo algum. Durante certo período, fomos preenchidos pelo sentimento da apreensão. Estávamos deixando tudo para trás, família, casa, demais amigos e a vida rotineira que tínhamos. Devo explicar que isso se sucedeu num momento em que estava livre, acabara meu curso de teatro e fizera um dos meus primeiros episódios da mídia. Éramos quatro amigos e estávamos dispostos a conhecer o mundo e explorar além do limite imaginável. Queríamos viajar de bicicleta e assim aconteceu, pedalamos muitas horas sem parar. Enquanto pedalávamos, mantínhamos a cabeça cheia de expectativas e sonhos. Mesmo cansados não deixávamos de lado o bom humor e por vezes um perguntava ao outro se realmente não havíamos endoidecido com aquele desafio. Ficávamos nos questionando o que de fato nos ocorrera para planejar aquilo. A única resposta encontrada estava no fato de que mais do que tudo, queríamos dar um tempo as tarefas do cotidiano e naquele dia, havíamos acordado decididos a mudar inteiramente a própria vida. Logicamente, meus outros três amigos estavam desempregados. Aquela viagem demoraria muito tempo. Outra coisa que devo deixar claro é que para tal aventura, mandamos fazer nossas próprias bicicletas, mais resistentes, adaptadas a morfologia individual e que nos permitiria andar milhares de quilômetros sem risco de cansaço por má postura. Aquilo era sensacional. Na verdade, as bicicletas demoraram mais de três meses para serem feitas e foi com muitas alegrias que montamos nela pela primeira vez. Tivemos muita dedicação exclusiva para o preparo da expedição. Fizemos também nossas pesquisas em mapas e procuramos obter todas as documentações necessárias junto às embaixadas. As economias iam-se todas e nossos pais, nada podiam fazer para impedir, pois já éramos maior de idade e independentes. Como ganhara boa quantia no lançamento do meu primeiro trabalho profissional de ator, eu tive de emprestar aos meus amigos que desempregados, pouco tinham para investir na idéia maluca de viajar. Riamos ao dizer que não íamos gastar combustível e pensávamos no quanto voltaríamos com o corpo em forma. De inicio tudo era uma maravilha. A bagagem mais reduzida ficou em algumas frutas, duas garrafas térmicas de água e uns três conjuntos de roupa. Seria uma viagem de revelação a nos mesmos. Haveria momentos de dúvida, desespero e medo. Mas as tormentas desapareciam quando comparadas às maravilhosas descobertas que faríamos: a alegria de ser livre e aberto a qualquer tipo de experiência. Os pequenos medos e preocupações da partida começavam a ceder à medida que descobríamos o prazer de novos encontros. Famílias nos ofereciam comida e hospedagem e uma das dificuldades maiores foi aprender o idioma alheio na marra. Passamos da primavera para o inverno e fomos obrigados a comprar algumas roupas de frio, viajamos com chuva, neve, granizo e ventania. Querendo aproveitar a vida ao máximo, estávamos dispostos a tudo. Descobrimos comidas, danças, festas, artesanatos, roupas, coisas inimagináveis. Alegria, admiração, cansaço e raiva eram os sentimentos que se alternavam dentro de nós. Não irei relatar os pormenores, pois é muito extensa e as experiências que aprendi também, mas o mais importante foi saber que nada é impossível quando queremos e lutamos por algo, mesmo que seja uma das coisas mais malucas e desafiantes do mundo. Ao retornarmos dois anos depois, estávamos nos sentindo muito mais autoconfiantes e fortes para enfrentar o mundo.”
Luiz virou a folha pensando em seus antepassados. Com a vida tumultuada de ator, sempre viajando e preocupado com as atribulações do dia-a-dia, Luiz pouco relatara de seus antepassados para suas filhas. Imaginando que seria de interesse delas conhecer quem foram os avôs, Luiz buscou na mente as reminiscências do passado. O próprio Luiz não tinha noção exata de quem fora seus avôs, pois pouquíssimo pudera conhecer deles antes de falecerem.
“Minha avó morava na fazenda, era uma menina muito arteira e com sete anos, pendurava no rabo dos bezerros e corria dependurada pelo pasto de toda a propriedade sem soltar, ia fazendo rodízio com os bezerros até que certo dia, um deles lhe deu um coice no estomago e nunca mais ela fez isso. Aprendeu a lição para toda a vida. Aos seus doze anos arranjou um casamento. Como naquele tempo era os pais quem comandava os casamentos, seu pai, meu bisavô, disse que o moço era de boa família. Minha avó discordava e garantia que ele era muito farrista, mas não teve discussão. Uma vez marcada a data do casamento, o casório não tardou por acontecer. A principio minha avó imaginou que estando casado ele largaria a vida de solteiro e a fama de mulherengo. Mas o que aconteceu foi exatamente ao contrário. Deixo claro que escrevo isso sem me comprometer se os fatos realmente são verídicos, uma vez que nada presenciei daquela época. Apenas estou transpondo historias relatadas que desde criança tive acerca de meus avôs. Continuando, minha avó suportava o seu casamento nas conformidades dos rigores da época. Certa feita, uma das amantes dele, que por pressuposto morava a dois quarteirões, fez feitiçaria para separá-lo da minha avó e uma benzedeira confirmou o bruxedo. Minha avó costumava estender roupa lavada num arame próximo a casa e numa tarde, quando foi recolher a roupa seca, notou que uma das fronhas havia desaparecido. Decorrente a esse período, tudo passou a dar errado. Com a migração para as áreas urbanas, os dois se mudaram para uma cidade próxima donde moraram por dois anos. Lá minha avó montou um armazém e segundo ela, enquanto trabalhava, ele ia se encontrar com sua amante. Adoraria ter tido contato com ele para conhecer a outra versão da história, mas isso me foi impossível. Logicamente a situação gerava muitas brigas, mas estas não resolviam o problema e jamais naquela época se cogitaria uma separação. Passado os dois anos e vendo que as coisas continuavam não dando certo, ela resolveu deixar aquela vida de tragédias para trás e retornar para a fazenda iniciando tudo conforme era antigamente. O melhor momento de sua vida foi dos dez aos quinze anos, pois ia sempre às festas donde dançava e comia galinhada, porém a época de juventude passou muito rápida e a vida de casada nunca foi lá grandes coisas. Aos dezoito anos ela auxiliou num parto e acabou sendo parteira por um dia. Hoje em dia nem existem parteiras mais”.
Luiz suspirou imaginando o quanto de coisas diferentes e problemas sua avó vivenciara em decorrência da falta de tecnologia da época vivida.
“Com a venda do armazém, investiram em gado. Minha avó retornou ao plantio das lavouras, a produção de queijo caseiro e a vida de muito trabalho. Sozinha ela preparava as carnes desde a matança do animal até o ponto de servi-lo na mesa e para os piões. Conforme ela relatava, fazia o serviço de cinco mulheres e dava conta de tudo. Eficiente, não? Como a casa ficava na sede da fazenda do pai dela, o banho era no poço do monjolo. Que dificuldade! Parece que meu avô só tomava banho porque ela dizia que se ele não tomasse não ia dormir com ela. Absurdo isso! Será que é verdade?”
Luiz tomou um copo de suco que a enfermeira acabava de lhe entregar e entusiasmado não perdeu tempo voltando a seus relatos logo em seguida.
“Estando com sete anos de casada teve a primeira filha, dois anos depois veio à segunda, minha mãe, e por ultimo, depois de mais sete anos contados, teve mais uma. Ela adorava pescaria e contava que na fazenda do sogro, conseguia pegar cinqüenta dúzias de bagre em duas horas. Isso não passa da maneira dela dizer, pois não creio que realmente isso seja verdade. Minha avó tinha um cavalo chamado Castaim. Numa tarde, ela colocou as duas filhas mais velhas em cima e montando também, saíram para dar uma volta. O que não esperavam era do cavalo atolar ao passar numa pinguela. O animal ficou todo preto de barro e minha avó sofreu para tirar o bicho de lá, voltar para casa e lavá-lo antes que meu avô desconfiasse do ocorrido. Minha avó reclamava dizendo que o cavalo era muito bobo e onde tocasse ele seguia. Numa outra vez, ela emprestou o cavalo para seu primo que ia vender-lhe os frangos e verduras na feira, juntamente com as quitandas, doces e biscoitos que ela mesma fabricava. Segundo seus exageros, produzia sozinha e ralando a mandioca no muque, cinqüenta sacos de polvilho em uma semana. Também vendia tapete, cobertas, lençol e fronha de algodão que tecia no tear, colchão de palha, café torrado, arroz socado no pilão e os queijos. Como contava, num dos dias em que seu primo foi pegar os repolhos para vender, um frango bateu asa e o cavalo assustado saiu pulando por dois kilometros indo para no curral, os frangos se espalharam todos pelo mato e as coisas todas caíram da carroça. No final de toda a confusão, só conseguiram recuperar duas galinhas carijós. O prejuízo foi grande e minha avó ficou numa braveza danada. Depois disso, ela foi ao brejo procurar um capado desaparecido e encontrou-o morto, contou que ao lado tinha uma onça com dentes do tamanho de um dedo. Como era exagerada!” – riu Luiz consigo mesmo – “Nas épocas de seca, andavam longas léguas para rezar num cruzeiro na beira da estrada, donde despejava-se três litros de água em promessa para chover”.
Luiz observou a janela e notou o dia quente que reinava lá fora donde o sol iluminava.
“Minha avó contava o dinheiro estando trancada no quarto às escondidas e ela mesma assumia que vendia frango, mas não sabia o que era comprar uma espiga de milho. Sovina de primeira categoria. Meu avô brigava, pois em sua cobiça, ela tirava o leite todo sem deixar para os bezerros. Foi levando essa vida que ela permaneceu até a época de colocar minha mãe e tias na escola. Tudo parecia bem quando minha avó descobriu que meu avô estava traindo ela com sua melhor amiga. Ele comprara um pedaço de chão para o marido de sua amante plantar feijão e depois do almoço saia dizendo que ia tratar de negócios, mas acabava era passando o dia para o serrado com a outra mulher e onde deitavam juntos, conforme palavreado da minha avó, o mato não crescia mais, chegando a ponto de não ser mais preciso arar a fazenda. Era com essa expressão que minha avó brincava com o problema. Dessa vez não houve conversa e a separação estava causada. Mas a briga não foi só com ele, o escândalo foi maior, pois ela fez questão de dar uma surra na amante numa tarde em que ela passou toda exibida na porta da casa donde minha avó morava. Como toda briga entre duas mulheres começa pelo cabelo, exageradamente contava-se que as tochas de cabelo da mulher voou um quarteirão. Pouco tempo depois descobriu-se que a amante estava grávida e inclusive minha mãe tem um irmão que nunca chegou a conhecer. Tem um episodio que é grave, mas se tornou cômico. Certa feita meu avô contraiu uma doença sexual e teve de ir para outra cidade se tratar. Quando as pessoas perguntavam a minha avó se ia ser preciso retirar parte do órgão sexual dele, ela brincava e dizia que já haviam tirado tudo. Imagine só para a época que bom fuxico isso não dava. Ele nem supunha que ela estaria dizendo isso aos outros. E na verdade, ele escrevia-lhe uma carta todas as semanas declarando seu amor por ela. Será que era cinismo dele? Minha avó se divertia dizendo que não o traiu também porque era muito boba. A verdade é que diferente dos homens, a traição feminina era inconcebível. De tal época, minha avó passou a detestar os homens e dizia que eles não prestavam nem para palestra. Quando precisava de um empregado para algum serviço, pagava na hora e depois não queria ver nem rastro, mesmo assim achava que eles aproveitavam por ela ser mulher e além de cobrar mais caro, fazia tudo mal feito. Segundo os relatos dela, conta-se que meu avô nada lhe deixou de bens com a separação. Desse modo, sem dinheiro e muito menos sem marido para ajudá-la, começou a ter uma vida mais difícil e novamente retornou para a cidade. Nunca ela quis se casar de novo ficando solitária desde sua juventude. Estou contando da minha avó por parte de mãe e meus pais sempre souberam do quanto minha avó era exagerada para contar os fatos vividos. Pouco depois de organizar uma casa donde estava vivendo, ela dizia que entrou um bando de ladrões e lhe roubaram tudo, deixando apenas duas calcinhas. Creio que ela não usou de muita modéstia, ou será que sim? Não sei, mas de fato os ladrões não davam tempo, pois foram tantas as vezes que, sem sossego, ela teve de se mudar dessa casa donde morou por cinco anos. Assim se mudou para a capital donde montou uma lanchonete, quase um restaurante. Ela dizia que foi feliz nessa época, pois o povo comia e bebia sem olhar o troco. Ela trabalhava muito, mas estava feliz, pois se sentia no meio de uma boa turma de fregueses e conseqüentemente seus amigos. Inclusive, um deles era advogado e sempre lhe ajudava quando a policia aparecia por lá. É que ela não podia vender bebida alcoólica, mas vendia assim mesmo. Uma certa vez a policia mandou que ela fechasse o bar e os acompanhasse para a delegacia. Ela contava que o advogado a colocou no carrão dele e em vinte minutos resolveu a situação deixando a policia desconcertada. Com o passar dos anos, já esgotada de tanta luta, voltou para sua terra natal e já melhor de situação, construiu uma casa na beira da rodovia donde morou por onze anos, mas lá também ocorriam os roubos, e dessa vez era das galinhas que criava no quintal. Não faço idéia quantas vezes foi roubada nessa nova propriedade, mas apenas uma já bastou, pois levaram vinte galinhas de uma só vez. Exagero? Não sei, é o que ela dizia. Em outra vez, ela estava chegando quando cercou o ladrão arrumando a segunda remessa de galinhas para roubar. Sua primeira atitude foi gritar para que minha mãe lhe levasse o revolver e correndo atrás do sujeito fez com que ele fugisse levando apenas duas de suas queridas galinhas. Se existia um revolver, sinceramente não sei. Na pressa para pular o muro, o ladrão usou o auxilio de uma lata de lavagem e seu sapato ficou grudado no fundo que por estar podre cedeu ao peso de seu corpo. Imagine que confusão, um ladrão pulando o murro com duas galinhas, só pode ser outro exagero da minha avó, a não ser que o ladrão fosse um profissional muito esperto. No outro dia ela foi à casa do vizinho perguntar se ele vira alguém pular o murro para o lado dele e este respondeu que não. Pouco depois minha avó se encheu de suspeitas quando a outra vizinha disse que ele fora a casa dela buscar limão para fazer com caldo de frango. Minha avó vivia julgando sem ter conhecimento real do que de fato ocorreria ou de quem exatamente lhe roubara. Ainda houve outra ocasião donde o marginal tentou arrombar a porta de entrada e como ela estava em casa, botou a boca para gritar e conseguiu espantar o ladrão. Assim, com problemas de todos os tipos, ela seguia sua vida trabalhando com roupas feitas. Devia ser muito difícil chegar em casa e constar que sua mercadoria tinha sido roubada, me parece que era uma verdadeira crise de rombo. Ela tinha um vendedor de outra cidade que fornecia a ela as peças de roupa e assim ela saia vendendo na rua, batendo de porta em porta. Ficando sem gosto pelo local, acabou largando a casa e novamente se preparou para outra mudança. Aí começa a história dos alugueis problemáticos e inquilinos caloteiros. Parece uma piada, mas imagino o quanto foi sofrido para ela. Ainda bem que ela tinha humor para relatar as desgraças que lhe ocorria”.
Aquelas escritas, além de lhe distrair, também o faziam passar mais tempo sorrindo do que contrariado pela própria morte.
“Mesmo assim, ela não desanimou, comprou uma chácara e conservou o imóvel por cinco anos. Um confrontante vivia cortando o arame para colocar o gado pastar na chácara dela. Na verdade ele fazia isso porque queria comprar a propriedade. Enfurecida, minha avó disse que vendia para qualquer um menos para ele. Ao invés de aumentar o preço e vender para ele que era o maior interessado, ela vendeu para um outro sujeito qualquer que dois meses depois, recebendo uma oferta bem maior, vendeu a propriedade para quem minha avó evitara o negocio. De todo jeito, saiu lucrando mais de treze vezes sobre o valor inicial que pagara. Com suas economias da venda, acabou comprando um terreno e construindo de fundo outra casa, dessa vez num bairro privilegiado, próximo das casas de suas duas filhas mais novas já casadas, uma delas sendo minha mãe, minha avó novamente foi acometida pelos ladrões da vida. Antes mesmo de ela colocar as plantas no quintal e arrumar os móveis nos lugares certos dentro de casa, percebeu que seus vasos de samambaia estavam desaparecendo. Após contar cerca de cinco crises de desconfiança e suspeita de que as plantas estavam sumindo, arrombaram a porta e lhe levaram um relógio de muita estima e alguns pormenores. Por sorte ela não estava lá. Com os vizinhos também estava insatisfeita. O da frente tinha um filho que lhe estragou o muro para pegar uma bola que em sua ausência caíra no quintal. O outro do lado estragou o passeio à procura de um cano d’água. Coisas banais, mas não para minha avó. A única vizinha que parecia ser boa se mudou pouco tempo depois voltando para a terra de nascença. Sem querer saber dos vizinhos, ela saia sem dar satisfação a ninguém e mesmo com tantas complicações, dizia que sua moradia era um doce. As primeiras plantas que comprou foram seis pés de jabuticaba donde apenas um sobreviveu. Exagero ou pesada falta de sorte? É difícil de saber.”
Luiz por vezes ria consigo mesmo imaginando sua avó nas situações que escrevia. O caso não era de rir, mas para quem conhecera sua avó, era de cair nas gargalhadas. É incrível como cada pessoa tem o seu jeito característico de ser, viver e enfrentar as coisas, mesmo as mais problemáticas e catastróficas.
“Minha avó, que tinha verdadeira paixão por fruta do quintal, apanhada no pé e na hora de comer, alegava que o jardineiro que plantara as mudas tinha feito o serviço mal feito e nem preciso explicar a contrariedade que lhe foi perder as mudas de jabuticaba. Essa sempre foi uma fruta que lhe acompanhou a vida toda. Para continuar o azar, ela também havia plantado cinqüenta mudas de guariroba, apenas quatro pegaram, mesmo com todo o zelo que ela tinha. Só pode ser exagero dela, isso é inacreditável!” – riu Luiz novamente consigo mesmo. – “Ainda tem algo que não contei, durante o período da construção, ela cismou que durante a confecção de algumas prateleiras, lhe sumiu uma barra de ferro e a culpa foi toda para cima do pedreiro e seu servente que ganhavam por dia e segundo ela estavam enrolando no feitio das mesmas. Ela era um tanto, ou posso dizer, bastante encrenqueira e estava sempre de pé atrás com todo mundo, desconfiada como só ela. Aí vale analisar algo que não coloco como julgamento, mas digo que sempre desconfiamos que os outros nos façam aquilo que nós mesmos temos coragem e capacidade de lhes fazer em determinadas situações. A história dos alugueis era uma total complicação pois sem colocar o imóvel na imobiliária para que esta administrasse, vivia levando prejuízo com contas de água e energia, além do próprio aluguel que poucos meses recebia. Depois seu nome ia para o Fórum e as multas se tornavam um absurdo até serem normalizadas, isso logicamente após ela ter de pagar tudo do próprio bolso. Por enquanto é isso que me lembro.”
Luiz procurava por maiores recordações quando suas três filhas chegaram juntas. Vê-las fez os olhos de Luiz imediatamente enxerem de lágrimas. Em breve estaria deixando as três pessoas mais valiosas de sua vida, aquelas que vira nascerem e cuidara desde cedo com todo o carinho e a dedicação que se esforçava sempre por ter. Emotivo, não foi possível reter a continuidade das lágrimas que lhe escorreram pela face. Talvez aquele fosse ser o seu último encontro com as filhas, à última vez de vê-las e conversar-lhes pessoalmente. Mesmo sabendo disso, Luiz permaneceu calado, pois sua voz parecia presa na garganta e a dor em seu peito o sufocava por completo.
Rosalinda primeiro se aproximou e sendo acompanhada pelas irmãs abraçou o pai também deixando as lágrimas brotarem no olhar comovido e sentido. Queriam dar a vida pelo pai, mas sabiam que nenhuma delas poderia ir em seu lugar. Aceitar a perda do pai após nunca terem tido a presença de uma mãe era uma tarefa complicada e difícil, mas cada uma delas sabia que mereciam passar por tudo aquilo e se de fato as coisas estavam acontecendo daquela maneira, era porque tinham capacidade para superá-las, por pior que fossem.
Luiz nada quis comentar do desfecho do livro que estava escrevendo, mas resolvendo conversar com as filhas sobre o assunto, iniciou logo a tratar sobre ele.
___ Como podem ver, apesar de saber que cada dia a morte pode me levar, estou bem e tenho ocupado meu tempo dando continuidade a uma tradição de família. Trata-se de um livro. Sou o escritor do terceiro e conseqüentemente vocês deverão algum dia se empenhar no propósito de continuá-lo, contando sobre a vida de alguma de vocês. Sou ator e não um escritor, mas todas as palavras escritas saíram do meu intimo profundo, busquei relatar tudo de forma a passar aos leitores um pouco do meu viver. Vocês não são escritoras, mas entendam que qualquer um pode escrever um livro quando se empenha a fazer isso de coração. Basta querer e ter gosto para mergulhar nos próprios pensamentos. Desejo muito que essa tradição seja passada adiante, entendem? Façam isso não só por mim, mas principalmente em memória da mãe de vocês, a mulher mais maravilhosa que conheci e que por muita sorte tive a honra de casar-me com ela e tê-la ao meu lado até o nascimento de vocês duas – disse Luiz olhando para as gêmeas.
___ Sim – afirmou Rosalinda com a cabeça.
___ Pode deixar, não se preocupe quanto a isso – confirmou Carol enquanto Carolina também afirmava a cabeça.
___ Devo lhes explicar que todos os relatos são verdadeiros. Adiantarei-lhe o fato de que fiz tratamento de regressão. Analice na existência passada se chamava Margarida. Era boa, carinhosa e se preocupava com o bem-estar de sua família. Filha de Fernando e Joanina, a moça da aristocracia conhecia modos e etiqueta. Fernando era general da divisão, pai de Margarida e Henrico, marido de Joanina. Por motivo de saúde e também por não concordar com o governo de Margarel Baranga, se afastou de suas atividades. Fernando era um homem bom, nobre e inteligente. Era maleável com Margarida e severo com Henrico pelas atitudes incorretas do filho. Joanina era uma mulher bem conservada, charmosa e elegante. Renunciara a um grande amor na juventude para casar-se com Fernando que era um militar bem sucedido financeiramente e aristocrata, mais velho que ela. Amava seus filhos e buscava o melhor para eles. Já Henrico, irmão de Margarida, era simpático e divertido. Considerava humilhante trabalhar e era viciado em jogo. Conquistou Ana e aos poucos demonstrou que não era tão cínico como aparentava e tinha escrúpulos. A morte de seu pai, junto com os golpes da vida, fez com que pouco a pouco ele amadurecesse. Margarida, contrariando as regras da aristocracia a que pertencia, se apaixonou por Bruno, um militar da classe baixa que na atual existência é Tiago. Ainda bem que hoje não tenho mais nenhuma intriga com ele.
___ Ele sabe...
___ Não, ele não sabe quem foi na encarnação passada. Essa história que conto apenas eu e a mãe de você tivemos conhecimento. Devido a pressões familiares, Margarida se casou com Paulo Ricardo, um rico fazendeiro que na atual existência sou eu.
___ Puxa! Agora muitas coisas fazem sentido – esclamou Carol. – Como passou tantos anos sem nos revelar isso?
___ Verificarão todos os detalhes quando terminar meu livro.
___ Conte-nos mais – pediu Carolina.
___ Eu, sendo Paulo Ricardo, era um filho bastardo de um poderoso fazendeiro e uma plebéia. Nos primeiros anos na fazenda, fui tratado como um peão, passando fome e frio. Aos quatorze anos, se me recordo bem dessa idade, fui enviado a um colégio religioso e depois me tornei um médico cirurgião. Meu pai, no leito de morte, me reconheceu como filho e herdeiro. Eu era aparentemente duro, mas no fundo era terno, amável e apaixonado por Margarida. Bruno era totalmente conservador, não tanto por convicção, mas por obediência às leis militares. Viera de uma família que perdera toda a fortuna. Ele apaixonou-se por Margarida a primeira vista sendo preso injustamente. Depois em liberdade se apresentou com outra identidade para trabalhar na minha fazenda e reconquistar sua amada. Para se casar com Bruno, Margarida poderia contar com o pai Fernando, um homem justo e bondoso. Mas sua mãe, Joanina, desejava que a filha conquistasse um rapaz rico para salvar a família da ruína econômica. Para Joanina, Paulo Ricardo, ou seja, eu, era o candidato perfeito: jovem, bonito e herdeiro de uma boa fortuna. Por meio de intrigas, Joanina e o filho Henrico fizeram com que Bruno fosse preso. Para afastar Margarida de seu amado, mentiram que ele era casado e tinha filhos. Margarida ficou desesperada e pressionada por sua mãe, sabendo que eu pagara as dívidas da família, aceitou se casar comigo. Antes de o casamento acontecer, Bruno conseguiu escapar da prisão e foi atrás de Margarida, jurou seu amor eterno e os dois decidiram fugirem juntos. Eu descobri e mesmo magoado decidi não desistir de Margarida. Levei-a para a sua fazenda e me casei com ela. Margarida levava uma vida difícil na fazenda, pois não me amava, além de ter que suportar os atrevimentos de Helena, filha do antigo administrador, que era apaixonada por mim.
___ Quanta coisa nos escondeu – surpreendeu-se Rosalinda.
___ Helena era educada e instruída. Filha do administrador da minha fazenda, assumiu o posto do pai quando ele morreu. Era apaixonada por mim, mas ficou frustrada quando me casei com Margarida. Bruno encontrou Margarida na fazenda e começou a trabalhar como administrador, com o objetivo de um dia raptar sua amada. Sem desconfiar que Bruno era meu rival, simpatizou-me com o rapaz. Bruno, apesar de sentir ciúme de mim, admitiu que eu era um bom homem. O destino mudou a vida de Margarida quando os olhares repletos de paixão e o desejo ardente de Paulo, eu, acabaram conquistando seu coração. Ela percebeu que o amor que sentia por Bruno não existia mais. Margarida tinha um novo sentimento, mais intenso, um amor vivo e abrasador por seu marido, que era eu. Bruno aceitou a realidade e abandonou a fazenda no mesmo dia em que Margarida anunciou-me que estava grávida. A felicidade durou muito pouco. Eu descobri a verdade sobre meu administrador e tudo desabou. Margarida tentou se explicar, mas lhe garanti que não ia perdoá-la novamente. Furioso, duvidei da paternidade e expulsei Margarida da fazenda. Para esquecê-la, iniciei uma relação com Helena que se tornou minha amante após a separação. Bem, o resto vocês saberão apenas quando lerem o livro.
Após momentos de silêncio donde cada uma refletia o que acabara de escutar, uma pergunta soou no ar dando rumo a outro assunto.
___ Diga a verdade, como você está se sentindo? – questionou Rosalinda cheia de preocupações. – Não quiseram nos deixar entrar na primeira semana, o que está acontecendo?
___ Não quero que fiquem impressionadas por me ver assim, juro que estou me sentindo bem. Não queria morrer agora, mas sabemos que nada pode ser feito – reclamou Luiz novamente dando margem às lágrimas.
___ Continua tendo hemorragias?
___ Sim. Ninguém sabe como ainda estou vivo. Meus órgãos estão todos rebentados por dentro. Há quatro dias que não sei o que é colocar um alimento na boca, apenas me mantêm com esse soro e alguns remédios líquidos que nem sei qual efeito tem. Ainda ontem tive uma crise de vomito, perdi bastante sangue e minha pressão arterial ficou descontrolada durante muitas horas. Não quero ficar comentando sobre isso, pois não é de minha vontade que sofram pelo meu sofrimento. Minha aparência é péssima, sei disso embora não tenha um espelho e nem queira um.
Quanto mais conversavam, mais difícil se tornava aquele momento de despedida e as palavras aos poucos iam se tornando em lágrimas até que o pranto se fez total.
___ Não quero que morra – disse Carolina num sussurro gemido passando a mão pelo rosto do pai.
___ Preferiria se a morte me tivesse levado sem dar-me tempo de tais despedidas – comentou Luiz.
___ Não se sinta constrangido, de qualquer forma a sua morte vai nos trazer inúmeros sofrimentos, você não pode evitar isso assim como não podemos fazer nada para mudar essa situação – disse Carol enxugando as lágrimas teimosas.
___ Somos todos iguais, nunca se esqueçam disso. Não existe nada que compre os bons sentimentos e a vida. Lutem por merecer a saúde que recebem como dádiva divina e lembrem que o dia de amanha é sempre um mistério, tudo pode se transformar uma vez que o inesperado está constantemente em nosso caminho. Sejam excelentes em qualquer coisa que fizerem e tenham muita fé. Procurem pala própria evolução, pelo amor e a caridade. Digo isso não só como pai, mas como alguém que não tem mais tempo de voltar atrás e refazer os erros. Minha vida se foi, mas minhas dívidas espirituais ainda não. Errei muito e não sei o que me acontecerá após o desencarne. Só me resta buscar esperanças para ter a bênção de encontrar ou pelo menos sentir a sintonia do sorriso da mãe de vocês. Ela sim era uma alma boa e generosa que veio ao mundo para me ajudar, viemos juntos resgatar as falhas outrora cometidas, mas não desempenhei bem o meu papel e diferentemente dos filmes, na vida não temos como repetir uma gravação que falha ou sai errada. O peso dos meus erros está na minha consciência e fiz o que me foi possível para amenizá-los.
___ Sua reconciliação com Tiago tem...
___ Bem lembrado – interrompeu Luiz. – Jamais tenham inimigos, saibam perdoar e pedir perdão. Levei anos para entender o quão importante é saber desculpar, não só quem nos magoa, mas a nós mesmos. Hoje procuro não ter ressentimentos e sei que tenho superado minhas próprias expectativas. Quando meu livro for publicado, saberão do meu passado, do meu encontro com a mãe de vocês e de todos os pormenores que sempre escondi. Saberão até mesmo todos os detalhes conforme expliquei sobre eu e Analice durante encarnações passadas e o porque novamente voltamos juntos. Fui muito feliz e ainda sou, não tenho motivos nenhum de reclamar. Não me sinto aliviado por deixar este mundo, pois os atos que pratiquei nos momentos de provas e expiações durante a vida me dão um certo temor e receio, daí o medo que me invade o peito e me faz ficar desesperado. Mas não se preocupem, sabemos que a morte não é o fim. Aonde quem que eu vá, de um modo ou outro, só me resta evoluir. Creio na justiça divina e sei que vocês superarão a minha morte. Rezem por mim e aguardem, talvez um dia possamos ter o merecimento de nos rever ou encontrar novamente numa nova encarnação ou quem sabe enquanto espíritos errantes em algum lugar que não sei dizer. Foi maravilhoso tê-las como minhas filhas e... – Luiz deu uma pausa sentindo a voz ficar cada vez mais fraca. – Me desculpem por deixá-las – finalizou ele nada mais dando conta de dizer.
Verificando que o horário de visitas estava encerrando, as três foram educadamente convidadas a se retirarem por uma enfermeira que passava no corredor e assim, saíram do quarto aos prantos profundos.
Para todos aqueles que acompanhavam a careira profissional do ator, aquela situação era chocante e conforme exigências de Luiz, nenhum noticiário, entrevista ou reportagem dava informações do seu estado de saúde, embora os laudos de sua morte já houvessem sido previamente confirmados perante o público.
Os familiares de Analice também foram visitar Luiz alguns dias depois, mas estando cada vez pior, Luiz não teve condições de conversar e se sentia muito fraco sem nem ao menos conseguir sentar-se na cama. Carol, Carolina e Rosalinda contavam com o apoio e consolo dos avôs maternos para superar aquele momento tão doloroso. Martino gostava muito das sobrinhas e estaria sempre junto a elas para dar-lhes sua ajuda, embora tivesse sua vida particular e seus compromissos. Marta e Orlando, os avôs maternos das três jovens, também estavam bem decadentes, mas ainda restavam-lhes forças para dedicar em prol das netas. A vida ia continuar para os demais enquanto a morte não seria o fim desesperador para Luiz, assim como com toda certeza não fora para Analice. Ninguém sabia o que se sucederia depois e quem seria o prosseguidor das escritas de Luiz e dos livros que se tornara tradição de antepassados, iniciado pela própria Marta. Muito mistério ainda rondava pelas vidas daqueles seres.
Mais um dia de vida acabava de dar inicio e sem saber se esta continuaria até o entardecer dos últimos raios de sol, Luiz começou logo cedo a escrever seus relatos, aproveitando que suas forças pareciam melhores durante a manhã.
“Hoje acordei entristecido pensando no quanto tempo de vida perdi. Entendo que todos os fatos acontecem conforme o suceder do nosso próprio amadurecimento, mas não deixo de ter raiva de não ter vivido melhor e mais intensamente enquanto realmente tinha uma vida. Não quero que ninguém se derrame de lágrimas pela minha partida, apesar de tudo, quero sair deste mundo deixando lembranças carinhosas e eternas. Minha doença talvez seja o remédio amargo que implorei a Deus. Sinto muito por isso e é difícil controlar minha enorme vontade de chorar quando penso que em breve terei de deixar todos vocês. Francamente, sei que minha vida valeu a pena, pois tentei fazer dela os meus objetivos primordiais, mas como ser humano, minhas imperfeições são imensas e sabemos que não é fácil modificar o intimo e enfrentar aquilo de pior que reside por dentro de nosso ser. Não sei se tenho mais meia hora ou uma semana, cada dia é um tormento e por vezes penso que quanto antes morrer, mais rápido se findará essa tristeza, não só minha, mas creio que de todos. Fico imaginando para onde irei após o meu desencarne e a única coisa que lembro é dos sorrisos encantadores de Analice. Se para junto dela for, irei para o paraíso. Não tenho como analisar minha vida, talvez pudesse ter feito mais pelos outros e conseqüentemente por mim mesmo, mas se assim não se sucedeu, só posso sentir pena por minha própria ignorância. Sabendo que vou morrer em breve, talvez antes do que imaginamos, não sei se meu temor era maior pela morte de entes queridos ou pela minha mesma. Sinto-me aliviado por saber que não é nenhuma de minhas filhas que estarão indo embora desse mundo, pois indiferente da situação daria a minha vida por qualquer uma delas. Eu as amo muito, minhas queridas filhas. Sempre tudo o que fiz foi pelo bem de vocês e se algo deu errado, nada tenho a dizer que não seja pedir perdão. É admirável que essa pequenina palavra de tamanha importância seja espalhada dos meus lábios por todos os corações daqueles que um dia magoei. A Tiago e seus familiares, desejo dizer que me sinto com a mente tranqüila pelas pazes e o fim das intrigas. Se não pudemos ter intimidades para uma afeição, já me sinto realizado por saber que se acabaram as inimizades.”
Conforme Luiz escrevia, as lágrimas em seu rosto desciam sem dar tempo nem ao menos dele as enxugar.
"Lembro-me de quando Rosalinda nasceu. Foi um momento tão marcante que pouco conseguia respirar. Vivi momentos incrivelmente felizes ao lado da mulher que mais amei. Depois, com a triste perda de minha esposa, tive de aprender que a morte é assim mesmo, apenas uma viagem para um outro local que em breve conhecerei. Espero deixar saudades neste mundo e se nem isso for possível, estou deixando duas gêmeas que foram a minha força de vida, o meu incentivo em continuar lutando para vencer as dificuldades e poder trilhar a permanente atuação de pai. Na minha carreira profissional, tenho muito a agradecer e dizer que não sei o que teria sido de mim se não fosse pelos companheiros de gravações, amigos e colegas de infindáveis momentos. Muitos talvez nem imaginem que estou à beira da morte, mas quando souberem, quero que guardem essa frase: Não poderia ter encontrado ninguém melhor do que vocês para vivenciar a minha profissão. Desejo de todo o meu ser que continuem tendo sucesso e felicidade em todos os instantes de vida. Vivam o máximo que puder, realizem tudo o que tiverem vontade e lhes for prudente, pois ninguém sabe o dia de amanha e a morte não espera realizarmos aquilo que deixamos de fazer no tempo certo. Sim, para tudo tem um tempo, não desperdicem as oportunidades, pois elas não retornam jamais. Podemos ter outras chances, mas entendam que o tempo nunca voltará atrás. Como é sofrido saber que os deixarei, mas ao mesmo tempo, sinto uma imensa paz, pois sei que cumpri o meu dever. Agradeço a Deus pelos dias maravilhosos de vida que tive, as dores que me foram necessárias e peço perdão pelos erros que cometi. De certa forma, tudo me foi muito valioso e tenho nítida certeza que nada neste mundo é em vão. Sinto as forças saírem de meu corpo como uma água que pinga aos poucos de uma vasilha furada. Não quero ser sentimental, mas desejo que todos reflitam sobre as maravilhas do mundo e a bondade de Deus. Tudo é tão perfeito que minha maior alegria é poder ter esses últimos minutos de meditação. Quando minhas filhas e demais pessoas puderem ler este livro, saberão que não mais estou dentre vós, mas permanecerei em cada coração que for tocado pelo significado dessas palavras que escrevo. Deixo claro que não sou, nem nunca fui um santo. Sou humano, imperfeito e mortal, mas assim como qualquer um, tenho o meu valor imenso por ser filho de Deus e ter neste momento a dádiva de passar essa mensagem. Estou me preparando para a própria morte e se puder fazer disso um conselho, procure também se preparar para ela, mesmo que seja uma pessoa saudável, pois é a melhor maneira de não se arrepender depois, uma vez que a saúde e a jovialidade não é eterna para ninguém”.
Luiz não se cansava de escrever, mas já estava se sentindo tão fraco e com tanto sono que não viu a hora em que dormiu sobre o papel. Naqueles últimos dias, tinha dormido mais do que o habitual em toda a sua vida.
Naqueles momentos de repouso, Luiz sonhou com Analice de tanto pensar nela. O sonho não se passou somente com os dois, mas numa multidão de pessoas. Analice estava numa espécie de reunião, numa sala muito ampla e bem arejada. Eram muitos que atentos a ouviam:
___ Casar com quem se ama é bom e com quem se é amigo é melhor ainda. Amizade não é utopia, é solução para a felicidade comum – dizia ela na frente de todos segurando um microfone.
Luiz sentia ter consciência de que estava ali apenas em sonho e estranhava aquela palestra que Analice ministrava. Sua amada conservava os mesmos traços de quando viva e estava mais esplendorosa do que nunca. Tinha os olhos mais brilhantes e as bochechas mais coradas. Seu sorriso radiante brilhava na medida que falava com graciosidade e simpatia. Luiz queria se aproximar, mas uma força maior o impedia.
___ A maior ambição de uma mulher é de que o marido seja, antes de tudo, um amigo. Esta amizade não tem nada a ver com amor, paixão ou sexo. É uma forma de partilhar uma vida comum e a sua ausência pode ser a responsável por muitas das desavenças de um casal. A um amigo perdoam-se certas atitudes com a convicção de que se ele as toma é porque está a fazer o que entende ser melhor para ambos. Para a maioria dos homens, esta amizade também é difícil de criar e fortalecer. Afinal, qual é a mulher que sabe o suficiente de esportes para discutir os resultados do campeonato de futebol?
Enquanto algumas mulheres da platéia riam da pergunta, outras afirmavam confirmando a veracidade das palavras de Analice.
___ Poucos homens são capazes de comentar com a mulher, de forma que o fazem com um amigo, os traços sedutores da vizinha do terceiro andar. Assim como poucas são as mulheres capazes de confiarem o suficiente nos maridos de forma a revelarem-lhe que o novo colega de trabalho já a convidou duas vezes para jantar. Esta falta de confiança que nos faz abrirmos os nossos segredos a um estranho, mesmo que seja um amigo, mais depressa do que a pessoa que escolhemos para viver em comum é reveladora da falta de amizade que existe na maior parte dos casamentos. O marido ou a mulher é alguém que merece ser tratado com maior gentileza e tolerância que qualquer outra pessoa, pois deveria ser para cada um de nós mais importante que qualquer amizade. Têm alguém que possa nos relatar um caso de divórcio? – questionou Analice buscando a interatividade com o público.
___ Eu tenho – respondeu uma mulher levantando-se da cadeira.
___ Conte-nos, venha aqui à frente – pediu Analice.
___ Casei-me sempre por paixão. Pelo meu primeiro marido foi um amor adolescente e incontrolável que terminou quando percebi que ele era um estranho para mim. Doze anos mais tarde voltei a casar apaixonada por um homem mais velho. Quando a novidade começou a virar rotina não deu mais certo, não havia uma amizade sólida a unir-nos. Tínhamos passado momentos muito bonitos, mas tudo tinha sido demasiado rápido para que pudéssemos estabelecer uma ligação de amizade forte.
___ Obrigada – agradeceu Analice pegando o microfone de volta. – Se o tempo é um bom aliado para fortalecer as ligações, as expectativas que a maioria das mulheres deposita no companheiro servem também para criar o clima de desilusão que pode levar a que o amor seja afetado. Quase ninguém tem uma só amiga. Mas, por mais divórcios e casamentos que passe toda a gente, tem sempre só um marido, pelo menos de cada vez. E este é obrigado a ser perfeito – completou Analice.
Luiz procurou um lugar para se sentar e verificou que seu estado de saúde ali naquele momento voltara a ser normal como anos atrás.
___ Uma amiga não precisa reunir todas as qualidades. Para satisfação pessoal, reunimos as diversas qualidades de todas as amigas e realizamo-nos como um todo. A estrutura do casamento não permite este tipo de complementaridade. Com o esposo ou esposa, temos de contentar-nos com as qualidades que tem, mesmo se não forem suficientes. Com os amigos, são as enormes possibilidades de satisfação que nos tornam mais generosas. No casamento, isto já não acontece. E é com a convivência que se começa a desenhar a falta de algumas qualidades que inicialmente, no calor do namoro, não pareciam importantes e assumem foros de tragédia. Surge a desilusão e com ela o ressentimento.
Luiz estava encantado de ver Analice dando aquela palestra e ninguém melhor do que ele para saber o quão boa esposa ela fora.
___ Se fosse possível arranjar um casamento de uma forma gradual, sem paixão, baseando na amizade recíproca o futuro amor, talvez o parceiro fosse sempre um amigo antes de ser cônjuge. Os planos cuidadosos de criação de uma imagem de companheiro ideal nem sempre correspondem aos critérios de escolha e é difícil para qualquer um preencher os requisitos sonhados. Algum de vocês homens pode relatar algo acerca do que estou dizendo?
Um jovem com cara de seus vinte e cinco anos levantou-se da cadeira e foi à frente.
___ Quando casei, a minha mulher dizia-me que eu era o homem por quem ela sempre tinha esperado – iniciou ele. – Desde logo senti o peso dessa responsabilidade. Ela acreditava que eu tinha todas as qualidades do mundo e nenhum defeito. É claro que isso não era verdade e ela acabou por olhar para mim de outra forma quando descobriu que eu também errava como toda gente. Tentei compensá-la da desilusão da melhor forma que fui capaz, mas a minha vida profissional sempre foi muito agitada e não permitiu que eu lhe dedicasse o tempo necessário. Era uma mulher apaixonada por uma imagem e que me rejeitou quando descobriu que eu não correspondia a esta. Para mim foi um trabalho laborioso, mas consegui fazê-la aceitar-me como sou e tornar-se até minha amiga.
___ Ótimo exemplo, muito obrigada – disse Analice voltando a pegar o microfone. – Aí está o sacrifício da vida conjugal. A maioria de nós, homens ou mulheres, não moramos com um amigo como fazemos ao nos casarmos. A coabitação é outro fator que causa atrito entre os casais. As pessoas casadas moram umas com as outras e, para além das brigas que daí surgem, há ainda as desavenças habituais da vida a dois, como a divisão dos trabalhos domésticos ou as decisões sobre a educação dos filhos. Com uma amiga, qualquer mulher aproveita para desabafar sobre os defeitos do marido. Essa é a função de uma amiga, ouvir e servir de confidente. A um marido não se podem fazer queixas sobre o seu próprio comportamento, embora devesse. Neste ponto, estabelecemos um limite para a amizade conjugal. Para quem não sabe, existem reservas de privacidade que, às vezes, são pura e simplesmente de respeito e que devem ser preservadas. Se uma mulher está furiosa com o marido e diz à melhor amiga que ele é um malandro, esta dá o desconto à exaltação e sabe que no dia seguinte tudo é diferente. Se, por outro lado, alguém disser ao marido que ele é um malandro, não pode esperar que ele não fique ressentido e lhe custe mesmo a acreditar que no dia a seguir ela o ame como dantes. Continuo afirmando que marido e mulher devem ser, antes de tudo, bons amigos. Em seguida devem ser estimulados os interesses comuns. Partilhar é um dos segredos para uma boa amizade. Irem juntos a algum lugar não altera nada, mas pode fazer muita diferença se ambos forem apaixonados por aquilo que o local proporciona. O mesmo se aplica aos filhos, a música que ouvem ou até aos livros que lêem. Mostrar interesse pela atividade profissional do outro é importante apenas se o interesse for autentico. Não interessa perguntar só porque nos disseram que é assim que deve ser. Se o outro perceber interesse da nossa parte, vai falar livremente sem serem necessárias perguntas, apenas porque se sente num clima de segurança. Vai abrir o jogo e desabafar. E quem ganha é a amizade conjugal. Outro fator a ter em conta é a criação de um objetivo comum. Duas pessoas que tem um projeto podem zangar-se por causa dele, mas dependem uma da outra para realizá-lo. Nas zangas há também uma boa dose de amizade. Nem sempre os casais pacíficos são os mais amigos. Não discutem por inércia ou comodismo. Estar em desacordo faz parte da essência da amizade, que é por natureza própria exigente e questionadora. O que é mais importante é que se a amizade forte vai acelerar o processo de paz. E no final tudo acaba em cumplicidade. Dois amigos são dois cúmplices que separados não suportam a solidão e fazem tudo para estar junto. E até podem ser marido e mulher desde que aproveitem para enriquecer a amizade com uma dose substancial de amor. Vão ver que vale a pena. Gostaria de mais relatos – solicitou ela.
Um homem levantou-se indo à frente:
___ Enquanto encarnado, fui um homem muito rico. A maior parte de meu trabalho, como o de meu pai e meus avôs, foi dirigido na intenção de melhorar a comunicação entre pessoas com deficiência, geralmente surda e muda. Dei muitas conferencias e tinha prazer de auxiliar aqueles que não tinham como eu, o dom da voz ou de escutar os sons. Não foi surpresa quando desenvolvi um interesse romântico por uma das minhas estudantes, ela tinha apenas dezoito anos quando iniciei a ensiná-la como falar e ler expressão labial. Quando ela completou vinte anos nós ficamos noivos. Nos casamos conforme queríamos e tivemos uma maravilhosa lua-de-mel. Adotamos o principio de ficarmos sempre juntos e isso se ajustou tanto no nosso cotidiano que quando viajava a negócios ela reclamava nas cartas dizendo que eu ocupava tanto espaço na nossa casa que ela parecia grande de mais sem a minha presença e que eu era o sentido em torno do qual toda a sua vida girava. Todas as cartas terminavam da mesma maneira, com três frases dizendo te amo muito, retorne logo. Tentava mudar minhas datas de viagem e conciliar os horários para agradá-la, mas não consegui. Fazia de tudo para viajar o menos possível. Tivemos quatro filhos e um deles nasceu com dificuldade respiratória e deformação pulmonar, morrendo algumas semanas após o nascimento. Sentimos muito pela morte dele, mas estivemos juntos e desde então iniciamos nossa vida na doutrina espírita. Deixei minha esposa e meus filhos ao desencarnar após uma doença prolongada. Antes do último respiro, acordei para sorrir à minha esposa e filhos que estavam do meu lado. Minha esposa implorou para que não a deixasse, mas eu simplesmente já estava morrendo. Meu desencarne se deu pacificamente e ainda aguardo pelo momento de reencontrar com meu filho que poucas semanas pude ter comigo.
___ Obrigada – agradeceu Analice gentilmente assim que ele terminou de fazer seu relato. – Alguém mais? – questionou ela olhando para o público.
___ Eu – disse um jovem se levantando. – Fui um comediante e também um artista de rádio, televisão, teatro e cinema. Tive uma série de romances, mas só um foi verdadeiro. Conheci-a aos doze anos, ainda na minha plena adolescência, quando fui com meus pais a casa dela para um almoço de páscoa. Eles eram judeus e tinham a suas tradições religiosas. A princípio não nos impressionamos um com o outro. Cinco anos depôs, encontramos novamente. Esse segundo encontro também não mudou em nada os meus sentimentos, mas no dia seguinte eu inesperadamente encontrei-me com ela na sessão de gravatas de uma companhia de assessórios e roupas onde ela trabalhava. Ela estava tão diferente no uniforme da loja que voltei lá muitas vezes e quando não entrava, passava na porta apenas para dizer-lhe um cumprimento e vê-la novamente. Minha insistência em passar todos os dias naquela rua acabou em casamento. Assim que o rabino nos pronunciou marido e mulher, seu pai, não muito contente com nossa união, disse-lhe que desejava felicidades, mas achava que o casamento não ia dar certo e conseqüentemente durar muito tempo. Ela desmaiou no meio da cerimônia e levou meia hora para voltar a si, ainda triste e desgostosa com o comentário do pai. Na verdade, nem eu nem ela sabíamos realmente se estávamos apaixonados um pelo outro. No inicio não tínhamos nada em comum a não ser nosso senso de humor e o fato deu ter estudado violino quando criança. Na noite em que eu a propus em casamento, tinha acabado de levar um fora de outra, saindo de um caso de quatro anos. Quando ela me aceitou, usava um anel de noivado demonstrando que tinha outro. Éramos ainda adolescentes quando nos casamos e me considerava muito inocente para saber o que realmente era amar alguém. O nosso grande amor um pelo outro, chegou aos poucos depois do primeiro ano de união. Ainda lembro perfeitamente de alguns contratempos do primeiro ano de casados, quando recebia telefonemas de antigas namoradas que não se convenciam de que realmente já estivesse casado. Para aquelas que não sabiam do meu casamento, era gentil dizendo que estava muito ocupado e não daria para sair à noite com ela. Minha esposa perguntava porque não dizia que era casado e sempre alegava que havia esquecido. Depois de tanto esquecer, ela se exaltou comigo e numa determinada tarde me deu um tapa no rosto. Surgiu assim o ciúme quando eu tinha de contracenar com alguma atriz. Foi ao ponto dela chegar para uma delas e dizer que eu não trocaria um dedo mindinho por todo o corpo dela, pois se caso fizesse isso, era um homem morto. Depois disso tivemos uma briga feia quando percebi que ela tentava me contrariar usando saias muito justas e ficando se exibindo para os outros homens quando saíamos juntos. Não agüentando mais aquela atitude, pedi a ela enfurecido que trocasse de roupa, mas ela se recusou e não me restou alternativa, tive de mandá-la de volta para a casa dos pais. Durante um mês de sofrida solidão, contive-me para não ir buscá-la novamente até que recebi uma carta dela com pedidos de desculpas, dizendo que se não fosse buscá-la em duas semanas, seus pais a obrigariam realizar outro relacionamento, dando o nosso casamento por acabado. Nunca soube se aquilo era verdade ou se ela apenas quisera que eu fosse buscá-la, mas de uma forma ou de outra, ir buscá-la foi à primeira coisa que fiz. Ao vê-la, nos beijamos tão intensamente que perdi toda a noção do tempo e logo após, entreguei-lhe um presente que comprara especialmente para comemorar nossa volta. Desembrulhando o presente, ela olhou para mim surpresa. Era uma saia mais curta dos que as usadas por ela. Disse-lhe que não me importaria com o tamanho das saias que ela usasse, desde que não fizesse aquilo apenas para me implicar. Depois disso vivemos anos e anos felizes. Perto do meu final de vida, disse numa entrevista que estava casado a quarenta e dois anos e nunca tirara a aliança do dedo. Quando tinha de fazer um papel de homem solteiro, cobria-a com uma fita adesiva e fazia isso em prova do meu amor por ela. Descobrindo uma doença contagiosa, sai de casa deixando-lhe uma carta com breves explicações sobre meu estado de saúde e disse que lhe enviaria uma rosa todos os dias e dessa forma, quando não mais recebesse minha rosa, era sinal de que eu havia partido daquela vida para outro mundo. Aqui estou hoje e espero que ela, onde quer que esteja, também esteja muito bem e feliz. Não sei se ela continua viva ainda, mas espero ansioso pelo momento em que me for concedido o merecimento de vê-la e matar as saudades.
___ Muito obrigada – agradeceu Analice notando o quando o jovem se emocionara ao contar de sua ultima experiência de vida.
___ Também desejo relatar um pouco da minha história – pediu um outro jovem agiu e sorridente.
___ Fique a vontade – disse Analice lhe entregando o microfone.
___ Fui um dos auxiliadores na produção da bomba atômica que forçou o Japão a se render na Segunda Guerra Mundial. Tinha sido escolhido pela equipe de pesquisa devido as minhas realizações anteriores em física, especialmente junto às descobertas dos efeitos dos neutros nas reações nucleares. Já era um jovem maduro quando comecei meu primeiro namoro. Meus dois maiores sonhos eram se casar e comprar um carro da época. Porém, nas condições financeiras em que vivia, tinha de realizar um sonho de cada vez e foi com muita tristeza que minha noiva ficou sabendo, pelos meus amigos, que eu havia comprado um carro e aparentemente optado por algo que me fazia adiar ou desistir do casamento. Notando que ela ficara bastante ofendida por eu ter compro o carro, disse-lhe sobre a hipótese de uma extravagância dupla e foi assim que nos casamos uns meses depois. Tive de trabalhar dobrado depois para compensar e dinheiro gasto e pagar as dívidas. Com a minha participação na conquista de uma sofisticada reação nuclear em cadeia, nós pudemos finalmente comemorar nossa lua-de-mel. Estávamos casados há quinze anos, numa maravilha de relacionamento quando morri de câncer de estômago. As últimas notícias que tive de minha esposa foi que ela se casou com o filho de um dos colegas de seus pais. Na verdade o homem pelo qual ela se casou tem seis anos a menos que ela e na época, acabara de sair do monastério. Minha esposa merece ser feliz, é extremamente inteligente, charmosa e prestativa. A principio fiquei transtornado por pensar que ela se casara novamente, mas entendo que isso é natural e em nada vai diferenciar sobre o sentimento que mantivemos um para com o outro enquanto casados.
___ Gostei do seu relato, serve de base para muitos amores possessivos. Agora gostaria de escutar o relato de uma mulher.
Analice aguardou até que uma jovem se aproximou.
___ Fui uma grande soprano de um século que se passou e durante ele reinei como diva por mais de uma década. Era particularmente famosa por minha vontade de tentar sempre desempenhar papeis novos, o que resultou numa grande variedade de repertório. Nasci filha de imigrantes e nunca me senti realmente uma pessoa amada ou querida. Era excessivamente gorda, muitíssimo tímida e ainda por cima míope, bastante impopular. Porém, tinha minhas habilidades musicais o que me dispôs a fama. Eu e minha família vivemos num período de guerra no país donde residíamos e pela amizade do meu pai com um oficial do exercito, pude aprender a falar uma língua diferente em troca de cantar ária de opera. Durante a guerra também recebi ensinamentos de música formal estudando com uma famosa soprano da época que me possibilitou o inicio de minha grande carreira. Tive longos anos de sucesso constante e motivada consegui completar tratamento médico e emagrecer até atingir o meu peso ideal. Tornei-me uma estrela internacional, mas tendia a uma saúde precária. Entretanto, tinha uma das vozes mais penetrantes da ópera moderna. Apesar da publicidade que envolvia minha vida particular, tive só dois homens durante minha vida. Num recital em determinada localidade especial que não direi o nome, conheci um industrial nativo do local e patrono da ópera, sendo vários anos mais velho do que eu. Nenhumas das famílias aprovaram nosso relacionamento não só pela idade, mas pela minha nacionalidade. Mesmo assim, optamos por um casamento donde não houve convidados. Casada, aprendi muitas coisas, inclusive a me vestir e portar bem. Participava com ele sobre os mais famosos teatros de opera e sempre saiamos com triunfo. Ele não me deixou ter filhos, pois achava que prejudicaria nossa carreira e o casamento decorria bem até o dia em que fizemos um cruzeiro marítimo num iate de um amigo dele. Não desejo relatar o que aconteceu, mas ali foi o fim de nosso casamento. Nos separamos poucas semanas depois e não demorou a que me envolvesse com outra pessoa, mas fui decepcionada e fiquei atônita quando esta terminou comigo dois dias antes de se casar. Notei que ele namorava comigo mais já tinha um caso de cinco anos ou mais com aquela que era sua noiva. Ela era uma ex-primeira dama e não direi os motivos pelos quais o casamento dos dois não deu certo. Ele voltou a me procurar e não obstante, era impossível resistir os sentimentos que ainda tinha por ele. Tentamos esconder o caso como se eu fosse sua amante, mas o escândalo surgiu nos jornais quando fomos fotografados juntos nos beijando debaixo de uma barraca na praia. Meu esposo morreu antes e pela forma trágica como tudo ocorreu, entrei em depressão e desisti da minha carreira passando meus últimos anos totalmente solitários. Quando faleci, tive de ter muita paciência e depois de pouco a pouco ser preparada para encontrar-me com ele, finalmente pude vê-lo em minha frente. Ele está ali – disse ela apontando para um rapaz que se levantou assim que todos olharam em sua direção.
___ Gostei do seu relato, muito obrigada. Mais alguém?
___ Não irei dar detalhes sobre quem fui, pois não desejo que saibam, mas acho que será valido o meu relato. Fui uma das soberanas de uma dinastia que não citarei nome e uma das dirigentes mais queridas e hábeis de um determinado país – comentou outra jovem indo à frente. - Sendo filha de pessoas relevantes e muito importantes, tive uma infância emocionalmente difícil, marcada pela decapitação de minha mãe e de minha madrasta, ambas execuções ordenadas pelo rei. Ascendendo ao trono, lutei para reconciliar as fortes cisões religiosas do país e transformei a nação numa grande potência marítima e colonial. Não fui uma boa pessoa. Mandei decapitar uma parenta que era rainha de outro país e seu namorado, um conde. Fiz isso, pois não encontrava mais forma de subjugá-los. Embora eu não fosse bonita, era aparentemente atraente. Era bem diferente da aparência que apresento agora. A curiosidade para saber com quem me casaria manteve-se durante todo o meu reinado. Adorava as preliminares das cartas apaixonadas, as brincadeiras irreverentes e os montes de presentes. Era uma eximia provocadora sempre encontrando razões para adiar a consumação dos fatos. Para mim, um marido representava na melhor das hipóteses a divisão do trono e na pior, a usurpação do poder. Meu primeiro romance foi com um libertino muito bonito e de pouco discernimento. Para mim tudo não passava de um namorico á toa. Ele era o meu preferido por ser mais bem-dotado de músculos do que de cérebro. Depois de um relacionamento de muitos anos, ainda como namorados, descobri que ele mantinha um casamento secreto com uma pessoa que era de minha grande consideração. Recebi inúmeras procurações pedindo-me em casamento e estive muito próxima de me casar quando conheci um duque que não era grande coisa em beleza, mas era charmoso e o partido ideal para me dar os filhos que continuariam dando ordem ao reinado. Não descreverei o que ocorreu, mas não me casei. Muitos pesquisaram detalhadamente sobre a minha vida moral em relação ao sexo, mas ninguém conseguiu qualquer prova de escândalo. Se quisesse ter uma vida desonrada, ninguém teria nada a me proibir, mas de uma coisa afirmava com certeza a todos, jamais ninguém me veria casada. Queria que declarasse o meu reinado como alguém que vivera e morrera sendo virgem. Assim aconteceu. Uma ligação sexual simplesmente não poderia ser mantida em segredo no meu meio de pouca privacidade e as fontes de pesquisa da época indicam que realmente fui virgem a vida toda. Fiz isso por minha própria opção pessoal e embora possa parecer estranho, deixo claro que não tinha nenhuma anormalidade quanto a minha sexualidade. Os meus médicos afirmaram que eu era apta a ter filhos e em nada acharam explicações para a vida que tive. Na verdade, para mim os beijos, abraços e principalmente a provocação dos homens já eram o bastante. Odiava a idéia de casamento, pois tinha convicção de que não existiria para mim uma alma gêmea, um par perfeito, um amor ideal. Considerava o povo do meu país como o complemento da minha vida e não desejava ter nenhum dono, apenas namorados que me servissem de passa tempo.
___ Um relato diferente, mas muito válido, trataremos sobre isso daqui a pouco, darei um intervalo para que possam esticar as pernas e em alguns minutos retornaremos.
___ Antes disso, já que minha amiga comentou sobre uma de suas existências, quero relatar parte de meu viver, já que reinei na mesma época que ela.
___ Sim – permitiu Analice.
___ Certo, serei breve – avisou a jovem antes de prosseguir. – Fui uma grande princesa de educação rigorosa, reinei o vasto império como uma autocrata por muitos anos. Casei jovem com meu próprio primo, um ano mais velho, sobrinho e herdeiro do imperador reinante. Eu era a esperança de produzir filhos uma vez que minha amiga que acabou de relatar sua historia não tinha filhos. Infelizmente, meu esposo era impotente e estéril. Ao descobrir isso, pensei em me suicidar e procurei consolo lendo vorazmente e dando longos passeios a cavalo. Finalmente, após quase onze anos de casamento, fiquei grávida de meu amante, um nobre jovem cuja nacionalidade não direi. Vi-me obrigada ao aborto e foi o que fiz, não sabia quantos males estaria me acometendo perante a vida espiritual. Errei imensamente e ainda tenho muito de dívida e resgate. Decidi dar um golpe de Estado às ameaças de divorcio que diminuíam minhas possibilidades de sucessão. Após o segundo aborto, eu decidi dar a luz na terceira e na quarta gravidez. Oficialmente os filhos eram de meu esposo que não entendia como eu pudera ficar grávida por duas vezes. Ele confiava muito em mim e jamais imaginaria que pudesse estar traindo-o. O terceiro bebê me deu mais trabalho e tive de mandar um servo fiel atear fogo à minha própria casa nas proximidades a fim de fazer com que meu esposo saísse do palácio no momento do parto. Meu marido se tornou imperador e planejava uma guerra insana quando me vesti com um uniforme de tenente e fui para a capital à frente de um destacamento de guardas imperiais e proclamei-me imperatriz. Meu esposo, arrasado, foi preso imediatamente e assassinado. Meu amante e seus irmãos me serviram como cúmplices, sendo todos eles oficiais do regimento de guarda. Ao longo do meu reinado, cortei o poder do clero, organizei grande revolta, reorganizei o serviço civil, forcei os camponeses à servidão e acrescentei longos quilômetros de território a mais em custa da população que trabalhava na terra. Não relatarei o que decorreu desse período, pois é uma longa história e envolve a desgraça da pátria. Tive outros filhos em segredo após a morte de meu esposo e estes viveram na casa dos empregados até terem idade para que ninguém desconfiasse quem era o pai. Tais manobras me foram necessárias, pois não queria terminar a dinastia e recusara-me a casar com aquele que durante tantos anos fora meu amante. Entretanto, meu amante se vingou e transformou a corte num harém. Sempre lhe fora fiel e sabendo do seu envolvimento com sua prima, finalmente o recusei. Daí em diante, nunca mais quis saber de ninguém. Essa foi minha vida e meu caso de amor.
___ Muito bem, prosseguiremos dentro de alguns instantes com um assunto que retrata exatamente o fato da vida a sós. Obrigada pelo seu relato – disse Analice por fim se virando para a jovem que complementara a história da amiga.
Analice deu uma pausa enquanto tomava um gole de água. Depois de quinze minutos, levantou-se da cadeira e permaneceu aguardando que o resto das pessoas retornassem para seus lugares. Com mais cinco minutos iniciou sua explanação.
___ Agora tratarei de um outro assunto relacionado e não menos importante. Esse vai para aqueles que tem medo do desconhecido e foge do casamento, do relacionamento a dois e principalmente da vida conjugal. Viver só também é uma alternativa e não é o fim do mundo. Bem vistas as coisas, pode até ser o começo. Conheço relato de uma jovem que trabalhava e vivia na casa dos pais. A relação com estes era ótima, mas por sua independência financeira, sentiu um desejo irresistível de viver só. Primeiro era uma idéia vaga que a levou a procurar, em segredo, casas para alugar e, mais tarde, uma vontade expressa que os pais soubessem aceitar e até a encorajar. Ela não queria separar dos pais, mas tinha necessidade de saber se era capaz de dominar a sua vida sozinha, na ausência dos dois. Sentia necessidade de aprender a tomar decisões por conta própria e, sobretudo, era importante para ela decidir sobre o seu próprio destino sem a interferência de ninguém. Não que seus pais a oprimissem, mas com eles, ela nunca sabia se tomava uma decisão por vontade própria ou por influencia deles. Muitas mulheres enfrentam a vida sozinha após um divorcio e confessam que sentem dificuldade para ir a um restaurante ou ao cinema sozinhas. Algumas acham o caso tão complicado a ponto de desistirem do divorcio, mas devem analisar se no casamento a solidão não é maior do que a encontrada depois de uma separação. É preciso conhecer em todos os aspectos o mundo que nos rodeia para tomarmos as decisões certas nos momentos corretos.
Luiz imaginou o que estaria fazendo ali, louco de vontades ir até Analice lhe dar um abraço, beijá-la e conversar-lhe sobre inúmeras coisas, mas percebia a impossibilidade para realizar seus desejos, pelo menos naquele momento. Já teria ele desencarnado e não se dera conta? Não, mentalmente tinha consciência de que seu corpo ainda funcionava e a existência de um cordão fluídico comprovava que ele estava ligado ao mesmo. Muitos dos ali presentes não possuíam aquele cordão e Luiz deduziu assim que por certo eram espíritos desencarnados. Sentir-se ali não o deixava tenso, talvez com expectativas além do normal pela saudade de reencontrar com sua amada e vê-la falando tão bem. Seria aquela uma preparação que o envolvia num outro mundo donde em breve estaria? O porvir lhe era uma única interrogação, mas sem via de dúvidas, Luiz sentia que as vibrações daquele ambiente eram cheias de paz e serenidade.
Ainda prestativo nas palavras discorridas por Analice, ele observou o local e constatou que algo interessante acontecia no teto do salão. Na verdade este não tinha teto, mas uma espécie de gel azul flutuante. Tentando aguçar os sentidos, Luiz percebeu que do alto, provinha um aroma delicioso que antes não havia notado. Nesse momento, pôde observar que caia do gel uma espécie de inúmeras pétalas de rosas secas que se desfaziam numa espécie de fluidos ao se aproximarem da cabeça das pessoas sentadas que assistiam à palestra.
Olhando para o chão, Luiz ficou encantado e abismado por não ter percebido aquilo antes: não existia nada sobre seus pés, estavam todos flutuando. Ao redor do local, não existiam paredes como outrora imaginara ter visto, mas sim uma cortina de flores que brilhavam e radiavam uma luz colorida espalhando-se por todo o ambiente. Era possível notar a beleza das alfazemas, lírios em bagos floridos, cravos, margaridas, rosas, jasmim, gardênia, girassóis, crisântemos e ainda mais do que isso, ramos de ervas como do alecrim, cravo da Índia, canela, limão, hortelã, manjericão, camomila, tomilho, etc. Aquilo se parecia com um paraíso perdido. Existia mesmo ou era invenção da mente de Luiz? As incógnitas eram constantes e nenhuma resposta podia ser obtida naquele instante. Voltando sua atenção para a palestra, Luiz concentrou o pensamento nas palavras que Analice continuava dizendo.
___ Se pensarmos bem, a decisão de viver só é um pouco difícil, mas não impossível. No final do mês não haverá ninguém para partilhar as despesas, não terá com quem conversar nos momentos em que se sente triste, nem quem elogie o jantar ou a decoração nova da sala. Mas na verdade, isso é o cotidiano de muitas pessoas casadas. Não estou certa?
Muitos responderam que sim e de tal forma, Analice prosseguiu:
___ Existe na vida de cada um, aquele momento em que acordamos com idéias novas e queremos parar tudo na vida para encontrar o espaço próprio e conhecer-se melhor. Uma das vantagens de viver só é ter a possibilidade de estabelecer melhores laços de amizade com pessoas que, quando estamos em casa dos nossos pais ou a viver com alguém, nunca chegamos a conhecer. Entretanto, encontramos uma divergência. A contradição é que a sociedade não preparou o homem para a possibilidade de viver só. No entanto, a questão não se coloca em termos de se querer ou não viver a sós, mas sim de terem a possibilidade de o fazerem se assim o entenderem melhor para si. Estudos e pesquisas nos mostram que aqueles que passaram antes de casar pela experiência de viver só estão mais aptos a enfrentar qualquer tipo de problema que lhes surja e, até, apresentam níveis de duração dos casamentos mais elevados e ligações mais estáveis, principalmente quanto as mulheres. Entendam que muitas mulheres tomam a decisão de se casarem apenas para saírem da casa dos pais e criam então uma independência que é absolutamente falsa. Optam pelo casamento como uma maneira de mudar de situação e de tal forma, não assentam o matrimonio em bases sólidas. Pessoalmente, acho que viver só não implica coragem. Ser corajosa é deixar partilhar a nossa intimidade, os nossos segredos. Entendam que a solidão pode ser sentida num local movimentado, cheio e lotado de pessoas. Não ter ninguém que nos ame é a verdadeira solidão e não o fato de estarmos sozinhos. Quando não temos ninguém a morar conosco podemos estar acompanhados quando quisermos e sozinhos quanto bem entender conveniente. Para quem acha impossível, vou citar uma lista de boas razões para viver só e feliz: por exemplo, ouvir uma música no volume conforme lhe apetecer, tomar um banho demorado, pois não tem que dar vez a ninguém, logicamente sem se esquecer do quanto o senso de coletividade é importante nos relacionamentos, ter os pertences do jeito que gosta, não ter que fazer janta se prefere apenas comer uma maça ou uma fruta qualquer, sair sem consultar ninguém ou muito menos ter de se explicar com relação ao horário que chega em casa, enfim, fazer o que quer, na hora desejada e na própria independência. Viver sozinho é um tédio? Pode ser, mas não é desesperador e também tem suas vantagens.
Analice terminava de fazer seus comentários quando um senhor fez sinal para ela que encerrasse demonstrando que o horário se findara.
___ Este assunto é tão extenso que daria para muitas outras horas – sorriu Analice ao dizer. – Por hoje é só, gostaria de agradecer mais uma vez pela presença de todos vocês e em principal pelo consentimento de ter dentre nós, uma pessoa tão querida, aquele que não poderia deixar de presenciar esta palestra, meu amado que por duas encarnações seguidas...
___ Luiz, Luiz, acorda – dizia a enfermeira o chamando para trocar o soro e medir a pressão arterial.
___ O que foi, onde estou? – perguntou Luiz abrindo os olhos e permanecendo distorcido da realidade.
___ Parece que cochilou.
___ Pois tenho a impressão de que dormi uma semana inteira. Onde estou?
___ No hospital. Não está recobrando os sentidos?
___ Quero voltar a dormir – disse Luiz ainda sonolento.
___ Está sentindo-se mal?
___ Um pouco indisposto, com ânsia de vomito. Prefiro continuar dormindo – disse Luiz notando que tudo apenas fora um sonho.
___ Tudo bem, eu vou trocar o soro, aplicar a injeção, fazer os exames rotineiros e deixá-lo dormir conforme quer.
___ Acha que essas injeções estão dando resultado?
___ A coagulação do sangue é algo complexo, mas os efeitos estão surgindo conforme esperávamos.
Luiz respirou profundamente e de olhos fechados tentou relaxar.
___ Acho que a morte está se aproximando – ele comentou pouco depois.
___ Pronto. Qualquer coisa, eu estou de plantão.
___ Obrigada – agradeceu Luiz pouco mexendo os lábios.
___ Pode voltar a dormir – disse ela de saída.
___ Pra que, acabei de perder o sono mesmo – brincou Luiz embora fosse verdade.
___ Tem uma pessoa insistindo para lhe ver, disse que foi seu amigo de infância, tem apelido de Gravino. Conhece? – anunciou outra enfermeira entrando no quarto.
___ Gravino, sim, eu o conheço – concluiu Luiz depois de refletir sobre aquele apelido. – Deixem-no entrar.
___ Pois bem, estarei comunicando na recepção. Com licença.
Luiz conhecera Gravino em uma de suas viagens. Gravino confessara ser alguém muito solitário, com problemas familiares, enorme timidez e total falta de traquejo social.
___ Luiz, que bom te ver, pensei que não fossem permitir... Você está tão diferente, é tão triste vê-lo assim.
___ É bom vê-lo também, fico contente por poder recebê-lo, embora meu estado não seja tão propício para visitas. E aí, como anda a vida?
___ Bem, é o que posso dizer. Quando nos conhecêramos, eu ainda não aprendera a amar a solidão como hoje. Quando via algo bonito, o sol entre as folhas, um cervo se esgueirando na contraluz, tinha vontade de mostrar para alguém, mas nunca tinha ninguém para me ouvir. Não podia deixar de vir te dizer que fostes um grande amigo, um dos únicos com quem pude dividir um pouco de minhas aflições e alegrias também.
___ Você aqui me traz recordações inúmeras.
___ Sim, a mim também – confirmou Gravino. – era o começo da temporada de caça ao pato quando nos conhecemos, lembra-se?
___ Claro, me recordo claramente deste detalhe – disse Luiz fazendo um esforço para sorrir.
___ Naquela época eu tinha o costume de acordar de madrugada, sair de casa e andar vários quarteirões até o pátio da estrada de ferro. Depois atravessava a ponte e seguia pela margem do rio até entrar na floresta. Caminhar no escuro era difícil. Depois de quilômetros eu conseguia entrar no pântano e saindo para a margem do rio procurava por um terreno mais firme. A lama escorregava como graxa – sorriu ao dizer.
Luiz emocionado prosseguiu a historia.
___ Você estava procurando sair do pântano quando foi pego de surpresa.
___ Sim, fiquei gelado. Foi com medo que afastei os arbustos e me joguei na rampa achando que era um urso.
___ Quase que agarrou seu cartucho do bolso, não?
___ Mas cheguei a fazer isso, me lembro que estava o tempo todo com a espingarda na mão, inclusive mirei alvo quando você me fez parar.
___ Eu também pretendia caçar e estava apenas esperando o dia clarear. Começamos a conversar e sem imaginar ou ter previsto tal encontro, nos tornamos grandes amigos. Quando já havia luz suficiente para atirar, você me ensinou como preparar a espingarda e não demorou a surgirem os patos selvagens de dentro da densa vegetação à margem do rio. Assim que eles levantaram vôo eu engatilhei pela primeira vez e mirando pouco acima do pato puxei o gatilho. Não esperava que fosse acertar, mas a pontaria foi perfeita.
___ E você teve sorte, seu pato não caiu no rio. Geralmente, quando caia no rio, tinha de esperar a correnteza trazer o corpo para a margem.
___ Caçamos juntos durante todo o resto da temporada acordando de madrugada quase sempre. Quando voltávamos com os patos, o sol já havia surgido. Foi uma das minhas viagens favoritas – comentou Luiz com um grande sorriso. – Nos finais de semana sempre íamos passar ao ar livre junto de uma fogueira e adorava escutar suas historias.
___ Sua atenção me fazia muito bem. Era o único com quem podia compartilhar minha vida.
___ Pois bem, minha viagem tinha de terminar. Nunca mais nos vimos.
___ Mas não deixaria de vê-lo antes... – a frase ficou interrompida como se as demais palavras fossem proibidas de serem pronunciadas. – Me fale um pouco de você, como tem se sentido? – questionou por fim embora constrangido.
___ Não me sinto de mal a pior mesmo sabendo que posso morrer daqui a meio segundo. Reconheço abertamente minha fé religiosa.
___ Lembro de você me dizendo que desprezava as mordomias típicas da fama e comparecia nas cerimônias dirigindo o carro próprio em vez de alugar limusine com chofer.
___ É verdade, e também sempre ficava na fila com os outros para pegar o almoço.
___ Não pensava que fosse se divorciar.
___ Pois é, tudo muda na vida.
___ É verdade que pretende publicar um livro antes de morrer?
___ Sei que não o verei pronto, mas tenho quem se encarregue disto.
___ Lembra-se disto? – questionou o amigo pegando de um embrulho um caderno velho, porém bem conservado.
___ Meu diário! – exclamou Luiz sorridente. – Tinha perdido durante a viagem.
___ Sim, eu o achei. Os anos se passaram e nunca me empenhei de devolvê-lo. Preferi entregar-lhe já que... Bem, aqui está, talvez possa lhe ser útil.
___ Sim, logicamente. Muito obrigada, eu já nem me lembrava dessa preciosidade.
___ O seu sucesso vai muito além de beleza, inteligência e talento. Milhões de pessoas poderão amar o seu livro, mas poucos saberão realmente quem foi você, por mais que você relate sobre si próprio e a vida que teve. Digo isso, pois nem sempre transmitimos por palavras escritas aquilo que somos, mas aquilo que guardamos na mente e no coração. Por mais que descreva seus sentimentos, atitudes e por menores da vida, só quem conviveu contigo, mesmo que por um período curto de férias, saberá o quanto se empenhou para conquistar seus objetivos.
___ Está tentando me animar, eu sei disso.
___ Você foi um bom homem.
___ Não tanto quanto deveria ter sido.
___ O horário de visita acabou – informou a enfermeira no corredor.
___ Além do talento está a disciplina, o amor e a resistência. Seja firme e saiba que seus objetivos nunca terão fim a menos que sejam alcançados. Estou torcendo por você e rezarei para que seja amparado quando passar desta vida para outra.
___ Obrigada, te desejo muita sorte e longos anos de vida – sorriu Luiz numa despedida fraterna àquele que durante curto período de tempo se tornara num grandioso amigo.
Folheando antigas escritas, de uma espécie de diário relatado nos anos de sua juventude, Luiz verificou o que poderia ser útil ou interessante e reescrevendo, passou alguns trechos para o atual livro:
“Vou começar reescrevendo o prefácio que para mim é a mais bela parte, eis-a aqui”: “Como começo? O que escrever? Não sei, o começo é sempre mais difícil, porém depois que a caneta começa a rolar sobre o papel, a mente se desfaz em idéias e os pensamentos começam a surgir. Pronto, talvez já esteja preparada para esta pequena introdução. Aqui nada mais desejo do que reviver e contar os fatos passo a passo do meu dia a dia, do meu viver. Viver, eis a questão, vida, vida, porque te quero tanto e cada vez mais? A resposta desliza sobre os meus olhos que diante de si deparam com este mundo tão grande e com tantas desigualdades. É desta visão que acalento o pulsar de meu peito, deste coração que só bate em função de uma coisa, e é por esta coisa que enfrento os dias, as semanas, os meses e os anos nessa jornada cheia de caminhos surpresos e inesperados, é por trilhas cheias de espinhos e com enormes pedras, que caminho na esperança de ter pétalas sobre meus pés. Sei que é triste, é duro, mais eu também sei que irei vencer e conseguir o meu tão almejado sonho, este sonho que me faz passar e enfrentar tudo o que for preciso. Não faz muito tempo descobri que essa é a minha meta, o meu dever a cumprir, quero este desejo que, tenho fé, não demorará muito a se concretizar”.
Luiz emocionava consigo próprio ao ler aquelas palavras uma vez que se esquecera de um dia tê-las escrito. Aquilo que enlevava seus sentimentos mais profundos do coração, seus objetivos de vida maior, foram praticamente deixados de lado com a aproximação da carreira, da vida familiar e dos próprios afazeres diários que muitas das vezes nos distanciam da sublimação da alma. Assim ele continuou em sua leitura:
“Meus sentimentos variam muito, não foram poucas as vezes que me deixei desmoronar pelo pessimismo, pelo menos jamais desisti... Você deve estar se perguntando, do que será que eu estou dizendo, ou melhor, escrevendo. Pois bem, logo irá descobrir. No fundo, este é o maior desejo e o sonho de todos e bem ou mal, rápido ou devagar, todos nós iremos alcançar um dia, só depende de nós mesmos, de como enxergamos e passamos a ter a nítida compreensão de que é isto o que queremos e que o melhor é chegar pelo amor e não pela dor, embora muita das vezes, é só pela dor que o nosso obscuro se transforma em luz e faz com que aprendamos o verdadeiro valor de viver. É sofrendo que damos o primeiro passo de aceitar a realidade e fazer deste sonho um único objetivo a se percorrer. Se você ainda não adivinhou do que eu estou falando, preste muita atenção”.
Luiz sabia do que se tratava e estava encantado consigo próprio refletindo o quanto reler aquele diário lhe seria importante, era praticamente um resgate de memória de muitos anos atrás.
“Que sonho é este que tanto escrevo e que tanto me traz vida? É, chegou à hora de saber: com muito orgulho de mim mesmo revelo a verdade tão sincera – quero morar com Deus, o meu pai celestial que me espera tão pacientemente, assim como a todos os meus irmãos. Digo isso logicamente num sentido figurado. Sei que não estou preparado e por isso mesmo dedico a partir de breves instantes, o preparo do meu espírito. Sei que Deus está comigo sempre, mais isto não basta, quero eu estar com Deus e para isto necessito de me aperfeiçoar, buscar a paz, o amor, ter alegria e praticar a tão difícil caridade. Não sei se tenho mais defeitos ou qualidades, só sei que quero elevar a minha alma, o meu espírito”.
Diante da morte, sabendo que muito longe ainda permanecia do Pai Criador, Luiz elevou os seus pensamentos pensando o quanto suas intenções passaram distantes da vida que tivera e do seu presente momento. Por mais que um dia tivera ínfima vontade de ser uma pessoa melhor, tinha consciência que não fizera o seu melhor, por mais que tivesse se empenhado por tal causa. Querer é o primeiro passo, mas nunca ninguém chegará à vitória se não executar atos vitoriosos no próprio dia-a-dia. Esses atos são o que de mais difícil existe na existência do ser humano, mas não são impossíveis e verdadeiramente, este é o único caminho.
“Não posso ficar parado, tenho que ir a luta, o mais difícil e doloroso. Eu quero e vou conseguir, porque Deus está comigo, ao meu lado”.
Luiz tentou fazer uma avaliação rápida de sua vida e muitos pensamentos vieram em sua mente.
“Como deve ser o ‘céu’, o mais superior dos planos espirituais?” – continuou ele a ler – “Muitos crêem que ele é feito de casas de ouro e diamante, eu já me contentaria por de mais com casas rodeadas de flores, arvores e pássaros, a natureza em si, como é bela! O ar puro que aqui já não se encontra... Deus fez tanto por mim (nós) e como é que agradecemos? Destruindo o que ele nos deu. Tudo bem, para muitos esse é um meio de sobreviver. Nesse intuito, quero ser melhor para esse meu Pai que faz tudo por mim e por todos nós. Quero ser mais digna do amor de Cristo. Que minha mãe santíssima me guarde, me ampare e preteja a todos nós com vosso manto de amor e luz, que raios e gotas da divindade caia sobre nossos corações e que aí possa ser a morada de Deus. Rogo também pelos anjos guardiões, guias espirituais e espíritos superiores ou de boa fé, estejais conosco por mais que as vezes desprezemos os vossos conselhos que só vem para o nosso bem. Perdoai-nos por as vezes não reconhecermos que este é o melhor percurso. Diante de recorrer ajuda a todos, inicio este meu trabalho com uma prece”.
Luiz leu a prece do Pai Nosso mentalmente refletindo por breve instante até que finalizando continuou a leitura.
“Os detalhes relatados do meu dia-a-dia é como se fosse um diário, mas é uma auto reflexão critica e uma conversa com Deus em busca da minha própria perfeição moral e espiritual. Que um dia eu possa amar, perdoar e ser feliz. Que o mundo um dia, mesmo que seja daqui a longos milênios, desconheça os sentimentos negativos como ódio, orgulho, inveja, ciúme e tantos outros que fazem o homem andar para trás ao invés de caminhar para o bem. Aqui quero passar todos os meus sentimentos diretamente àquele que me guia e continuarei deixando a Ele minhas suplicas de ajuda. Estas eu creio serem eternas. Agradeço a tudo como os grãos de areia do mar e as partículas que formam as nuvens. Obrigada meu Pai... É com fé em ti que realizarei os meus sonhos e o meu maior desejo de ser mensageiro da tua paz e do teu amor. Minha vida está em vossas mãos e me enriqueço ao dizer que sou teu filho, mais do que nunca, quero seguir os passos do mestre Jesus e descobrir o que é ser feliz. Que a vossa benção esteja conosco, hoje e sempre, luz ao meu caminho e paz à minha vida”.
Luiz deu uma pausa olhando para a janela e depois para o corredor enquanto tentava lembrar da fase na qual escrevera aquelas palavras. Sem ter nítida recordação passou para a pagina seguinte onde os relatos eram diretos conforme as experiências diárias.
“É, mais um dia se foi e novamente eis me aqui. Acordei como sempre, morrendo de sono, segunda-feira é sempre um desastre, terei de esperar toda a semana para curtir a minha caminha até quase o meio-dia ou então ir a minha amada chácara”.
Luiz lembrou-se de quando em sua mocidade, mantinha o costume de dormir até mais tarde nos finais de semana e ir a uma chácara que possuíam.
“É duro ter de esperar pelos finais de semana e os feriados que além de poucos não chegam nunca. Pois bem, o jeito é curtir o dia, mesmo que este seja uma plena segunda-feira”.
Mesmo depois de adulto, aquela reclamação de ser início da semana continuou sendo proferida por Luiz durante muito tempo.
“Fui à escola, nada de especial, como sempre tudo a mesma chatice, cada vez desanimo mais de estudar, ler sim, amo e adoro ler aos livros que me interessam”.
É muito comum ver uma criança reclamando de ter de ir a escola, mas o próprio Luiz sabia o quanto seus estudos lhe fora importante e isso ocorre na vida de muitos depois que certa idade lhe tomam a face e que determinado amadurecimento se faz presente.
“Quando era pequeno e ainda não sabia ler, me lembro bem do que fazia, pegava os livros e fingia que estava lendo e já que tal ato não me satisfazia por completo, eu vivia dizendo que quando crescesse ia ler muito e realmente hoje leio o máximo que posso. É maravilhoso e agradeço a Deus pelos olhos tão abençoados. Obrigada pelos meus olhos e pela minha vida, obrigada por tudo”.
Lendo aquelas ultimas palavras, Luiz realmente forçou-se num intuito de agradecimento.
“Chegando da escola, almocei arroz, feijão, macarrão e bife de fígado. Obrigada meu Pai, pelo alimento de todos os dias”.
Lendo aquilo Luiz lembrou-se da época em que comia carne. Há muitos anos que se tornara um vegetariano convicto e apenas comia peixe por saber que tal espécie possuía alma coletiva e continha elementos nutricionais de ínfima importância. Luiz jamais sentira falta de carne em sua alimentação diária e o fato de evitar ou deixar de comer não significava que tal tipo de alimento lhe fosse proibido. Era apenas uma opinião pessoal que mantinha sobre sua própria alimentação.
“Como não queria dormir após o almoço e de barriga cheia, embora muitas vezes me sentisse com sono pelo fato de ter de acordar tão cedo para ir a escola, troquei-me de roupa e após dar um tempo da digestão, decidi ir à dona Geraldina para benzer, mas ela disse que não ia benzer hoje pelo fato de estar com a pressão arterial alta, foi uma pena”.
Luiz realmente tinha o hábito, gostando muito de ir benzer e mesmo não verificando se realmente aquilo lhe trazia benefícios, mantinha a tradição pelo bem estar de fazer aquilo que julgava ser importante.
“Não querendo voltar para casa irrealizado, resolvi ir até a casa de minha avó. Não sei se foi por falta de sorte, mas ela mal pôde ir abrir o portão para mim dizendo que a perna estava doendo. Deus tende piedade, misericórdia e compaixão de todos aqueles que sofrem, ainda mais de dores físicas as quais todos temos conhecimento do quanto são horríveis. Dai força e saúde a todos nós”.
Na época em que Luiz escrevera tais palavras, jamais podia imaginar que fosse morrer ainda tão novo e decorrente a tal tipo de acidente.
“Após algum tempo sem nada dizer, trocamos as primeiras palavras e o assunto surgiu. Nada interessante que possa ser exaltado e comentado neste momento. Minha tia também apareceu por lá, foi de moto e logo foi embora, eu fiz o mesmo e por volta das três horas da tarde já estava chegando em casa”.
Luiz prosseguiu na sua leitura, mas o parágrafo que acompanhava aquele trecho não ia ser reescrito no seu livro, era algo muito íntimo e pessoal que apenas a ele cabia naquele instante. Um dos questionamentos marcantes que não apenas na época era dito por Luiz, mas assim prosseguiu durante toda sua vida, fez com que ele naquele momento refletisse a resposta imediatamente: “O que vai ser da minha vida?” Novamente Luiz se perguntou e sentindo que quase já não tinha mais vida, um frio lhe percorreu por todo o corpo.
“Só Deus para saber e é por isso que me entrego a Ele, pois Ele quer somente o meu bem, sabe das minhas necessidades e das coisas que eu mereço. Creio Nele e nada tenho a temer. Imagino que as diversas coisas que acontecem em minha vida, já estão sendo a luz dos raios que Ele me manda para iluminar meus passos e meu caminho em meio das trevas. Sem ti, amado Mestre, não seria ninguém e não existiria. Obrigada e que assim seja” – completou Luiz terminando o relato de um dia do seu longínquo passado.
Luiz tinha muita vontade de prosseguir naquela leitura, mas sentindo-se um tanto indisposto naquele momento, com náuseas e a cabeça latejando, fechou os olhos respirando fundo e assim, ele buscou numa tentativa firme, descansar a mente de todos os pensamentos.
Luiz tentou em vão conciliar o sono, seus pensamentos estavam muito agitados e um nervosismo começava a invadir seus sentimentos. Após um certo estágio de depressão, Luiz agora estava sentindo-se um tanto desesperado e embora quisesse dormir, ao mesmo tempo não tinha vontade de dormir, pois não estava com sono. Aquele estado provocava-lhe muita raiva e ficava se perguntando porque o médico suspendera o uso de qualquer tipo de calmante ou relaxante. Ficar o tempo todo sobre aquela cama, naquele quarto de hospital por instantes lhe dava pânico e muitas vezes, mesmo sentindo necessidade de dormir, Luiz não conseguia permanecer durante muitos minutos com os olhos cerrados. Seu coração começava a bater imensamente acelerado enquanto sua respiração ficava agitada e tudo se desconcertava. À vontade de Luiz era de ficar aos berros e gritar até perder o resto de suas forças. Por vezes imaginava que antes de morrer ficaria louco com tal situação, mas depois tentava se controlar e suportar com resignação aquilo que lhe parecia um tormento.
Quanto mais remexia na cama, mais impaciente ficava. Por menos que quisesse deixar escapulir o seu esforço de ficar calmo e dócil, muitas vezes não conseguia e tinha vontade de desaparecer. No fundo, Luiz não sabia o que sentia realmente e o porque tinha variações tão bruscas e repentinas no seu estado de humor. Talvez pelo simples fato de saber que ia morrer em pouco tempo. Um sentimento malévolo de raiva e ódio também penetrava em seus sentidos mais íntimos e Luiz não sabia mais o que fazer, muito menos conseguia visualizar se tinha condições de tomar qualquer atitude. Aquele estado entre a vida e a morte, estava o arrastando ainda mais para o fim de sua existência. Luiz tentava de tudo para ser positivo, mas muitas vezes, quase sempre, as coisas se tornavam mais difíceis do que suportáveis.
Verificando as horas no relógio de cabeceira, Luiz retornou do ponto de partida da leitura do seu antigo diário:
“O dia hoje passou rápido. Acordei como sempre às seis horas da manha e mais uma vez fui para a escola. Tive prova de matemática e pelo fato de não ter estudado, uma vez que apenas o teatro me interessa agora, creio que se tirar uns dois em dez pontos já será até vantagem, além do mais, detesto matemática. Graças a Deus acho que amanha não terei prova. Dois professores faltaram e por isso saí mais cedo chegando em casa por volta das dez horas”.
Luiz riu consigo mesmo pensando no quanto seria bom se pudesse retornar o tempo atrás, mesmo que fosse para ter de acordar cedo e ir à escola, pelo menos com toda a saúde e vitalidade que esbanjava na época.
“Minha mãe não estava em casa, tinha ido ao supermercado. Já que não tinha nada para fazer, me coloquei enfrente ao espelho conversando comigo mesmo, não pude compreender ainda o que o meu professor de encenação teatral quer com esse tipo de exercício. A principio senti uma certa agonia, mas depois tudo bem. Pude observar os movimentos do meu rosto, nada de especial, apenas uma face que eu já estou cansado de ver. Por umas três vezes repeti a parte de um poema que decorrei de um livro que me foi passado para fazer a prova prática de habilidade especifica do meu amado curso de teatro. É ruim ter de fazer tudo às escondidas, mas é o único jeito e nem comento nada mais, pois esse assunto me desgasta bastante. Logo minha mãe chegou e para adiantar as coisas, resolvemos ir ao banco, foi só o prazo de comer um pão torrado e sair. Já esperávamos a uns cinco minutos no ponto de ônibus quando o vizinho passou e nos ofereceu carona. Não demorou nada e estávamos no banco, após esperar na fila e resolver a questão de um dinheiro que minha mãe tinha pendente para receber, passamos em algumas lojas e retornamos para casa. Aí é que fomos almoçar. Passei um bom tempo fazendo um projeto de inglês e quando terminei resolvi descansar um pouco. Acabei dormindo e se não fosse minha mãe me acordar, teria perdido a hora exatamente da minha aula no curso de inglês. O dia hoje foi gostoso, não teve sol e nem frio, porém começou a chuviscar fino quando saí de casa e na volta, meu pai teve que me buscar de carro. Mais uma coisa para me deixar de cabeça quente, próxima aula será revisão e depois é prova, mais uma e essa não é moleza não”.
Luiz relembrava consigo mesmo o quanto sua jornada era a toa, quase nunca tinha o que fazer e de tal forma, seu tempo ficava todo desperdiçado, uma vez que não podia se empenhar naquilo que realmente era seu sonho e sua futura carreira profissional. Apenas estudava, pois era isso que agradava aos pais. Sua vida prosseguiu apenas nos estudos durante muitos anos, até que realmente se formou e conseguiu mandar em sua própria vida, possuindo posteriormente sua própria independência financeira.
“Pior é que tenho de fazer as lições até uma hora, ainda bem que amanha sairei mais cedo da escola novamente pelo fato da educação física ter passado para à tarde. É, falando nisso, desde o começo do ano, eu nunca fui numa aula sequer de educação física, não vou com o jeito daquela professora”.
Apenas de pensar na professora, Luiz sentiu a mesma repugnância que sentia quando ia às aulas de educação física e tinha de suportá-la apitando os jogos ou dando as regras.
“Amanha espero ter um dia bem calmo e tranqüilo. Estou cansado por hoje e com sono, espero ter uma boa noite de sono e sonhar coisas boas. Que Deus possa me proteger e estar comigo em todos os segundos e em cada porção de ar que eu respiro. Obrigada meu Pai, que eu seja carregada em vossos braços quando meus pés se encontrarem perdidos sobre a imensidão do vosso mundo”.
Luiz virou a pagina e novamente olhou para o relógio. Não estava com sono, mas o cansaço se fazia ainda maior e não se sentindo nem um pouco confortável para continuar aquela leitura, insistiu novamente em conciliar o sono. Suas pálpebras começavam a pesar e talvez aquele fosse o exato momento para tentar dormir.
Sem perceber, Luiz mentalmente entrou em seus sonhos e mais uma vez conseguiu ver quem tanto queria: Analice. Dessa vez não era uma palestra, mas algo totalmente oposto.
Primeiramente Luiz observava uma pista de pouso dentre os cumes verdes. Ele não sabia o que fazia ali nem o que tudo significava. Sua mente estava muito consciente e ficava se perguntando se aquilo era apenas pensamento, sonho ou se já teria falecido, porém constatava ainda o seu cordão já bem desgastado que o fazia estar figuradamente preso ao corpo. Sem entender de onde provinha o som e porque este era tão suave e agradável, Luiz apreciava uma melodia sinfônica muito agradável, era uma mistura de trompete com piano, violino e harpa.
Enquanto ia descendo em espiral, pelas janelas viam-se picos com plantações de flores amarelas alaranjadas e aldeias com telhado cônico que refletiam uma luz brilhante e diferente de tudo o que Luiz já presenciara em sua vida. Era um tanto difícil explicar o que sentia ou qual era a sensação tida através daquele local impressionantemente mágico. Conforme se aproximava da pista, Luiz podia escutar um coro de vozes alegres que cantavam uma espécie de boa vinda. Mas afinal de contas, que lugar era aquele e o que Luiz fazia ali?
Quando finalmente o aparelho, que era uma mistura de nave espacial e trailer, decolou tocando a pista, Luiz se sentiu fatigado para descobrir o que se passava. Aquilo tinha um significado e não estaria obstante de ser descoberto. Luiz sentia-se um tanto tonto, mas estava curioso e até mesmo animado para desvendar que misterioso local era aquele.
Ao sair do aparelho, verificou ao redor alguns grupos de homens, mulheres e crianças aglomeradas. Luiz fitou-os espantado e percebeu que a língua deles era um vocabulário polissilábico totalmente diferente. Verificando que o aparelho estava dando partida e começava a se retirar, Luiz correu para não ficar para trás, perdido naquele local tão diferente. Numa velocidade exagerada, o aparelho se retirou deixando Luiz, que de nada adiantou tentar retornar.
Espantado, Luiz sorriu mais aliviado ao ver dentre os seres daquele local que sua amada Analice vinha em sua direção. Seria ela mesma? Luiz sorriu e estendeu os braços sentindo-se meio tonto para correr ao encontro dela.
“Se tiver de morar num local como esse, admito que no começo vou achar um pouco difícil, estas moradias não parecem concretas e tenho a impressão que elas vão se desfazer de um momento para outro. Seria isso uma espécie de preparação para meu desencarne?” – questionou Luiz a si mesmo em sonho, por sinal bastante consciente.
___ Foi muito difícil conseguir tê-lo tão perto de mim, precisei da ajuda de vários companheiros e longas horas de preparação. Você parece ligeiramente abalado, mas sei que minha presença o faz renovar a fortaleza de ânimos.
Luiz nada conseguia dizer e apenas sentindo o delicado perfume de Analice, abraçou-lhe com carinho e afeto beijando-lhe a testa em seguida.
___ Não se preocupe, logo suas aflições se findarão. Ainda terá muito trabalho pela frente, mas precisa de um tratamento demorado e preciso.
___ Onde fica sua casa? Quero perguntar, onde está morando, aqui mesmo?
___ Por enquanto não deve se preocupar com isso, eu estou bem – respondeu ela meigamente lhe acariciando a face.
Luiz iniciou um pranto que logo fez seus olhos avermelharem. Tinha tantas coisas para dizer, mas nenhuma palavra conseguia sair de sua garganta.
___ Deixe-me vim viver contigo quando finalizar meu tempo de vida lá no planeta Terra.
___ Não sou eu quem decide isso, as coisas não são bem como pensa. Ainda descobrirá absurdos inimagináveis e fantasias maravilhosas. Todos precisamos estudar e sua hora de despertar já está até passada.
___ Me mostre sua casa, tudo aqui parece tão agradável, porque não posso passear contigo e conhecer...
___ Estarei aqui provisoriamente para cuidar de você, mas depois disso provavelmente não continuaremos juntos. Venha, vou levá-lo aonde tanto quer ir. Meu refugio é atrás daquelas arvores. Venha ver.
Luiz sorriu espantando as lágrimas tristes e acompanhou-a. Seu coração apertou-se ao ver a casa, na verdade uma cabana coberta de sapé, com assoalho de terra batida, pequena demais para uma família.
___ Fica aqui sozinha? O espaço é tão pequeno.
___ É o suficiente. Está imantado de vibrações das quais necessitamos.
O barraco tinha duas janelas. Ambas estavam vedadas com uma chapa de plástico transparente, que impedia a entrada de insetos, se é que ali havia algum. Também protegia contra o vento e a chuva. Verificando isso, Luiz arriscou uma pergunta:
___ Aqui chove, faz calor ou frio?
___ Não temos muito tempo, saiba que nosso encontro é para tranqüilizá-lo. Quero que confie, tenha fé. Estou contigo em todos os momentos e vou lhe ajudar.
___ Não mereço tanto amor desse modo – resmungou Luiz.
___ Suporte as dores físicas, pois elas o perseguirá nos próximos dias.
___ Donde vem essa música tão animada, descontraída e divertida? É uma mistura de coro com instrumentos sinfônicos.
___ Tem muitas coisas que lhe são desconhecidas. Não lhe darei explicações sobre este lugar, apenas quero que escute meus conselhos.
___ Esse local não é nenhum paraíso. Parece-me uma imensa área ainda pouco ou praticamente toda inexplorada, cheia de montanhas elevadíssimas e cachoeiras. Não vejo nenhuma horta e nem animais. Sinto cheiro de água, para chegar aqui o aparelho que me trouxe atravessou rios de águas agitadas no fundo de precipícios. Existem grutas escondidas por aqui? Estou hesitante para me aventurar neste local.
___ Esse local tem nome de Jambalaya. Existem inúmeras coisas sobre esse chão que pelas suas condições ainda não podes ver. Seus olhos ainda permanecem com o estado grosseiro do corpo.
___ Acho que se não vier logo, ou melhor, se eu não sair logo daquele hospital, vou ficar chorando silenciosamente no escuro durante muitas noites. Não tenho pressa para morrer, mas não agüento mais minha situação, sem esperança, sem forças, sem saber nem mesmo o que pensar.
___ Tens uma historia por terminar.
___ Sim, minha historia de vida, o livro que deixastes sobre minha responsabilidade. E nossas filhas, como elas...
___ Não se preocupe, tudo acontecerá da maneira como deve ser.
___ Você está calma de mais para meu gosto.
Analice riu novamente acariciando o rosto de Luiz.
___ Quando deixei a Terra, sentia saudades e estava preocupada com nossas filhas também. Deixei-as recém-nascidas e não sabe quanto sofri até descobrir lições preciosas sobre a vida dos espíritos. Tudo ao seu tempo, eu quero que não se preocupe. Não quero que se sinta mal, com a sensação de que não o quero aqui, mas ainda não está na sua hora.
___ Como sabe que acabei de pensar nisso e ter essa sensação?
Analice sorriu ainda mais meigamente.
___ Não quero que você se sinta desalentado pelas inúmeras inconveniências que enfrentará nos próximos dias. Seja firme. Quando notar que todos do hospital já estão dormindo, cerre os olhos e ore.
___ Estou em apuros, tenho medo.
___ Já morrestes inúmeras vezes e muitas outras donde precisou nascer, o que é ainda pior. Porque temer agora?
___ Sinto um pesar em meu coração, a responsabilidade pela minha própria alma tão imperfeita.
___ Não se culpe. Sinta o seu imenso valor, assim como o imenso valor de cada ser criado a imagem de Deus.
Grande indignação ardeu no peito de Luiz ao pensar que durante milhares de anos, a belíssima imagem de Deus na humanidade fora conspurcada, abafada e negada. Tempos e tempos após, nem mesmo Jesus foi aceito dentre o povo. Junto de Analice, ele não queria que nem a dor, nem o temor pudessem arrancar dele uma só lagrima. Mas naquele instante, as lágrimas voltaram a fluir livremente sob a tensão do peso de seu fardo.
___ Na verdade, não queria morrer agora. Tudo na minha vida era tão maravilhoso – choramingou Luiz numa dor profunda.
___ Eu deixei a minha muito antes de ti, e olha que estava no momento mais feliz, ao dar a luz de dois seres que permaneceram nove meses dentro do meu corpo. Morrer pode ser um privilegio quando notar o quanto te espera do lado de cá.
Analice, silenciada ao ver a alma de Luiz tão profundamente exposta diante de seus olhos, resolveu encerrar aquele encontro dando assim sua ultima recomendação:
___ Lembre-se, não se desespere, não se angustie pelo passado ou pelo temor dos dias que se seguirão. Estou contigo. Continuo te amando como sempre.
Luiz acordou assustado e muito tonto tentou lembrar com o que sonhara. Diferente do sonho donde vira Analice dando uma palestra, esse ultimo, pouco sabia descrever, apenas guardava uma boa impressão que o fez dormir calmamente logo em seguida.
Ao acordar, com a impressão de estar mais disposto, Luiz observou o quarto donde há tantos dias estava. Respirando profundamente e espreguiçando o corpo em seguida, mesmo sentindo este muito dolorido, Luiz sentiu que seu coração ainda pulsava tranqüilamente dentro de seu peito. Aquela sensação de ter sonhado com Analice lhe dava empolgação e um contentamento inexplicável. Sentindo-se renovado, puxou o bloco de anotações e pensou no que tinha de importante para relatar naquele momento.
“Agora irei relatar um episódio que ocorreu durante uma viagem que fiz para o exterior. Tinha vinte sessões de uma gravação para um filme de ação e ficção que muito me divertiu. Era primavera e logo a principio fiz amizade com um jovem cavalheiro, de fato posso dizer que ele tinha uma excelente e ilustre família, mas, devido a uma variedade de acontecimentos adversos, foi reduzido à pobreza tal, que a energia de seu caráter sucumbia, fazendo com que desistisse da vida mundana e de tratar da recuperação de sua fortuna. Por cortesia de seus credores, restou ainda em suas mãos uma pequena parte de seu patrimônio e, com rendimentos que dele advinham, conseguia, mediante rigorosa economia, o necessário para viver, sem supérfluos. Naquela época, ainda achava um tanto difícil à tarefa de escrever um livro e para buscar inspiração, estava visitando algumas livrarias maiores quando ocorreu nosso primeiro encontro. Ele procurava um volume raro e notável que eu visualizava na prateleira. Ele Comentou que já estava desistindo de procurar aquele livro e por sorte o achara. Iniciamos um dialogo no qual fiquei profundamente interessado na história familiar que ele me detalhou e o porque estava à procura de tal livro. Fiquei impressionado também com a vasta extensão de sua leitura, além do meu encantamento pela sua imensa vivacidade de imaginação. Notando que eu desconhecia esse precioso dom para me tornar redator, senti que a convivência, mesmo que temporária com aquele homem, seria para mim um verdadeiro tesouro e contei-lhe da minha tarefa de prosseguir relatos provindos de uma tradição dos antepassados. Na verdade, ele fora um escritor muito popular, mas apenas direi isso, não vendo necessidade de relatar o que posteriormente lhe ocorreu para sua vida mudar de patamar”.
Luiz relaxou o pescoço escutando-o estralar duas vezes. Depois mexeu nos punhos estralando os dedos, mesmo detestando o seu costume de às vezes fazer aquilo. Cheio de recordações, tomou um gole de água e prosseguiu suas anotações.
“Ele me relatou que gostava de escrever sobre a luz de uma vela perfumada que irradiava apenas pálidos e fracos raios. Era nesse ambiente que ele escrevia e foi naqueles dias, com sua ajuda, que ocupei minha mente em sonhar e conseqüentemente escrever até o relógio me avisar à chegada da verdadeira escuridão da madrugada. Era incrível como o contraste da luz e a sombra me deram inspiração. Senti-me como um verdadeiro e antigo escritor, daqueles que tinham de molhar a pena no tinteiro a cada minuto e duas palavras. Quando minha inspiração ou motivação ficava racionada, andava pelas ruas indo bem longe e observando a populosa cidade, verificando que observações tranqüilas daquele local me proporcionavam idéias novas. Quando não estava nos estúdios gravando o filme, ficava por horas escrevendo. Quase todo mundo já se divertiu, em algum momento de sua vida, refazendo os passos pelos quais chegou à determinada situação. Eu estava fazendo isso e algo a mais, escrevendo. Contei muito com a ajuda daqueles do convívio próximo uma vez que relatei varias folhas sobre minhas filhas, seus relacionamentos e meu envolvimento nessa história de vida. Desejo que seja do conhecimento de todos que amei a experiência de ser um escritor e dividir um pouco da minha vida, mesmo que isso aconteça depois da minha morte. Quero que quem leia, sinta a mesma felicidade que tive ao escrever cada palavra. Se possível, que também sinta comoção, animo e inspiração para viver e fazer da vida o melhor que puder, tendo consciência de que a saúde é um valioso tesouro que dinheiro nenhum pode comprar. Reflitam sobre o que escrevo, hoje tenho dinheiro para comprar uma imensidão de casas e carros, imóveis e terras, mas nenhuma moeda me serve. Já estou tão embargado pela idéia da morte que não sei o que faria se pudesse voltar à vida. Como não é do meu desejo desviar do assunto principal, voltarei ao relato”.
Luiz bebeu outro gole de água, não estava com sede, mas sentia a boca seca e incrivelmente amarga, o que lhe incomodava profundamente.
“Numa das madrugadas, em que me empenhava nestas escritas, os moradores do quarteirão foram acordados por uma sucessão de gritos espantosos vindos, aparentemente do apartamento ao lado donde estávamos. Devo explicar que nossa equipe estava hospedando-se num aparte-hotel numa das ruas mais movimentadas da cidade. A viatura apareceu logo em seguida e os policiais aos montes recuou os curiosos que se perguntavam o que estava acontecendo. Após alguma demora, ocasionada pela tentativa infecunda de tentar abrir a porta por vias normais, arrombaram-na com uma alavanca e cerca de treze policiais adentraram acompanhados de suas armas. A essa altura os gritos já haviam cessado, mas até então, eu mesmo nunca escutara tantos berros e discussões violentas daquele modo. O apartamento se encontrava na mais completa desordem, moveis destruídos e atirados em todas as direções. Fiquei desesperado ao constatar que aquela era exatamente a residência do homem pelo qual fizera amizade e o qual tanto me ensinara sobre maneiras de ter inspiração. Tendo mais receio do que curiosidade, eu busquei noticias sobre o que acontecera, mas ninguém sabia responder. Sobre uma cadeira havia uma navalha muito suja de sangue. Na lareira havia duas ou três longas e grossas tranças de alho, também empapadas de sangue. No chão, algumas jóias, correntes de ouro e um anel de prata com diamante, provavelmente um anel de formatura. As gavetas estavam reviradas, caídas e pareciam ter sido saqueadas, embora ainda restassem muitos objetos. Um pequeno cofre de ferro foi descoberto debaixo da cama. Estava aberto e a chave ainda permanecia na fechadura. Não havia nada além de cartas antigas e alguns papeis de pequena importância, documentos e fichas de algum tipo de avaliação. Não havia nenhum sinal de meu amigo, mas uma quantia incomum de fuligem foi observada junto à lareira. Fizeram uma busca na chaminé e horrendamente encontraram o corpo do homem de cabeça para baixo. Ele estava morto. Havia sido empurrado pela pequena abertura até uma altura considerável. O corpo ainda estava quente. Ao ser examinado, foram detectadas muitas escoriações, sem duvida causadas pela violência com que tinha sido empurrado e retirado. Na face havia muitos e profundos arranhões e no pescoço, manchas escuras e incidências profundas de unhas, como se ele houvesse sido estrangulado. Todos se questionavam: O que aconteceu? E eu, muito abalado, buscava imaginar o que teria acontecido com meu recente amigo”.
___ Luiz, tudo bem? – a enfermeira interrompeu seus pensamentos entrando no quarto.
___ Sim.
___ Dormiu bem?
___ Sim – respondeu ele finalmente levantando o rosto e tirando os olhos do papel em que escrevia.
___ Vou trocar seu soro, coordenadas medicas.
___ Algo errado?
___ Nova dose de uma substancia que engrossa o sangue. Suas hemoglobinas estão todas alteradas.
___ Evite me relatar detalhes – pediu Luiz.
___ Claro, me desculpe.
Assim que a enfermeira se retirou, Luiz leu o ultimo parágrafo escrito e prosseguiu a historia.
“Depois de cuidadosa investigação de cada canto do apartamento sem nada descobrir, o grupo de policiais se dirigiu a uma pequena varanda com um jardim de inverno na lateral do quarto de casal, onde estava o corpo de sua esposa, com a garganta tão profundamente cortada que, numa tentativa de levantar o corpo, a cabeça se desprendeu. O corpo, assim como a cabeça, estava tão terrivelmente mutilada, que mal conservava aparência humana. No dia seguinte a noticia daquele terrível acontecimento estava espalhada pelos jornais, mas ninguém tinha pista do que de fato acontecera. Muitas pessoas foram interrogadas em relação àquele extraordinário e pavoroso assassinato. A lavadeira declarou que conhecera as vitimas por dois anos, lavando suas roupas naquele período de tempo. Disse ela que o casal pareciam dar-se muito bem, sempre com afetuosidade entre eles. Nada ele me contara sobre sua vida intima ou amorosa. Sua esposa era cartomante, assegurando assim a sobrevivência dos dois. Dizia-se que tinham muitas economias guardadas. O dono de uma venda próxima declarou que desde quando montara seu estabelecimento naquela rua, vendia porções de incenso ao casal. Meu amigo me relatara que nascera naquela mesma vizinhança e sempre morara por lá, naquele mesmo bairro. Anteriormente, além de escritor, meu amigo fora um joalheiro que era famoso por ter dinheiro. Poucas pessoas acreditavam, segundo relato do dono da loja, que a esposa do meu amigo fosse cartomante, dizendo que ele mesmo nunca vira nenhuma pessoa comentar que lera a sorte com ela. Muitos vizinhos deram o mesmo depoimento. Ninguém sabia se havia qualquer parente do casal residindo na cidade. As trancas das janelas da sala estavam fechadas, as dos cômodos do fundo estavam abertas, com exceção das do grande quarto de casa. O apartamento era bom e tinha aparência de conservado e novo. Os vizinhos mais próximos declararam que os gritos eram fortes e longos. Os próprios policiais escutaram uma voz áspera e outra estridente enquanto subiam os vãos de escada. Não puderam identificar ou entender o que diziam, mas todos declararam o mesmo: a conversa de discussão tida anteriormente tinha sotaque de idioma estrangeiro. Os policiais fecharam a porta para manter a multidão do lado de fora, enquanto esta aumentava rapidamente, apesar do adiantado da hora. Os policiais concluíram que a voz estridente não era de nenhuma das vitimas segundo o relato de todos. Muitos deram depoimento voluntário. Buscaram pistas bancarias. Meu amigo tinha uma conta conjunta com sua esposa donde há nove anos não havia alterações de retirada, apenas depósitos, porém, nos últimos meses, inclusive três dias antes, fora sacado uma quantia bem grandiosa, deixando apenas um resto na poupança. O que acontecera?”
Luiz cobriu a ponta dos pés sentindo um pouco de frio e sem deixar os pensamentos divagarem, prosseguiu escrevendo.
“Tudo já estava em pleno silêncio quando os policiais arrombaram a porta, sem grunhidos ou barulhos de qualquer espécie. Ninguém fora visto e o mistério era curioso uma vez que ninguém descera pela escadaria. O assassino então estaria ainda dentro do apartamento? A porta que saia do quarto para o corredor lateral estava trancada, nenhum sinal de chave. Um quartinho da frente, no final do corredor, estava com a porta escancarada. Esse quarto estava cheio de caixas e outras coisas sem relevância. Os objetos foram cuidadosamente removidos e revistados. Todos os cantos da casa foram vasculhados meticulosamente, não havia ninguém ali dentro. A chaminé foi vistoriada de cima abaixo com uma vassoura. O apartamento tinha quatro quartos sendo um deles uma espécie de sótão, sem alçapão no teto e que parecia estar trancado a muitos anos. Houve declaração dos vizinhos de apartamentos embaixo que pareciam discutir sobre dinheiro. Devo explicar que o prédio era muito luxuoso e eles moravam na cobertura, portanto não estranhe ao pensar em chaminé dentro de um apartamento. Além do mais, uma das partes do apartamento era de mezanino e a decoração, se não fosse pela bagunça toda do recinto, era muito bela. Nada de maior importância se conseguiu, apesar de varias pessoas terem sido interrogadas. Nunca presenciara um assassinato tão misterioso, tão intrigante em todos os seus pormenores. A edição vespertina do jornal noticiou que havia ainda grande movimentação no prédio e que as circunstancias relacionadas ao caso tinham sido cuidadosamente reexaminadas, além de novos interrogatórios que continuavam sendo feitos, mas tudo, entretanto, não chegara a um resultado convincente e explicativo sobre o que ocorrera naquela madrugada. Aquele era um mistério insolúvel, estava assustado e triste pelo ocorrido com meu tão recente amigo. Evidentemente, poderia ser desfeita qualquer prova, pelas investigações, da possibilidade da esposa ter matado meu amigo e depois ter cometido suicídio. Além do mais, ela não teria força suficiente para enfiar o corpo dele na chaminé tal como foi encontrado e a natureza dos ferimentos dela excluía completamente a idéia de autodestruição. O assassinato, então, foi cometido por uma terceira pessoa, e as vozes desta foram ouvidas durante a briga. A perícia investigou os meios de fuga usados pelo assassino. Não é demais dizer que acredito em eventos sobrenaturais, mas seria incompreensível dizer que eu ou qualquer outra pessoa desconfiasse que o casal fora morto por espíritos. Os autores do crime eram materiais e escaparam de forma tangível. Mas como? A perícia vasculhou o chão, o teto e as paredes, em todas as direções. Nenhuma passagem secreta poderia escapar a vigilância, mas era pouco plausível de existir qualquer que fosse, uma vez que é praticamente impossível montar passagens secretas em apartamentos, principalmente no ultimo andar. Pelas janelas ninguém sairia sem ser visto pela multidão da rua ou sem cometer suicídio. O assassino teria conseguido sair do apartamento antes da polícia chegar? Mas onde ele se enfiara? Será que não era alguém do próprio prédio? Essa foi à dúvida que fez todos se arrepiarem. Além do mais, algo muito significante para as pesquisas: todas as câmeras de segurança estavam desligadas no momento do ocorrido. O assassino provavelmente estava dentre nós. As investigações e depoimentos continuariam. Havia algo completamente irreconciliável com os assassinatos comuns. A questão era: porque tinham colocado o corpo dele dentro da chaminé escondendo-o completamente? Além do mais, ninguém entendia como alguém tivera força capaz de enfiar o homem em tal abertura se a força conjunta de vários policiais mal foi suficiente para puxá-lo para baixo. O corte da cabeça de sua esposa também demonstrava um ato de ferocidade brutal. Se apartamento não fosse exatamente no meio do centro da cidade, poderíamos dizer que aquilo fora obra de algum animal muito selvagem, algum macaco de laboratório ou algo assim, mas ninguém acreditaria nisso e sem mais pistas para descobrir o que ocorrera, o caso foi encerrado. Todos do prédio continuaram assustados com o incidente durante vários meses e as minhas gravações tiveram de ser adiadas. Nem eu e creio que ninguém mais descobriu o que se passou naquela madrugada”.
Luiz respirou fundo sentindo um torpor pelo corpo.
___ Ainda escrevendo? – questionou a enfermeira entrando pelo quarto novamente. – Você tem que descansar – ela informou.
___ Você vem me falar que tenho de descansar? Passo dia e noite nessa cama e é isso que tem para me dizer? È impossível pedir para que minha mente descanse.
___ Tem visitas, seus companheiros da equipe de trabalho. Posso deixá-los entrar?
___ Sim, mas sem nenhuma câmera. Hoje estou com muita dor.
___ Sim senhor.
Poucos minutos depois, a enfermeira retornou acompanhada de alguns amigos de Luiz e inclusive do seu diretor de gravação do ultimo filme que fizera, o qual por obsequio fora um sucesso total.
___ Luiz! Nem vou perguntar como está, pois... – dizia um deles quando se calou sem ter ao certo as palavras na ponta da língua. - Estamos todos imensamente pesarosos.
___ Detesto despedida – disse Luiz tentando sorrir.
Aquele momento era muito constrangedor. Poucas palavras foram trocadas. Era um verdadeiro choque ver Luiz naquela situação.
___ Resolvemos montar um filme em sua homenagem e viemos lhe entregá-lo. Não sei se estará vivo quando ele for lançado, logicamente que isso só acontecerá se tivermos sua permissão e, portanto voltaremos para consultá-lo. Dessa forma, viemos para lhe revelar o que deveria ser uma surpresa, aqui está – disse o diretor entregando-lhe uma fita.
___ Fico muito agradecido, vou pedir que providenciem um vídeo. Muito obrigado.
___ Você sabe o quanto ficará marcado em nossos corações e na mente de muitas pessoas.
___ Só espero que minha lembrança seja benéfica, não quero ninguém triste por eu ter morrido.
___ Quer algo impossível – sorriu um de seus companheiros de cena. – Sentiremos sua falta, meu amigo.
___ Estou diante de uma liberdade que ainda não compreendem. Porém, como ser eterno, termino uma jornada para começar outra e desejo que vocês também sejam muito felizes na de vocês. O trabalho nunca terá fim, assim como deve ser com os bons sentimentos dentro de nós.
___ Você quer nos fazer chorar? – questionou um deles emocionadamente com a voz embargada.
___ Também levarei vocês comigo, aqui dentro – disse Luiz colocando a mão no peito. – Obrigada por tudo e me desculpem por todos os males entendidos.
Ninguém mais pronunciou nenhuma palavra, pois estas eram transmitidas pelos olhos brilhantes de lagrimas que cada um expressava na face. Aquele momento tinha um peso inexplicável e incomparável.
Terminada a visita, Luiz aguardou para que providenciassem um vídeo e foi com o coração apertado que pediu para que colocassem a fita. Não era bem um filme, mas um relato em forma de longa metragem.
“Durante alguns anos, invejamos um homem por sua verdadeira forma de ser feliz” – dizia uma voz na fita enquanto passava imagens de lindas flores. – “Ele esposou de uma bela jovem, que faleceu no termino de sua gestação, deixando duas crianças maravilhosas, além de outra ainda mais brilhante que tivera antes”.
Nas imagens mostradas, Luiz assistia a uma casa, revestida de ardósia, situada entre um beco e uma ruela que terminava num riacho. Seu interior tinha um chão liso e sem desníveis. Um vestíbulo estreito separava a cozinha da sala onde uma de suas amigas, figurante da cena, permanecia sentada numa poltrona de palha, perto da janela.
“Em homenagem a alguém muito especial, relataremos uma lição de vida que mudará para sempre o rumo de nossos passos”.
Encostadas no lambri, pintado de branco, apareciam na tela oitos cadeiras alinhadas. Um velho piano sustentava, sob um barômetro, uma pilha de caixas de papelão. Um tapete muito colorido ladeava a lareira em mármore amarelo, em estilo antigo. O relógio, no meio, representava o símbolo maior do cenário. Seus ponteiros permaneciam imóveis.
“Quando os ponteiros de nossa vida param, não existe tempo que volte atrás ou que prossiga. Hoje, devemos mostrar ao mundo o quanto o nosso tempo é precioso”.
No primeiro pavimento, havia um quarto, muito grande, forrado com um papel de flores desbotadas, contendo o retrato de Luiz, de aparência janota. O ambiente se comunicava com um quarto menor, onde se viam duas camas bem forradas. Depois vinha a sala de visitas, cheia de moveis cobertos por lençóis. Em seguida, um corredor levava a um escritório com livros, papeis e enfeites que lotavam as prateleiras de uma estante que tomava dois lados de uma escrivaninha grande em madeira escura. Dois painéis, por sua vez, desapareciam sob desenhos em bico de pena, paisagens a guache e gravuras da vida de Luiz, muito bem retratadas, lembranças de um tempo melhor e de uma vitalidade perdida. Uma lacuna, no segundo andar, clareava um pouco o quarto tendo à vista para os campos floridos.
“Ele é um exemplo de perseverança e retrataremos aqui, tudo o que ele significou em nossas vidas”.
Na cozinha, apareceu à mesma mulher mostrada anteriormente, naquele momento comendo com lentidão e recolhendo com os dedos as migalhas de pão. Estava com uma touca escondendo-lhe o cabelo, usava um lenço indiano fixado nas costas por um alfinete, meias cinzas, um saiote azul e sobre a camisola, um avental inteiriço, como o das enfermeiras de hospital.
“Queremos retratar o quanto à felicidade pura é simples” – dizia a fita enquanto mostrava cenas da mulher. – “Essa mulher teve, como qualquer outra, sua historia de amor. O pai, pedreiro por não ter outra profissão, morreu quando caiu de um andaime. Depois sua mão faleceu, as irmãs se dispersaram, um arrendatário recolheu-a e empregou-a, ainda pequena, para cuidar das vacas no pasto. Ela tremia de frio em seus farrapos, bebia, deitada no chão, a água das poças, apanhava por qualquer motivo e por fim, acabou sendo expulsa por causa de um furto de uma mixaria, que não cometera. Foi para uma outra propriedade, onde trabalhou no fundo do quintal, cuidando dos animais e naturalmente, como agradava aos patrões, era invejada pelos outros criados. Aos quinze anos, fizeram-lhe uma festa e ela ficou atordoada, estupefata pela balburdia dos violinistas, pelas luzes nas arvores, pela miscelânea de cores das roupas, pelas rendas dos violeiros muito bem trajados, pelos convidados que nem ao menos conhecia. Mantinha-se a distancia, modestamente, quando um jovem, de aparência abastarda, com os dois cotovelos sobre o timão de uma carroça, veio tirá-la para dançar. Pagou-lhe sidra, bolo, quitandas e uma pulseira. Depois ele se afastou sumindo do ambiente”.
Na tela, a cena relatada. O vento daquela noite estava suave, as estrelas brilhavam, a enorme carroça de feno balançava enquanto os quatro cavalos, arrastando os passos, levantavam poeira.
“Depois de alguns dias, ela recebeu um bilhete com um encontro marcado e na semana seguinte, viram-se no fundo dos pátios, atrás de um muro, sob uma arvore isolada. Ele fez grandes juras e pediu-a em casamento. Ela hesitou em acreditar no amor que ele dizia ter por ela. Era apenas a segunda vez que passavam momentos juntos. No terceiro encontro, ele não compareceu e um menino levou a ela um recado. Aquele a quem um dia pensara em se casar, acabara de se casar com uma senhora rica no intuito de se livrar do alistamento”.
Com desgosto, passava cenas da mulher gemendo sozinha no campo e chorando pela perda de alguém que muito lhe cativara o coração.
“No fim do mês, juntou seus pertences e partiu dali”.
Cenas de um albergue estamparam na tela e continuamente, a mulher apareceu interpelando uma burguesa com jeito de viúva, que justamente procurava por uma cozinheira.
“Minutos depois, ela estava instalada na casa da burguesa. No começo, conviveu com uma espécie de estremecimento que lhe causava o estilo da casa e a lembrança de seu passado. No entanto, ela estava feliz e a suavidade do ambiente tinha dissolvido sua tristeza”.
Luiz congelou a imagem na televisão e refletiu sobre aquela historia.
“Era o próximo filme que íamos gravar, o que mudaram na historia para fazerem dele uma homenagem?” – indagou a si mesmo com curiosidade.
Luiz conhecia como era a historia daquele filme e não entendia o que tinha a ver consigo próprio. Retornando a assisti-lo, prestou atenção em todos os detalhes.
As ilustrações voltaram a mostrar a primeira cena da casa de campo donde a mulher terminava de comer tranqüilamente. A lua, em quarto crescente, iluminava uma parte do céu e uma neblina flutuava como um véu sobre as sinuosidades do rio. Alguns bois, deitados na relva, se levantaram sobre o pasto do cerrado. A mulher, murmurando uma espécie de lamento, acariciou o dorso do animal que se encontrava mais próximo. De repente, quando atravessava para o pasto seguinte, um mugido medonho soou. Era um touro que a neblina escondia, naquele momento avançando sobre a mulher.
“Ela procurou apertar o passo, mas ouvia por trás de si uma respiração forte que se aproximava cada vez mais perto. O animal sacudia os chifres, tremia de furor e mugia horrivelmente. Já perdida, a mulher tentava atravessar a cerca alta e recuar diante do touro, caindo muitas vezes enquanto fugia”.
O touro tinha encurralado ela contra uma cerca, sua baba jorrava no rosto dela, um segundo mais e ele a estriparia. Aos prantos a mulher agachou de medo. O grande animal virou-se de fasto e se retirou sem nenhum mal lhe cometer.
“Ela nunca encontrou explicação para o animal ter reagido daquele jeito e não tirava vantagem do fato de muitos acharem-na heróica e corajosa depois do ocorrido. Dias depois, a viúva informou que ia fazer uma longa viagem e ela deveria ir também. Seus pertencer partiram na véspera e no dia seguinte, ela buscou um cavalo com sela para mulher, munida de um encosto de veludo e um manto enrolado formando uma espécie de assento”.
A estrada era ruim e os cavalos enterravam até as quartelas na lama fazendo movimentos bruscos. O caminho era estreito e quando finalmente passaram por uma porteira, dois garotos apareceram e caminharam até a soleira da porta conduzindo os cavalos.
“A viúva havia ido visitar sua irmã que a vendo, prodigalizou demonstrações de alegria, servindo-as um almoço reforçado e no capricho”.
As terras das imagens gravadas tinham caráter de antiguidade. As vigotas do teto estavam corroídas, as paredes negras de fumaça, os ladrilhos sujos de poeira. Não havia nenhuma árvore nos pátios.
“A mulher sentiu-se melhor com a mudança de ares embora um sentimento incógnito e sem explicação lhe marcasse mais. Durante as tardes, caminhava pelos terrenos dos vales pisando descalça sobre o gramado de um bonito parque, chegando a um planalto onde alternavam as pastagens e plantações. No amontoado de espinheiros a beira do caminho, erguiam-se grandes arvores que faziam ziguezigue com seus galhos no ar”.
Ao lado, o mar aberto refletia o brilho do sol, liso como um espelho. Os pardais escondidos chilreavam completando a imagem daquela imensa abobada celeste recobrindo tudo. Quando a maré abaixava, deixava a mostra uma imensidão de conchas. As ondas, quebrando na areia, desenrolavam-se ao longo da praia que se estendia a perder de vista. Ao lado da terra, tinha como limite as dunas que terminavam sobre o penhasco da encosta. Nenhum ruído existia no vilarejo. As velas dos mastros permaneciam arriadas.
“No dia do retorno, ela ajudou a viúva a organizar as coisas fazendo varias recomendações ao cocheiro que colocava no baú alguns potes de doces e uma cesta com pêras e maças. Na mão, ela segurava um ramalhete de violetas. No ultimo momento, a viúva foi tomada por um grande choro e abraçando a irmã disse-lhe que não queria ter de partir, mas não podia ficar por mais tempo. Duas vezes por semana, a viúva recebia cartas de sua irmã em consolo da sua solidão constante”.
Luiz ajeitou o travesseiro em sua nuca e imaginou o que prosseguia naquelas cenas. A explicação logo se iniciou.
­­­“Essa mulher, nada tem de especial para nós, mas quem a representa sim. Essa historia não poderia ser simulada com tanta especialidade se aqui não tivéssemos os atores e atrizes. Isso serve para mostrar-nos que este filme conterá partes vazias, por realmente não termos conosco a honra de quem até então foi nosso grande companheiro cinematográfico. Nos filmes, podemos trocar personagens, mudar a historia, escolher os fatos, mas na vida real, nem tudo é tão simples assim. Na vida real, não existe troca de pessoas e neste filme também não. Dessa forma, o rumo da historia terá de ser outro. Darei nome a mulher de Perpétua, como já fora estabelecido. Perpetua estava programada pelos nossos scripts a reencontrar com aquele que um dia lhe pedira em casamento, mas já que nosso figurante não pode neste momento estar conosco para viver este personagem, Perpetua terá de ficar sozinha”.
Perpetua aparecia triste na tela e muito inquieta conversava com uma freira.
“Naquela manha, ela largara a casa da viúva donde trabalhava até então e foi para um convento. Durante muitas horas ficava debruçada sobre os mapas, pensando na imensidão do mundo e no quanto àquela malha de linhas coloridas lhe cansavam a vista, sem lhes mostrar as grandezas do mundo. Com o passar dos dias, Perpetua foi acometida de uma tosse acompanhada de febre continua e marcas na face que revelaram uma enfermidade profunda. Não mais ela poderia andar e passear sobre as folhas caídas das videiras donde tanto gostava de estar. O terraço do jardim somente poderia ser visto naquele momento pela janela próxima a seu leito. Todas as forças da vida, pulsante nas veias de seu corpo, dissipavam-se de si naquele instante. Não importa como a morte nos acomete, mas sim como a enfrentamos. Não existem maneiras de explicar a morte, assim como ninguém busca as causas de um nascimento. Da mesma maneira como se nasce, temos de morrer e não adianta buscar motivos de explicá-la. Ela é apenas uma conseqüência da nossa existência no mundo. A historia de Perpetua era para ser totalmente diferente de acordo com o que planejávamos, mas as tristes surpresas nos abalaram deixando-nos sem ter alternativa ou saída, uma vez que quisemos retratar o filme do mesmo modo como a vida nos retrata”.
Muitas velas estavam sendo acessas no recinto donde Perpetua estava. Do lado de fora os flocos de neve caiam vagarosamente. A noite estava por chegar e fazia muito frio.
“Perpetua permaneceu inerte no quarto durante muitos dias. O natal estava chegando e a tristeza reinava em todos os ambientes do convento. Diante da morte, era difícil para ela não pensar no próprio tumulo, talvez numa pequena coluna de mármore rosa com uma laje por baixo e correntes em volta circundando um pequeno jardim. Os canteiros aos poucos desapareceriam sob uma cobertura de flores. Ela pensava em quem ia ter o trabalho de regar as flores, renovar a areia e rezar para ela”.
Luiz nunca tinha pensado naqueles fatos e sentiu um calafrio ao imaginar a cena de alguém regando as flores do seu tumulo. Luiz não queria ter de pensar naquilo, pois achava que era um tipo de pensamento pessimista e negativo, mas pouco depois refletiu que aquilo não deveria lhe impressionar, pois, mais dia ou menos dia, era o que ia acontecer.
“É triste, mas a morte de uma pessoa pode nos ensinar muito a respeito da vida”.
A pastagem exalava o aroma do verão, o sol fazia brilhar o ribeirão enquanto um suor frio molhava as têmporas de Perpetua. Os membros da igreja próxima, cantores e crianças, enfileiraram-se nos três lados do pátio. O padre subiu lentamente os degraus e colocou sobre a renda os incensórios, balançando-os vigorosamente e fazendo-os deslizar pelas suas correntes.
“Retratamos aqui de algo que nada tem a ver com a vida de nosso amigo, mas mostramos que a morte é igual para todos, indiferente de quem somos e do que possuímos”.
Sentindo-se um pouco nauseado e com as vistas embaralhando-se, Luiz apertou o controle remoto e dando pause na fita, relaxou tirando um breve cochilo. Sem notar, Luiz começou a sonhar de modo muito real:
Mais uma vez sendo interrompido pela enfermeira, Luiz teve de acordar. Verificando as horas no relógio e imaginando que não acabara de vez a fita, ligou a televisão e verificou que a gravação já havia chegado ao fim.
___ Só isso? – questionou a si mesmo.
Pedindo a camareira que desejava fazer um telefonema, Luiz discou para seu diretor de produções cinematográficas e ao quarto toque iniciou o dialogo:
___ Adorei a fita, mas devo admitir que foram poucos minutos de gravação, nem ao menos entendi se Perpetua faleceu. É uma homenagem simples de mais – brincou Luiz num tom de sinceridade.
___ A história está incompleta. O resto ficará por sua conta.
___ Como assim?
___ Gravaremos aquilo que você quiser que aconteça com a personagem.
___ Pois venha aqui assim que puder, já sei o que acontecerá a personagem.
___ Tudo bem.
Após trocarem mais algumas palavras, Luiz desligou o telefone e voltou a dormir.
Dois dias depois, Luiz estava recebendo a fita com mais uma parte da gravação. Já impossibilitado de sentar-se na cama, verificou deitado se as cenas ficaram de seu agrado.
“Fazia pouco tempo que Perpetua recuperara de sua saúde, mas ainda se sentia fraca e debilitada”.
Na tela, aparecia uma tarde linda, o tempo perfeito para um passeio a uma jardinada gruta existente nas proximidades do convento. A chuva acabara de cessar e o frescor do clima pairava sobre o ar. Perpetua erguia-se majestosamente sobre uma cadeira.
“Ela estava de malas prontas, não queria mais viver naquele convento mesmo sabendo que sentiria muitas saudades de todas as irmãs que ali tivera. Teria partido antes do amanhecer do dia se não fosse pelo fato de estar chovendo. Perpetua adorava caminhar de madrugada. Em seus pensamentos, imaginava de procurar emprego numa mansão, daquelas com degraus de mármore até o mar, conforme via nos programas de televisão”.
Recebendo uma quantia razoavelmente grande das amigas do convento, Perpétua tomou o táxi que a levou na rodoviária.
“Ela não sabia o que ia ser de sua vida”.
As cenas mostraram Perpetua chegando a um hotel, sentando-se no restaurante localizado na parte direita da entrada. Ela não pensava em ninguém e nem se sentia apaixonada por ninguém. Depois de sua decepção amorosa, achava que jamais conseguiria se apaixonar. Na parte de eventos, o hotel mantinha-se festivo. Perpetua observou aquelas pessoas divertindo-se naquele ambiente alegre e descontraído, naquele momento ninguém possuía maiores preocupações.
“___ Senhorita Perpetua?”
“___ Eu mesma, liguei para perguntar sobre a casa aqui do lado”.
Perpetua aparecia na tela e conforme mostrava o dialogo, ela estava alugando uma casa pequena ao lado do hotel.
“___ Muitos dirão que estás fazendo grande bobagem, pois ninguém tem duvidas de que o lugar é mal assombrado. Sou o proprietário e confirmo que isso não é boato, é verdadeiro e é por esse fato que estou alugando por tal preço”.
“___ Tenho medo sim, mas é o quanto posso pagar, não disponho de mais dinheiro, veremos o que acontece” – dizia Perpetua.
“___ Eu mesmo não me dispus a morar aqui e nem ao menos consigo vender a casa. Me mudei daqui assim que minha esposa levou um susto imenso do qual nunca se recuperou completamente”.
“___ O que aconteceu?”
“___ Ela sentiu duas mãos de esqueleto nos seus ombros quando se vestia para o jantar. Sinto-me no dever de dizer-lhe que o fantasma foi presenciado por diversas pessoas da minha família, como meus três filhos e até o vigário da paróquia deste bairro. Depois do ocorrido com minha esposa, nenhuma das empregadas quis continuar conosco e ninguém mais conseguia dormir a noite por causa dos ruídos misteriosos que vinham do corredor e da biblioteca”.
“___ Pois aceitarei assim mesmo, é uma casa mobiliada e tem tudo o que preciso”.
“___ Não quis levar nenhum móvel, achei que se fizesse isso, o fantasma poderia ir também”.
“___ Bobeira. Ficarei com a casa e o fantasma também pelo preço combinado”.
“___ Negocio fechado. Apenas se lembre de que avisei”.
“___ Sem problemas”.
“___ Na verdade o fantasma não é feio, mas qualquer um a teme”.
“___ É fantasma de mulher?”
“___ A que sempre aparece é sim. Dizem que é uma celebre beldade de algum século passado. Ela possui olhos bonitos e perfil soberbo, tem magnífica constituição e extraordinária vitalidade. A quem diga que já viu com ela com um rapaz louro, bonito e alto. Eu nada confirmo. Boatos têm aos montes e muitos comentaram na época que ele era dançarino, ex-morador dessa casa. Não se preocupe se sentir cheiro forte de gardênia, é assim mesmo. Também tem um velho lorde que aparece junto de um pônei, nunca o vi, mas há quem garanta que tal figura já esteve por aqui. Geralmente meu filho mais velho via uma mulher vestida de seda preta, touca e avental branco, com cara de governanta. Na frente do avental tem um cavalo negro desenhado e ela sempre entra no quarto à noite pelo vitral da janela”.
Perpetua fez acordo assinando o contrato e esperando pela primeira noite no local. Não demorou muitas horas para que algo estranho que acontecesse. De repente, Perpetua deu com os olhos numa opaca mancha vermelha no assoalho, ao pé da lareira e, sem saber o que realmente significava, comentou consigo mesma que deveria ter deixado derramar algo naquele local, embora soubesse da impossibilidade do fato. Buscando um pano para limpar, notou que era uma horrível possa de sangue e tentou removê-la imediatamente. As cenas começavam a embalar a história num misto de suspense e tensão.
Enquanto Perpetua limpava de um lado, do outro frases de sangue iam se formando: “Fui assassinada neste mesmíssimo lugar pelo meu marido. Ele sobreviveu a mim durante dez anos nesta casa e depois desapareceu, repentinamente, em circunstancias misteriosas. Meu corpo nunca foi encontrado e nem eu mesma sei onde ele me enterrou, se é que teve esse trabalho. Meu espírito, ainda enraivecido assombra a casa e deseja vingança”. Em poucos minutos após Perpetua ler a frase, a mancha de sangue desapareceu sem deixar vestígios. Uma tempestade furiosamente aparecia na tela e durante o resto daquele dia, nada mais de extraordinário ocorreu. No dia seguinte, contudo, ao ir tomar o café da manha, Perpetua deparou de novo com a terrível mancha de sangue no assoalho. Nova mensagem se fez ler: “Fiz de tudo para salvar minha filha da ruína depois de minha morte. Certo dia, um senhor pintor se propôs a lhe pagar uma alta quantia em troca de pintá-la nua. Ela de inicio se revoltou, mas em busca de desejos obscuros, estando totalmente perturbada pelas suas imagens interiores, cedeu a proposta, mas não sabia que teria de ficar nua em publico, durante uma noite no cassino, perto das mesas de jogos. Depois disso ela foi morta pelo mordomo da casa que era apaixonado por ela”.
Num clima mais suave do que de terror, apareceu na tela à figura da mulher fantasma que por certo estava se comunicando pela poça de sangue. A mulher fantasma entregou-lhe então uma cruz. Perpetua como se reconhecesse aquele artigo, beijou a cruz, a fim de melhor guardar-lhe lembrança.
“___ Não pedi para que gravassem isso – comentou Luiz consigo mesmo”
Era uma cruz de jade verde. Na extremidade de cada braço da cruz havia uma barra de marfim. Na base, havia um ramo de lírio do campo. À esquerda das flores, um pente de marfim branco e uma lâmina também de marfim. Num instante, o pente foi se transformando numa caneca de cobre, cheia de ouro e preciosas pedras reluzentes. O ambiente começou a se transformar num imenso carvalho.
“___ Vá embora, olha o que está fazendo com a casa – gritou Perpetua”.
“___ Não é a casa, estou brincando com sua visão, não percebeu?”
“___ Vá embora daqui – repetiu Perpetua nervosa”.
“___ Ninguém pode mandar em mim e me tirar do lugar que me pertence”.
Na tela, apareceu uma vaca parada diante da porta de entrada da casa que retornara ao estado normal. Perpetua vendo o animal, já ia deixá-lo entrar quando percebeu que este estava preste a defecar. Perpetua se moveu com rapidez, mas não houve tempo de retirar o animal e de tal modo foi atingida no ombro por grande quantidade de fezes. No soalho, imensa quantidade de areia estava saindo por baixo das tábuas. Um filete de areia ia transformando-se numa gigante minhoca.
“___ Veja que sujeira, isso daqui não é selva e nem zoológico – reclamou Perpetua novamente”.
“___ Se não quer morrer, não reclame. Sabe o que fiz com o morador que esteve aqui anteriormente, alugando a casa como você?”
Perpetua ficou muda.
“___ Ele saiu de férias com a família, dirigia o carro por uma estrada a beira do lago, perto de um barranco, quando, de repente, tive a idéia de fazê-lo sair da estrada e cair no lago. Ele teve tempo de pisar no freio antes de rolar para a água, mas eu segurei o pé dele. Foi fatal, mesmo a criança do banco traseiro que mergulhou pulando do carro, morreu quando este caiu em cima dele”.
Perpetua estava estagnada e muito assustada.
“___ Você não me assusta, não acredito no que fala”.
“___ Está duvidando de mim? – questionou a fantasma com cinismo e má expressão.”
Portando de um revolver, ela mirou o rosto de Perpetua. Assustada, esta ficou muda e sem reação. O fantasma da mulher disparou para o alto saindo do revolver uma bala de ouro. Ao cair de volta no chão, a bala transformou-se em corça. Esta se transformou numa linda fênix, grande e dourada. Olhando nos olhos de Perpetua, o animal se transformou numa flecha que lhe acertou diretamente no peito.
Luiz acordou assustado e trêmulo. Respirando com mais calma, verificou que apenas sonhara, a televisão estava desligada e foi então que se lembrou de que realmente não tinha visto a fita até o final e nem a veria. Acometido de intensíssima dor em sua ultima crise hemorrágica, Luiz faleceu minutos depois.
Na fita, as frases finais marcariam não só Luiz, se ele as tivesse escutado, mas também a todos que iriam assisti-la posteriormente: “Elevai a sua mente de forma que se sinta num mundo maior, mesmo antes de se libertar do corpo. Se todos nós pudéssemos elevar nossos pensamentos ao alto, teríamos o necessário para a harmonia da vida. Viver, diante do fato da imortalidade da alma, é apenas ter uma chance na tentativa de se melhorar. Ninguém teme a morte, mas sim a si próprio”.
Decorrente ao momento de sua morte, não será escrita aqui mais nenhuma palavra. Fica na mente dos leitores imaginar o que se sucedeu, as noticias nos jornais, os comentários, os choros pesarosos e imensamente tristes dos amigos, parentes e familiares, assim como também a conclusão desta obra que com muito carinho e dedicação foi feita. Talvez o próximo, seja formado por relatos de Luiz e Analice através de psicografia. O que está por vir ninguém sabe uma vez que a vida é sempre misteriosa. Aguardem até o próximo relator que se dedicará escrevendo a própria vida.


Uberlândia, 20 de julho de 2004 / 20 de novembro de 2004

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