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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Capítulo 2 – Um novo relato

Carol aproveitava todos seus minutos de folga e prestigiava entretida a leitura daquelas difíceis escritas. A próxima letra não era tão legível como a outra e muito dos desenhos rabiscados estavam imperceptíveis de se decifrar. Os que ficaram impossíveis de se decodificar serão aqui transcritos com a forma simbólica do computador, apenas para demonstrar fielmente como foi tida a tradução.

“...Eu acordei junto a alguns ramos, praticamente atolado numa lama perto de uns galhos, uma mata esquisita. Levantei-me assustado e sem entender o que fazia ali. A primeira coisa que fiz foi procurar pelo meu casaco e fiquei aliviado ao perceber que estava exatamente do meu lado. Embrulhado nele, dentro de um saco e bem amarrado, tinha o grande livro escrito pelos meus antepassados. Quando recebi dos meus pais estes me disseram que tinha a missão de continuar preenchendo as folhar que restavam em branco do livro e quando um dia tivesse meus filhos, que prosseguisse repassando o material. Vejo que está na hora de executar minha tarefa”.
Carol se arrepiou toda ao ler aquilo. Tudo deixava bastante claro que o costume de escrever e repassar a historia aos filhos era não somente algo presente em sua vida, como pudera ter sido parte de um ritual provindo em uma família que vivera provavelmente antes mesmo da era cristã. Talvez desde o principio da descoberta da escrita. Para Carol aquilo era fantástico e impressionante. Ela só não sabia que por conta daquele livro poderia perder sua vida.
“Após acordar e percorrer pelo local totalmente estranho, saí da região provinda das águas e logo cheguei numa feira, algumas pessoas passavam com seus carrinhos cheios, outras atravessavam a rua correndo, haviam muitos homens barbudos e barrigudos, algumas senhoras liam seus jornais e do lado direito da rua havia uma imensidão de mobiletes estacionadas. Os bares não eram iluminados com luzes, apenas algumas velas acessas que jorrava fracos raios de luz. Observei alguns jovens com a cabeça coberta por uma espécie de gorro ou melhor especificando, uma tira de pano amarrada. Estava numa espécie de mundo novo, muito desconhecido para os meus olhos. Não sabia se já estivera ali antes, mas tinha a certa impressão de que não. As ruas eram estreitas e dos dois lados apenas casas conjugadas com alguns sobrados e prédios de até quatro andares por calçamento, todas no estilo de velhos casarões e antigas construções.
De todos os lados podia ver vendedores de rosas e muitos dos pedestres andavam com um papagaio no ombro. Era muito estranha a sensação de estar naquele local. As lojas estavam abertas, mas tinha medo de me aproximar. Quando olhei para o chão, verifiquei que ele era todo de mármore formando imensos desenhos geométricos. As pilastras próximas ao meio fio do passeio eram grossas e avermelhadas, como se fossem de alguma madeira especifica. Apesar do chão ser duro e consistente, tinha a impressão que ele era oco e por baixo algo me dizia que existia uma imensa mina de ouro. Não sei porque tais idéias e pensamentos passavam-se pela minha cabeça, tudo era muito estranho e confesso, um pouco medonho. Porém, não me causava estranheza estar ali, apenas um desconforto do qual me é difícil explicar. Estava pedido completamente.
...Mais adiante, verifiquei que o chão era de pedras, muito duras e resistentes, rrendo bem grandes para meus olhos, as fachadas eram belas e bem decoradas, todas de um estilo rústico que diferenciava o caminho do qual passara há poucos minutos atrás. Fiquei curioso de saber se aquele local estava se modificando conforme eu caminhava ou se era apenas a minha visão que estava se distorcendo a cada minuto. As escadas externas eram praticamente todas de madeira e esta de cor muito escura, se possível mais escuras do que a própria cor preta.
As janelas e portas de vidro tinham detalhes de ferro também preto, carla de facad, tudo muito perfeito para minha visão. Dos muitos senhores que passavam tranqüilos pela rua, alguns tinham o cabelo branco e olhos mais redondos que o comum, mas eram pessoas normais como eu, com todas as características de ser humano.
Olhei para uma das lojas, ali apenas parecia vender capas de chuva e outras de frio, todas da cor preta e marrom, longas e com capuz, pareciam típicas de um pais de muito frio ou então especificas para algum tipo de feitiço ou bruxaria. seria isto mesmo. Preferia não ter de pensar nisto. Entrei então em uma estação. A principio não sabia se era de nibus, metro ou o que poderia ser. Depois verifiquei o local em si, o teto todo de vidro, formava curvas emborcadas que me é difícil explicar detalhadamente, a estrutura era toda de ferro pelo que pude perceber e muitos passarinhos voavam ali dentro. Olhei para as plataformas como se procurasse por alguma delas.
Onde estava e para onde deveria ir, estava confuso e de nada sabia. Não demorou nem mais um segundo para que visse grandes comboios passando e inúmeros carregadores desembarcando algumas mercadorias. Todos tinham uma boina na cabeça, era um chapel achatado e de espécie dura, como que feitos de papelão encapado ou pintado. Vestiam com um jaleco azul muito impecável. Outras pessoas circulavam pelo local. Era incrível como haviam postes de ferro com números e códigos dos quais não sabia identificar. Via um diferente do outro por todos os cantos que passava e olhava, cada um mais detalhado do que o outro. O metal era todo talhado e formava figuras geométricas perfeitas.
Também nunca vira tantos pacotes daquela forma, todos embrulhados com o mesmo tipo de papel manchado de amarelo e cor magenta. Em cima todos possuíam o mesmo símbolo que não conseguia enchergar direito. A fumaça das locomotivas subiam enquanto elas tocavam um apito muito característico”.

Carol ficou intrigada, a segunda historia de vida escrita e que ela traduzia já não era tão antiga como imaginava. Curiosa continuou sua leitura. Na verdade não lhe interessava saber de que data se tratava aquele manuscrito, mas sim do que ele dizia.

“Olhei para mim mesmo e estranhei pelo fato de já estar seco, embora ainda totalmente sujo de barro. Eu usava gravata e uma espécie de beca. Continuei andando apressadamente até que sai do outro lado da estação ganhando o caminho da rua novamente. Ali os portais das lojas eram diferentes, todas redondas com detalhes ciprestes de ramos.
Nas travessas, não havia luminárias, candelabros ou qualquer tipo de luz, mas sim tochas acessas com fogo vivo e crepitante que além de iluminar bastante, ainda reluzia muito brilho. Dentro das lojas, apenas o brilho opaco de valas coloridas. Do lado esquerdo, havia uma espécie de escola, muito grande e com portões de correr, cheios de dobradiças e desenhos pintados de majestades e reis, damas e princesas, como as relatadas nos contos de fadas infantis, mas ali tinham todas as características de uma realidade para mim ainda desconhecida. Tive vontade de entrar numa loja de quadros. Pela vitrine observei-os e eram maravilhosos, como se fossem fotografias. Estava encantado e ao mesmo tempo aflito com tudo o que visualizava e sentia.
Não sabia se era noite ou dia e muito menos tinha conhecimento de como as horas passavam naquele lugar, na verdade sentia como se o tempo estivesse absolutamente parado. Os tijolos quadrados e enormes pareciam serem feitos de uma mistura de barro, argila e chumbo, tinham uma cor alaranjada e metálica.
Olhei para as mulheres que passavam e pude notar que todas se vestiam com o mesmo traje, inclusive devo destacar que os demais homens possuíam as gravatas de cor vermelhas com listras douradas. Também havia pessoas de cor negra e pelo meu conhecimento, não existia ali apenas uma raça humana. Continuei andando, na loja seguinte pude verificar que vendiam pianos e ampulhetas, cada instrumento mais lindo do que o outro. Livrarias também existiam aos montes e junto a elas, varias lojas com pedras preciosas, colares delicados de brilhantes e uma incrível variedade de jóias.
Na loja seguinte, observei os grandes tabuleiros de jogos de dama e de xadrez, também tinha cardez cada um mais incrível do que o outro. A cada loja que passava, ficava mais encantado e surpreso, que lugar poderia ser aquele? Não tinha lembranças de nada e absolutamente nada vinha em minha mente naquele momento.
Continuei andando e pouco depois passei por um portal tão diferente que nem sei como caracterizá-lo. Ao passar por ele, notei que pisava numa espécie de grama ou relvado, muito verde e bem formado. Não era um campo, mas podia ser comparado a um diferente jardim. Pensei que estivesse ficando maluco. O que estava se passando comigo? Em cada parte daquele gramado, notava as imensas estatuas cobertas de teia de aranha, sujas e empoeiradas. Próximos a cada estátua havia uma arca toda detalhada com desenhos bordados num fio prateado. Fiquei curioso para saber o que deveria ter dentro de cada uma daquelas arcas, mas não tinha coragem de mexer nelas. Estava bastante impressionado com aquele lugar que se modificava a cada passo que eu dava.
Em todos os tempos debruçou-se o homem sobre o seu próprio passado com fervor idêntico ao de uma vidente qualquer que procura ler o futuro em suas cartas ou bolas de cristal”.

Carol meditou sobre aquela ultima frase e encontrou-se nela naquele exato momento. Sabia ela que, durante muito tempo, antes de ser uma ciência, a historia de pesquisar e desvendar mistérios ocultos fora tradição tão forte que muitos a chamavam de mito. A historia recebeu de inicio a marca do racionalismo mais restritivo, para depois, formar-se a mitologia e todo o conjunto das tradições e das lendas. Também surgiram daí inúmeros dogmas.

“Voltei a olhar para as estatuas. todas estavam reluzentes. Eram estranhas estruturas arqueológicas que pareciam se tratar de uma gigantesca muralha... Decidi perguntar que local era aquele a uma senhora que passava naquele instante do meu lado. Ela me explicou que se tratava de uma pequena ilha do arquipélago Baamas, situada cerca de cento e oitenta e dois quilômetros ao largo de florida. Escutava ali uma língua tipicamente parecida com o Castellano. Quis saber mais sobre o local e fui então informado de que o nome mais comum daquele local era “Fonte da Juventude” ou “Fonte da vida”, com origem semita. Ela explicou-me que as águas dali eram raras, mas todas se compunham de uma conferida imortalidade, água que só poderia jorrar de uma fonte localizada no paraíso, ou que deveria ser colhida num rio que a atravessasse. Não estava entendendo absolutamente nada e nem sabia o porque estava ali, mas não queria me desesperar por conta disso. Quem quer que seja que possa ler isto um dia, saiba que eu não estou mentindo ou inventando sobre este lugar, ele existe mesmo. Não sei como aqui vim parar, o que me aconteceu, mas garanto que não fiquei louco.
Eu estava a caminho de uma expedição quando, nada mais me lembro, apenas que aqui vim parar, neste mundo desconhecido e, entretanto, não me deixa de ser fabuloso e complexo de descrever. Não estou apenas escrevendo um tipo de mito indiano associado a simbolismos. Foi a partir do momento que escutei tal revelao, que me houve um longo esforço visando o encontro da chave deste duplo mistério, onde eu estava e porque?
Creio que fui vitima de um naufrágio e não sei como, agora me vejo aqui, prisioneiro deste lugar desconhecido. É como se eu pudesse ter recordações de minhas caravelas. cislumbri. Sei que sou apaixonado pela arqueologia e já fui considerado um dos pioneiros da fotografia submarina, mas não tenho maiores conhecimentos a respeito de mim mesmo. Ver essas estátuas me faz lembrar de um muro que visualizai em algum momento do meu passado. Ele dava a impressão de um edifício retangular de cerca de quarenta metros, feitos em pedras cuidadosamente alinhadas a cordel.
Quis saber mais sobre aquelas estatuas e a única explicação que consegui foi ficar sabendo que elas eram feitas com pedras vulcânicas. Questionei sobre muros, sabia que minha lembrança não era à toa. De fato, descobri que aquela ilha estava sobre um enorme muro. Este fora construído a seco sobre um platô, então depois de não sei quantos anos, foi invadido pelas águas oceânicas em maré crescente. Aquelas estátuas tinham uma semelhança com as breves lembranças que vagueavam rapidamente como relances em minha mente. Tais estátuas estavam livres da vida marinha, eram feitas com pedras de ângulos retos e juntas de cimento.
No horizonte mais alem, quase já não alcançado pela minha visão, pude contemplar pirâmides de pedregulho, recobertas de lava de uma erupção vulcânica que provavelmente não existia mais. Visualizei as curiosas inscrições parietais. Onde quer que eu esteja, esse é um mundo muito desconhecido para mim e assim o seria para muitos outros.
Sim, estou me lembrando, passávamos eu e minha tripulação de mais quatorze homens, pelo litoral de uma ilha cercada de um vasto golfo interior que se abria para o Leste, num verdadeiro paraíso de águas cálidas onde imperava a mais fantástica vegetação tropical. Verificava um estudo muito detalhista sobre os gelos polares ao se derreterem. Aqui existem inúmeras ruínas submersas e sei disto. Talvez dentre alguns séculos esta ilha deixe de existir, inclusive creio pela experiência que tenho, de que seja realmente isto o que ocorrerá. Gostaria de saber quem foram os construtores de tais estruturas submersas, contemporâneas das pinturas mais antigas, de uma época em que o continente ainda não havia sido inteiramente povoado.
Qual é a historia real deste verdadeiro lugar? Acho que estou aqui para descobrir, mas primeiro quero saber como vim parar neste local. Lembro da expedição que fazia e tudo me leva a crer que sofri algum tipo de acidente do qual fui resgatado pelas habitantes locais. Minha vida normal era de perto do mar mediterrâneo. Meu país de origem tinha um povo variado. Continente vasto, cada povo com sua cultura”.

“Seria a África?” – pensou Carol sem muita idéia.

“Morava próximo das cadeias de montanhas, gostava muito daquela vista esplendorosa. Aqui parece não ter lagos, rios e pântanos como lá. Talvez exista, mas ainda não vi nada. Acredito mais na possibilidade de encontrar um deserto. Agora me ponho a questionar, quando poderei retornar para minha terra, meu continente rico e fértil. Encontro-me realmente perdido aqui. Lá tinha as florestas tropicais, as savanas, campos abertos cobertos por gramíneas, ficavam mais no sul e leste, áreas pontilhadas por capões de mato e árvores altas. Lá viviam os herbívoros e carnívoros como o leão. Sorte minha que nunca estive diante de um animal destes. O abutre também vivia presente nessa área. Acho ser um bicho triste de feio, alimenta-se de carniça e sua cabeça junto do pescoço não possuem pelagem. Recordo de uma ave chamada de serpentário, a caçadora de cobras. Havia muitas girafas, hienas, suricatas, pangolim, tigres e hipopótamos. Sei que vivia perto da costa. Tenho lembrança de aldeias, mas não me recordo de nada alem disto, nem de minha própria vida”.
“O que conheço sobre a África faz sentido com a localidade descrita, mas não devo presumir nada por enquanto. Sei que a África é limitada à oeste pelo oceano Atlântico, a leste pelo Indico e ao norte pelo mar mediterrâneo. Seria esta pessoa habitante próxima deste ultimo lado? Descarto a idéia de que tal sujeito fosse um tuaregue, vindo do povo nômade que vivia no deserto do Saara. Também não creio que tenha sido um Achanti. Pode ter sido um masai, pastor do gado nas savanas, ou um pigmeu, quem sabe até mesmo um bosquímano. Não, nem faço idéia sobre quem foi esse sujeito. É melhor continuar a leitura ao invés de ficar tentando adivinhar coisas que nem tenho base de conhecimentos suficientes para tal” – concluía Carol.

“Da região donde vim, existia um grande rio cheio de crocodilos, podia se ver livremente manadas de anus, avestruzes, elefantes, zebras e antílopes. Diziam que existiam até mesmo macacos antropóides como o gorila. Agora me basta saber realmente tudo sobre esse magnífico local ainda desconhecido pelos habitantes do continente que há meses deixei para trás”.

Carol parou a leitura para tentar entendê-la. Quem quer que haja escrito aquele livro, tinha feito uma embarcação em sua caravela, com uma tripulação de outros quatorze homens, buscando não apenas aventura, mas a tentativa de desvendar um reino desconhecido e submerso. Aquela ilha era a ponta de uma montanha que conforme relatado, fazia parte de alguma localidade que ficara invadida pelas águas após o derretimento de algumas geleiras. Conforme descrito, aquela ilha não existia mais segundo os conhecimentos de Carol, pelo menos não com os detalhes relatados. Porém, continuaria ela existindo em algum local nas profundezas do oceano? E a pergunta mais curiosa, como aquele livro fora parar no local donde Carol planejava a reforma arquitetônica? Sem meios de responder suas próprias indagações, ela continuou a difícil e complicada tradução.

“A arte é uma imaginação totalmente reconstituída. Sendo um meio de expressão, a arte é também uma confissão. Algumas das esculturas que vejo são representativas de animais há muito desaparecidos como o gliptodonte. Todos dizem por aqui que essas esculturas são para lembrar os deuses antigos. Também me fazem lembrar de construções sagradas. Mas só não entendo o porque que esta ilha tem tanta ligação com o Egito se tão distante dele ela está. Talvez cultivem aqui também os antigos rituais de sacrifícios humanos. Foram muitos os que se dedicaram trabalhando em rochedos a fim de exprimir suas obras e concepções de ordem religiosa.
Segundo meus conhecimentos sobre as relações entre o homem primitivo e as forças naturais, suponho que essas esculturas e todos os demais trabalhos que aqui visualizei, tenham tido objetivos rituais. É assim que tento entender a construção do que se trata um gigantesco porto hoje submerso e também desta área ainda intacta e conservada bem seca.
Devo relatar um pouco mais a meu respeito, não que eu precise disto, mas sei que algum dia, alguém haverá de ler isto e será bom que saiba quem sou. Meu nome realmente não faz a menor diferença e não tem nenhuma importância. Chamarei-me pelo nome de Aldo. Gosto deste nome mais do que o meu próprio, pois ele lembra-me de Roald Amundsen, um explorador norueguês que foi o herói de uma das aventuras mais difíceis, a de ser o primeiro humano a pisar no Pólo Sul. Antes de Roald, varias pessoas tentaram chegar lá e não conseguiram, portanto, esta é a explicação para o nome que acabo de me dar.
É incrível, não consigo me lembrar do dia de ontem, mas tenho em minha mente o conhecimento total de toda a minha infância e do meu passado que há muitos anos ficou para trás. Nasci no dia ow de agosto de ipke”.

Carol tentara traduzir os números de todas as maneiras, mas verificara verdadeira dificuldade e impossibilidade de decifrar tal data. Por mais que soubesse que a leitura ficaria incompleta sem aquela data, nada podia fazer. Bastante incomodada tentou não se preocupar e prosseguir a leitura, esperançosa de que houvesse mais datas pela frente e que conseguisse descobrir pelo menos uma delas, talvez a mais importante de todas, aquela que especificasse em qual ano aquele manuscrito fora feito.
“Minha formação não teve praticamente objetivo nenhum, muito menos o de ser explorador do mundo. Confesso que de todo e qualquer modo, essa sempre foi a minha vontade e é por isso que hoje devo estar aqui neste mundo desconhecido para mim, essa ilha perdida, se é que assim posso chamá-la. Sei, como já relatei, que estava investigando sobre as profundezas do oceano e não devo acrescentar mais nada, já que isso pode me comprometer.
Certa feita alguém me disse que eu deveria ser um missionário, mas nunca encontrei maneiras para ser um, embora também ainda guarde comigo essa palavra como símbolo de um sonho que carrego em meu peito. Meu pai nunca foi religioso, desde criança abandonou e rejeitou a rígida fé de meus avôs e de tal forma sempre foi ateu. Minha mãe era uma mulher emocionalmente muito forte, buscava esquecer suas infelicidades através das orações. Sempre me chamava para rezar com ela e nunca me esquecerei disto. Ela era uma pessoa que sabia lidar com a realidade, mesmo vivendo por horas num mundo de sonho, acreditando que algum dia poderia se tornar uma cantora famosa. Tudo era tranqüilo até o dia em que meu pai perdeu o emprego e começou a viver nos bares, bebendo até cair nas ruas e dormir debaixo da chuva. Depois disso, minha infância foi um inferno, tinha medo da embriagues dele e chorava muito quando ele chamava minha mãe de nomes dos quais nem irei citar.
Mesmo atormentado pelo terror de conviver com meu pai, ainda amava meus familiares e tinha muita pena de tamanha situação. Era um garoto miúdo e franzino, mas todos na escola diziam que eu tinha um grande coração. Modéstia minha, nunca achei que isso fosse verdade. Escreverei aqui alguma das coisas que sempre gostei em mim e que considero verdadeiras qualidades: sou capaz de manter a minha calma, mesmo quando todo o mundo ao meu redor já a perdeu. Isso antes me espantava, achava que eu fosse insensível ao nervosismo dos outros, mas hoje deixei de pensar assim e tenho certeza de que minha calma muito me foi benéfica. Sempre acreditei em mim mesmo, mesmo quando todos duvidavam da minha capacidade de conseguir as coisas. Posso não ter conseguido muito, mas deixo claro que tenho a eternidade toda para lutar e conseguir, basta para tal o fator principal de não desistir e acreditar em mim mesmo, saber que sou capaz, pois sou filho de Deus. Todas as vezes que nisso penso, deixo as lágrimas escorrerem dos meus olhos e não consigo explicar porque tanta comoção.
Sempre fui capaz de esperar sem me desesperar, de dizer a verdade, mesmo ao ser enganado, de me esquivar do sentimento de raiva, mesmo sendo odiado e principalmente, não parecer bom demais e nem pretensioso. Minha bondade estava em querer edificar o coração humano rumo ao amor. Pensava nisso, mas nunca fiz dos sonhos meus senhores. Ficava muito tempo, é verdade, pensando nos desejos mais íntimos enquanto caminhava pelo campo até alcançar uma colina solitária. Sempre fui de arriscar, mesmo que para tal tivesse de perder, sem nada poder reclamar e resignado, ter de começar tudo outra vez, retomar do ponto de partida.
Durante a noite, junto à luz de lamparina de querosene do meu quartinho, escrevia meus relatos como este que aqui estou fazendo, era neles que colocava minha alma. Queria eu ter a capacidade de viver dentre os reis e não perder jamais a minha simplicidade. Queria eu ter alguma utilidade para o mundo e não apenas existir, mas viver. Queria eu preencher o vazio de minha vida, o qual nunca ninguém se preocupara.
Cresci tendo o amor de minha mãe, mas sentia entre nos uma barreira, uma muralha. Por mais que nos relacionássemos bem, com o passar dos anos, conforme fui crescendo, verificava que nossas diferenças eram tamanhas que chegavam a ser medonha. Em nada me parecia com meus pais que não fosse em aparência física. Gostava deles o bastante para dizer que os amava, mas ao mesmo tempo, não tinha por eles o real sentimento que um filho deve ter por seus genitores.
Como o caminho para a escola era longo e demorado, caminhava sempre desalentadamente através dos campos, saltando com agilidade nos pés e cantando como os pássaros, invocando o poder dos raios de sol para a proteção do dia. Quando via alguns de meus amigos se despedirem do pai com um abraço do qual nunca tivera coragem de dar no meu, tentava acalentar meus sentimentos e me fazer forte para não chorar. Fui sempre um homem carente e para não sentir minhas tristezas de solidão, gastava horas de um dia inteiro encurvado sobre a longa mesa de leitura da biblioteca da escola. Naquele lugar que tanto tenho saudades, encontrei biografias de grandes heróis guerreiros, homens que haviam superado reveses impossíveis e que como eu, faziam da escrita e da leitura, um meio de sobreviver aos negativismos do dia-a-dia.
Comecei a sonhar com um grande futuro para mim mesmo e encarar a realidade como um lutador. De todos os males, sarcasticamente os transformava em estímulos para prosseguir a diante. Nunca temi nada e sempre aceitei qualquer desafio. É por isso mais uma vez que devo estar perdido onde hoje aqui me encontro.
Foi dessa maneira que passei pela minha atormentada infância. Meu primeiro negócio foi montar uma padaria que foi a falência pouco depois. Também, nem tinha estudos para abrir qualquer bugiganga que fosse. Parei de estudar muito cedo para ajudar a sustentar a família quando minha mãe ficou grávida e também teve de deixar seu emprego de lavadeira, que já era temporário. Também, eu não gostava mesmo daquela coisa de ficar horas junto a fornos quentíssimos que me privavam de minhas leituras. Trabalhar pensando em folga não dá para mim. Durante todos os anos que trabalhei tentando desvendar o desconhecido do mundo, jamais pensei em folga ou descanso, pois quanto mais trabalhava, mais me realizava e sentia feliz, mesmo sem me importar com o ganho quase nulo dessa profissão.
Meu pai sendo ateu sempre me proibiu de citar o nome de Deus dentro de casa e sempre que ia rezar com minha mãe era às escondidas dele. Também não podia ter contato com assuntos dessa natureza, mas bastava ele estar longe para eu desobedecer. Sentia aquilo como mais um desafio, um teste qualquer. Sabia que nenhuma das minhas realizações pessoais ou materiais teria significado se não me encontrasse com Deus verdadeiramente. Meu coração pulsava violentamente quando sentia que eu era o encarregado de mostrar a meu pai o quanto ele estava enganado em não acreditar nas forças divinas. De súbito, ocorreu-me uma nova idéia sobre o sentido de minha vida que praticamente me tirou o fôlego. O segredo de tudo era a fé e eu a tinha comigo. Precisava descobrir de alguma forma como poderia utilizar essa pequenina palavra. Foi então que procurei um pregador e de tal momento, entreguei minha vida nas mãos do Pai maior fazendo-me dele um servo numa seara em prol do bem. Era o que queria, era o meu desafio de uma vida inteira. Sabia que não ia ser fácil e não foi mesmo.
Daquele dia em seguida, uma doce e pura alegria preencheu todo o meu ser. Eu não era mais o ser solitário de sempre, eu estava guiado pelos anjos e mentores que sabia eu estar acompanhado. Eu sentia isso e convertia as minhas lágrimas em oração. A principio meu pai me tratou com ironia. Chamou-me de fraco dizendo que estava depositando minhas forças num ser que não existia. Insisti tanto no que acreditava que ele me desconsiderou a ponto de dizer que não mais era seu filho. Continuei com meus apelos incessantes com calma resignação, tentando apostar com ele e mostrar que dentro de um mês, muita coisa mudaria em nossas vidas caso ele estivesse disposto a me escutar e acreditar no que falava. Ele passou a concordar com tudo, mas eu via claramente que ele pouco compreendia os ensinamentos que queria lhe passar.
Eu continuava passando boa parte do meu tempo em oração. Muitas vezes era encontrado de joelhos, adormecido ao lado da cama, mesmo quando a temperatura estava quase zero. Minha mãe tentava fazer com que eu desistisse daquela idéia, principalmente quando meu pai descontrolado me batia e deixava-me de castigo, dizendo que estava me tornando obcecado por tais princípios religiosos.
Com o tempo, cativei o sentimento de meus irmãos até que eles partilhassem a mesma fé da qual eu tinha comigo. Meu pai permanecia rígido e ateu. Da mesma forma como antes, devorava livros com poemas e historias, mas também passei a me interessar vivamente pelas leituras apostólicas e religiosas. Minha mãe também gostava das escritas sagradas e creio que herdei dela o fato de mesmo sendo odiado, nunca dei lugar ao ódio em meu coração. Chorava por não conseguir mostrar ao meu pai o que tanto ele precisava enxergar, mas como minha mãe dizia, eu não sou perfeito para conseguir tudo no mundo. Cristo Jesus foi o único homem na historia da humanidade a realizar tudo com perfeição e sempre o tive como um modelo a ser seguido. Eu não estava conseguindo converter o coração duro e incrédulo do meu pai, mas não deixava de ter fé e algo no meu intimo dizia que de algum modo, eu estava no caminho certo.
Agora eu estou aqui e sinto que não estou aqui à toa, apenas por estar. Na verdade nem sei o que estou sentindo, mas talvez tenha chegado o momento que tanto pedi a Deus. Lembro como se fosse hoje quando entre prantos e soluços, fui capaz de me humilhar e mesmo sobre uma surra, fazer meu pai entender e refletir sobre a existência de Deus. Sei que ele nunca passou a ser devoto, mas fiz com que ele respeitasse a religiosidade que nós outros tínhamos.
Vou a busca de um lugar para dormir antes que anoiteça, não sei o que está por vir, mas meus pressentimentos nunca me deixaram na mão. Algo está para acontecer, só não sei o que é.
Andei até verificar que aquele local era dividido por tribos e que cada região tinha seus costumes próprios e totalmente diferentes. Já cansado, observei um campo a minha frente, sem nenhuma plantação verde, apenas ramos secos e amarelados do forte sol, apenas a areia fina como se fosse um deserto, vermelhada e muito seca. Próxima a minha visão, um homem conversava com sua filha enquanto colocava uma dinamite num buraco. “Pai, mas precisamos lutar para defendermos aquilo que acreditamos, ou nada vai mudar” dizia ela. “As pessoas precisam sentar e conversar, ou nada vai mudar” respondeu o pai deixando a filha pensativa. Olhei para a jovem mulher, era diferente, tinha o rosto avermelhado do sol e as bochechas sobressaiam-se de tanta beleza.
Aquele local me pareceu muito chato e seco, era como uma espécie de sertão. Porem estava fascinado por constatar a presença de tamanha diferença de clima e cultura em tão pouco curto chão. Não tinha certeza da dimensão daquela ilha, mas tinha a certeza de que não deveria ser muito grande. Verifiquei que muitos utilizavam uma linguagem diferente e desconhecida. Mesmo perdido, sabia que aquele lugar tinha a sua fama e pelos meus conhecimentos geográficos, aquela parte seca e árida ficava no centro do território da ilha. Os moradores dali faziam suas plantações, cuidavam dos animais e se defendiam sem nenhum tipo de armamento que não fosse rifle e flechas. Encantei-me com a grande quantidade de girafas que corriam soltas pelo campo, na plena liberdade da natureza.
Naquela região, ninguém conhecia o que significava um aparelho como telefone ou radio. A maioria das pessoas do povoado eram negras, mas existiam dentre eles alguns brancos, minoria. Logo no primeiro dia, fui salvo pela jovem. Andava distraído pelo campo deserto de areia quando ultrapassei sem perceber um aviso de perigo e entrei numa zona proibida, cheia de dinamites. Foi ela quem correu e pulou sobre mim me derrubando no chão. Estava tão distraído que nem se quer escutei-os gritando para que me afastasse. Se não fosse por ela, teria ido pelos ares naquele momento mesmo. Também vale dizer que estava bem cansado e quando assim estou me desligo por completo da realidade do que se passa ao meu redor. Depois do incidente, ela me convidou para lanchar na cabana deles. Era uma casa simples, feita de madeira rústica e paus tortos do mato mesmo. Seu pai me ofereceu hospedagem assim que lhe contei sobre o que se passara comigo.
Ela era uma jovem esbelta, mesmo com sua total simplicidade, com vestidos sujos e amarrotados. Não tinha os cabelos nem curtos e nem compridos, num tom castanho claro próximo a um louro dourado, principalmente quando estava sobre o sol escaldante. O que mais gostava nela era o sorriso com uma covinha em cada lado do rosto, não me cansava de olhar para elas e sorrir também. Seus dentes eram alinhados perfeitamente dentro da boca, como se houvessem sido montados e encaixados por um escultor, um por um.
Iniciamos nossa conversa falando sobre aquele local, na verdade estava enganado, a ilha não era tão pequena quanto pensava, principalmente sobre o efeito das dunas de areia.
Na tarde do dia seguinte, depois de lancharmos juntos, ela me deu uma bússola pequenina da qual gostei muito e foi com gratidão que lhe disse que guardaria sempre comigo aquele presente. Durante a noite, ela fez questão de que me juntasse ao pessoal do povoado, numa espécie de ritual donde dançavam, cantavam e tocavam alguns instrumentos em volta de uma fogueira. Todo o pessoal era muito gentil e amável, embora não compreendesse nada da língua deles ou dos costumes locais. Naquela noite observei-a com mais cautela e percebi como ela dançava bem aquela estranha mistura de pulos soltos e ao mesmo tempo seguindo um ritmo próprio. Ela era extremamente valente e tinha um jeitinho meigo inexplicável.
Depois de terminado o ritual, que na verdade era um encontro de divertimento entre eles, ela veio se sentar perto de mim e me ofereceu uma bebida que só gostei depois do terceiro gole, quando parei de tossir com a primeira impressão do amargor descendo pela garganta. Não entendia como conseguiam beber aquele liquido que a principio me pareceu um veneno. Senti-me obrigado a beber até o final para não descontentá-la e fiquei ainda mais sem jeito de recusar quando ela tornou a encher o copo. Creio que de tanto beber aquele liquido amargo e estranho, acabei me acostumando com o gosto e saboreando a bebida de uma forma diferente que me fez apreciá-la, mesmo ainda achando o sabor não tão agradável.
Ela, seu pai e alguns outros brancos falavam a mesma língua que eu, mas no meu intimo estava contando os minutos para aprender aquela nova linguagem tão rápida e expressiva. Passei muito tempo conversando com ela, contei-lhe um pouco sobre minha vida. Relatei-lhe que quando mais jovem, fui para uma escola de oficiais. Sentia-me impaciente para entrar em ação e era com presteza que estudava as normas do exercito. Fiz uma petição para que me enviassem para a divisão mais próxima. Para minha satisfação, meu pedido foi imediatamente deferido. Durante os primeiros dias daquela nova experiência, vi-me convivendo com um tipo de soldados completamente diferente, uma corporação especializada com o nome de homens suicidas, daqueles durões, dispostos a tudo, inclusive a própria morte. Muitos eram amargos contra a própria vida, parecia amar a violência e o perigo, gostavam de viver em risco. Ela arregalava os olhos surpresa com cada palavra do que relatava. Revelei a ela que minha permanência dentre aqueles homens não muito durou pela minha religiosidade. Era uma confusão de sentimentos dentro de mim que não conseguia ficar em paz, principalmente quando tinha de guerrear. Durante o tempo que estive dentre eles, nunca deixei de fazer minhas orações e dar o meu exemplo de fé. Sempre que algum deles me via tão concentrado, simplesmente se deixava fazer parte do silencio reinante. Via nos rostos dos soldados um espanto natural que se espalhava por todos os cantos do imenso pavilhão, eles desconheciam qualquer assunto que fosse reverente a Deus. Senti que ali talvez pudesse estar minha nova missão. Continuei a orar e não poderia deixar de fazê-lo, se quisesse permanecer fiel a Deus e a mim mesmo.
Tudo o que mais conversamos naquele final de tarde e principio de noite foi baseado nos meus relatos do passado. Quando fomos dormir estava tão exausto que nem senti quando adormeci.
Durante as noites, mesmo com todo o sono que tinha, praticamente não dormi nada com os mosquitos e pernilongos que me ferroavam insistentemente. Cobrir com o calor que fazia era impossível. Fiquei morto de raiva e nunca desejei tanto a minha cama, da qual lembrava tão carinhosamente. Contudo, estava agradecido, por ter o conforto daquela cama macia e bem estendida. Tudo era muito simples e não me importava saber que o colchão era feito de uma palha da qual nem sei especificar.
Acordei ainda cansado antes do completo amanhecer do dia seguinte. Bocejando de uma ressaca, olhei para os picos contemplando aquela vista inédita que me cercava por todos os lados. Espreguicei-me com vontade estralando todo o corpo. Em minha cabeça imaginava como conseguiria aprender a gramática daquela mistura de sons guturais e confusos. Aquela seria uma tarefa totalmente confusa, mas ao mesmo tempo super envolvente, pelo menos para mim. Eu queria aprendê-la e estava entusiasmando para tal. Imaginava que aquela língua houvesse sido criada por eles de uma forma suficientemente desenvolvida a fins de expressar conceitos espirituais. Para aprendê-la com mais rapidez e facilidade, teria de exigir de mim mesmo uma mente aguçada e versátil.
O dia amanheceu e foi com o ar matinal que enchi o meu peito daquele ar rarefeito da montanha. Como não tinha costume, por vezes sentia-me tonto, ofegante, pesado e até mesmo fraco como se fosse desmaiar.
Devo deixar muito claro que aquela ilha era muito maior do que a principio imaginava. As montanhas e picos se perdiam numa infinita vista pelo horizonte.
Para dizer um pouco sobre meus sentimentos amorosos, vou revelar que a jovem que relatei anteriormente, minha primeira amiga que inclusive me salvou, foi meu primeiro e maior amor da vida. Ela era delicada e bela, embora sua beleza tenha aumentado junto das pitadas de paixão que foi surgindo do nosso convívio diário. Conforme os dias passavam, me envolvia com os costumes daquele povo que se tratava de forma tão generosa, humilde e simples, mesmo sendo brutais nos seus mecanismos de defesa. Era uma população bastante atrasada, sem tecnologia, mas viviam assim pelo costume arraigado de seus antepassados. Viviam da maneira como gostavam e achavam ser o certo e o melhor. Adaptei-me incrivelmente a realidade deles e foi rápida a minha mudança de temperamento junto aquele povo. Quanto a jovem, logo de inicio percebi que havia uma afinidade profunda entre o espírito dela e o meu. O primeiro contato que se transformara em amizade, foi se solidificando em amor. Tínhamos praticamente quase a mesma idade.
Irei explicar um pouco melhor o que se deu entre a gente. Em primeira instancia, pensei que ela fosse uma garota chata e antipática. Tive verdadeira aversão pelo jeito dela conversar e fazer as coisas. Creio que estava enraivado comigo mesmo por sentir o que não queria estar sentindo por ela. Não queria me apaixonar por uma moça da qual tinha tão má impressão. Mas não sabia como mandar nos meus sentimentos e no meu coração. Devo contar que nos primeiros dias, depois do qual conversamos civilmente ao redor da fogueira, todas as palavras que dizíamos um ao outro eram rudes, gritadas e geralmente com xingamentos. Ela me confessou que não sabia porque eu a tratava daquele modo, com tamanha grosseria. Foi difícil explicar a ela o que relatei acima. Não esperava e nem queria me apaixonar por alguém daquele lugar. Tinha mil coisas na minha cabeça e sentir aquela atração me enfurecia e descontava tudo sobre ela como se a detestasse. É difícil de explicar e vai até mesmo parecer uma controvérsia, mas foi o que aconteceu.
Certa tarde, falamos coisas muito fortes um para o outro e nos magoamos mutuamente sem nenhuma razão. A verdade é que estávamos muito apaixonados um pelo outro e não queríamos aceitar aquilo de forma alguma. Ela também me confessou que se sentia culpada por se apaixonar por alguém que não fosse da tribo deles, embora eu já fosse praticamente um pertencente.
Durante a noite, após a pior briga que havíamos tido, tristes um com o outro pelas agressões de palavras, ela foi me procurar entre soluções e suportei o peso daquele momento, comovido e emocionado, pedindo-lhe perdão amargamente arrependido. Não sabia o que estava se passando entre nós para não aceitarmos aquele amor devastador. Naquela noite dormimos juntos e nos entregamos a uma loucura de sexo ardente. Foram momentos dos quais não senti absolutamente nada, apenas a estase do prazer carnal. Estava envolvido completamente por uma fantasia e por vezes pensava que aquilo fosse uma fabula.
Daquela sublime noite em diante, tudo mudou entre nós. Passamos a viver um pelo outro, a nós tratarmos com o amor que nos envolvia. Nem eu e nem ela conseguia explicar ou entender e que estava ocorrendo entre nós, sentimos uma vibração tão forte que a entendia sem precisar de palavras. Alem do carisma e do carinho que nos envolvia, éramos rodeados por uma atração tão irresistível que levávamos choque ao nos encostarmos. Lembro-me que seus olhos me causavam arrepios e às vezes tinha medo de que estivesse me vendo preso a um feitiço amoroso. Se realmente houve, não reclamo, foi tudo maravilhoso por demais. Enquanto eu era o melhor homem do mundo para ela, ela também era uma deusa para mim.
Nossos desejos não acabaram com o tempo, anos depois de estarmos juntos, ainda tínhamos e sentíamos as mesmas sensações, calafrios, tremores, coração aos pulos e uma queda geral de temperatura. Uma vez olhei tão fixo nos olhos dela seguindo meu olhar para seus lábios que senti quando suas mãos foram ficando frias e repentinamente ela desmaiou. Nunca entendi o que se deu entre nós, foi incrivelmente inexplicável, maravilhoso e inédito.
Continuamos juntos e fizemos um templo cristão para receber feridos e em outra parte mais ao fundo, criamos uma escola donde ia ensinar as crianças da tribo a ler e escrever na minha língua, calcular e aprender sobre Deus. Eles não eram índios, mas tinham uma devida semelhança, também pintavam o corpo, se enfeitavam com frutos do mato e ramos secos, tinham a sua criatividade própria da qual muito apreciava. Pela dificuldade de aprender a língua deles, achei que fosse mais fácil tentar ensinar a minha. Tinha meus receios de falar sobre meus preceitos e conceitos religiosos, pois eles mantinham firmemente a religiosidade e crença deles, mas sabia eu que esta era bastante distorcida da que eu acreditava.
Para eles o mundo era governado por inúmeros deuses e cada parte da natureza era comandada por um guia líder espiritual diferente. Não quero aqui discutir qual filosofia religiosa é certa e nunca dentre eles queria impor a minha como a correta, apenas queria demonstrar como eu pensava. De alguma maneira, eles precisavam ser evangelizados. Para mim que viera de muito longe, era fácil visualizar o quanto eles eram atrasados moralmente e intelectualmente. Por mais que fossem generosos entre eles, não perdoavam seus rivais e viviam de conflitos brutais e violentos. Darei maiores explicações a respeito disto conforme for prosseguindo a historia e entoando os meus relatos.
Meus primeiros alunos vieram da região próxima de lagunas pantanosas, a cerca de dois quilômetros de distancia do rio. Muitos deles apenas podiam freqüentar de dois a três dias por semana por causa da lida e do trabalho junto a seus pais. Também existiam os grupos completamente isolados e que realmente não gostavam de se misturar, recebiam suprimentos e correspondências a cada dois ou três meses. Eram responsáveis pela ordem espiritual de todo o conjunto da aldeia. Para mim e creio que para qualquer outra pessoa que não seja pertencente desses hábitos, acharia tudo estranho, mas era a maneira como eles viviam e se protegiam.
Os dias ali eram quentíssimos e as noites opressivas, que se transcorriam numa sucessão interminável, enquanto eu me dedicava àquela tarefa quase impossível de professor. Não sabia realmente se eles seriam capazes de aprender a minha língua e entender os algarismos e números.
Meu caso romântico, amoroso e apaixonante por Gilda continuou e foi através dela que aprendi um vocabulário maior da língua nativa daquele local. Isso me facilitou não só na comunicação, mas também no relacionamento que tinha com meus alunos. Com o tempo alguns dos adultos, quando não estavam nas lidas trabalhando, iam ver-me e tentar aprender um pouco não só da minha língua, mas dos ensinamentos que tentava lhes passar.
Os habitantes dali eram pessoas extremamente diferentes, considerei-os sempre como senhores da guerra na selva. Destacavam-se dentre eles os lideres que pintavam o corpo com toucinho, fuligem e demais ervas do mato, enfeitavam-se de colares enrolados no pescoço e passados em volta do corpo, contudo volto a dizer que não eram índios, embora cultivassem ostentando uma aparência bem semelhante. Eles se julgavam poderosos e diziam que as montanhas que os cercavam os protegiam e ninguém ousaria desafiar as autoridades daquele povoado. Eles se associavam com os espíritos da natureza, como costumavam chamar, não se curvavam diante de ninguém e de nada necessitavam. Na primeira impressão designei-os como bichos do mato.
Estar ali era bom, mas ao mesmo tempo tinha meus receios, eles pareciam ser de temperamento muito inconstante, por vezes pensava que estar ali era correr perigos terríveis, mas tinha fé e entusiasmo, como se realmente fosse realizar uma missão vinda dos céus. Eu queria isso, mas não sabia como e nem se realmente deveria. Como poderia eu mostrar a eles que tantos costumes milenares tidos por antepassados e completamente arraigados ao dia-a-dia de todos não eram tão corretos como imaginavam? Como poderia explicar-lhe que o sistema da vingança brutal e violenta como praticavam com os perseguidores inimigos era errada se eles tinham convicção de agir corretamente?
Era pensando nestas questões que me isolava num abismo cinzento donde corria um rio muito bonito de águas transparentes e brilhantes com o reflexo do sol. Eu, assim como qualquer um daquela ilha, não tinha como sair dela, a menos que tentasse construir um barco, mas Gilda chorava quando dizia que pensava em sair da ilha. Eu também não queria deixá-la e como já relatei antes, estava envolvido não apenas por ela, mas por todos aqueles habitantes. É difícil explicar como, mas sentia que poderia ajudá-los de alguma forma. Eles eram tão primitivos que ficava com pena. Gilda, mesmo com toda sua esperteza perante o grupo, também era como eles, não entendia de assuntos mais avançados como física, astrologia, química, etc. Ninguém ali sabia o que tais palavras queriam dizer.
Durante a noite, olhava para o céu e fazia como alguns deles, conversava com as estrelas e elas reduziam meu mundo a proporções mínimas. Quando acordava, o sol nascente penetrava pelos meus olhos. Gostava do meu cantinho de dar aula, ficava contente ao ver aquelas crianças cor de chocolate, vestindo apenas um saiote de capim, correndo ao meu encontro e me abraçando. Queria fazer algo por todos dali, mas não queria interferir na cultura que tinham e achava isso muito complicado. Não seria correto impor a eles aquilo que eu julgava certo, tinha de tentar realizar mudanças em longo prazo, com paciência e muito respeito.
As crianças levavam pedaços de inhame e batata doce recém-cozida de manha, quando iam estudar. Eu custei a me acostumar com as comidas deles, mas senti que comiam de maneira mais saudável por ser tudo totalmente natural. Eles comiam com casca e inclusive com resto de cinzas. Qualquer um deles seria repreendido se retirasse à casca como eu fazia. Eles se alimentavam de uma espécie de cervo, aves de pássaros, ovos de ema, leite de cabra e tudo o que era vegetação. As mulheres cozinhavam todas juntas numa grande cabana que soltava a fumaça através de um cano feito de lataria. As mulheres levavam seus filhos para banhar-se no rio e carregavam os menos às costas, percorrendo por toda a parte mais baixa do povoado.
Quase todos os trabalhadores do campo ficavam mascando ramos de capim para se distraírem. Tinham uma extensão imensa de canteiros plantados com verduras e raízes como mandioca e cenoura. Nos centro de todas as aldeias, erguiam-se três construções imponentes, bem maiores tanto em altura quanto na circunferência. Tratavam-se de rocas especiais, dedicadas especialmente aos espíritos invocados. A primeira era parecida a um museu. Só pude entrar nela depois que eles untaram meu corpo todo com uma espécie de óleo vegetal, grosso, piniquento e escuro. Ali dentro guardavam objetos que julgavam ser sagrado, diziam que eram os pertences dos ancestrais que haviam morrido em combate, e que constantemente atormentavam os vivos, para que vingassem sua morte. A segunda era para os espíritos não humanos, era um templo de devoção ao espírito do sol, da chuva, de vento, etc. O terceiro nunca me foi possível saber de sua revelação e significado. Era vigiado por vários homens tanto durante o dia quanto a noite, lá só tinha permissão para entrar os chefes e lideres.
Também cultivavam plantas e pinheiros sagrados em um jardim santificado, cujos frutos apenas podiam ser degustados pelos lideres e um seleto grupo de anciãos, os maiores conhecedores de todos os segredos da vida e da morte.
Cercando os templos, o bosque e o jardim, via-se uma longa muralha de pedras lascadas e irregulares. Aquele centro de território para eles era a parte mais sagrada, donde os espíritos se aglomeravam e onde realizavam as trocas de oferendas pela saúde e a força vital dos alimentos e animais que os rodeavam. Ali era o centro da vida religiosa para todos eles. Para mim, muito daquela religiosidade era um equivoco. A cada geração de nova liderança, os templos eram reformados e reparados. Aprendi desde o inicio a me referir respeitosamente à colina, da maneira como eles gostavam que fosse.
Um dos meus divertimentos prediletos ali era ir com Gilda tomar banho de cachoeira. Ela fazia de tudo para que lhe dissesse sobre as conversas misteriosas que só os homens podiam ter durante as reuniões particulares tidas no final de todas as colheitas, mas realmente eu não podia lhe contar nada. Entravamos nas fendas das montanhas, recobertas de folhagem, onde descia a cachoeira, pulávamos lá de cima sem medo algum, soltando gritos esganiçados de hesitação.
Certa tarde nós estávamos tranqüilos namorando sobre as águas quando avistamos fumaça e barulho de bombas. Toda a aldeia estava sendo atacada. Era uma visão desesperadora, as mães corriam a procura de seus filhos, as crianças choravam tentando escapar do fogo que em poucos minutos incendiou tudo trepidando em labaredas altas. Nunca entendi como eram as relações de inimizades, mas creio que as próprias tribos disputavam as terras. Não tenho conhecimento para explicar o porque se guerreavam de tempos em tempos. Tudo o que eu temia estava acontecendo, derramamento de sangue e morte.
Naquele desespero todo, aos prantos, Gilda puxou-me e corremos de volta para a aldeia por um caminho diferente. Escondemos atrás de uns arbustos e ficamos espreitando tudo dali, sem sabermos como reagir. Não tínhamos como fazer nada. Vendo oportunidade de escapar, ela lançou-se para fora da moita ainda me puxando pelo braço e entrou correndo na baixa portinhola de uma pequena choupana vazia. Saindo pela porta dos fundos, saltamos a muralha de pedras da aldeia e adentramos nos templos sagrados. Ali estávamos protegidos, uma vez que todas as tribos mantinham o mesmo respeito pelo culto aos espíritos.
Encolhemos na semi-escuridão, encostados na parede oposta à janela. Com raiva Gilda me explicou que aquilo não significava apenas uma disputa por terra, mas também por marfim. Lentamente, Gilda ergueu os olhos lacrimejantes e por entre lagrimas tentei acalmá-la. Quando saímos de lá apenas o silêncio nos rodeava, no chão, os corpos mortos esparramados e cobertos de sangue demonstrando a brutalidade mantida dentre eles.
Como machucara meu pé, Gilda procurou dentre a vegetação umas folhas rechonchudas. Ela me disse que a substancia daquelas folhas ia purificar meu ferimento evitando qualquer tipo de contaminação ao meu sangue. Ela pegou um punhado das folhas e começou a esmagá-las com o punho, até que o liquido da planta reluziu entre seus dedos. Em seguida ela esfregou com muita força no meu ferimento e amarrou com a faixa de pano que mantinha amarrada em sua testa. Pouco depois caiu uma pesada tempestade formando poças de barro. Segundo Gilda, fazia anos em que não chovia naquele local.
Dentre os feridos, conseguimos resgatar umas trinta pessoas, crianças, velhos e mulheres. A voz do pai de Gilda soava esganiçada pelo pavor, pelo menos ele não se ferira muito. Sua mãe, dominada pelo pavor da solidão, escondida dentro de um tambor enferrujado, chorava intercalando com soluços as suas lágrimas. Aos poucos fomos socorrendo os feridos e limpando as cinzas dos rostos suados dos desacordados.
Ninguém conseguia me responder até quando os ataques continuariam, mas era evidente que só acabariam quando uma tribo derrotasse a outra matando todos os elementos desta. Imaginava o porque não poderia todos se unir, compartilhar de toda a terra sem aquele tipo de conflito. Eu ainda desconhecia de muita coisa daquele local, mais independente disto, sentia que eles precisavam compreender o sentimento de amor, solidariedade e benevolência humana.
Com o passar dos dias, tudo foi reconstruído e não suportava a idéia deles aceitarem a vida daquela forma. A qualquer momento tudo poderia ser queimado novamente. Porém, antes de serem atacados, iriam revidar e atacar também. Não queria isso, mas como mudar a opinião dos lideres? Se eles queriam vingança, ninguém poderia lhes desacatar as vontades. Mas eu não estava disposto a suportar aquilo tudo quieto, mesmo com meus medos, estava disposto a mudar aquela realidade de guerras e conflitos, mesmo que não fosse nos ataque seguinte. Mas desafiava-me a fazer com que um dia deixassem de se matar por algo tão banal, terra e marfim.
No dia do revide, Gilda encaminhou-se apressadamente até mim, o peito arfando pela comoção. Era com intuito de evitar tragédias como aquelas que planejávamos escolher uma elevação mais remota para irmos viver, num lugar obscuro e distante das áreas habitadas. Ela queria ir-se dali, mas eu não sentia que isso seria o certo. Queria e sentia comigo a obrigação de ajudá-los a se instruírem para o amor e conseqüentemente, deixar as guerras e batalhas como historia do passado. Não sabia quando conseguiria isso, mas tinha minhas esperanças profundas.
Todos os dias, eu e Gilda íamos rezar no santuário e enquanto não podíamos mudar a mentalidade dos seres habitantes daquele local, orávamos pedindo proteção e entendimento.
Devo explicar algo que esqueci de escrever no principio desse livro: Gilda e seus pais eram como eu, tinham ido parar naquela ilha a anos antes de mim, quando foram presos por uma emborcação de verdadeiros indígenas que se mantinham na parte mais costeira, provavelmente no extremo do outro lado do qual eu chegara. É incrível como não me lembro da minha chegada, apenas me recordo de acordar e estar num local novo e totalmente diferente. Era por isso que ela falava a mesma língua que eu, embora tenho as minhas convicções de que ela aprendera a língua deles com uma facilidade que eu não tive.
Aquelas guerrilhas eram muito tristes. Lembro-me claramente de uma garotinha extraviada correndo em minha direção desesperada. Depois ela prendeu a respiração e começou a recuar, afastando-se de mim com um temor justificável. Ao ver Gilda ela voltou a dar passos largos e juntou seu rostinho no peito de Gilda num abraço que me emocionou muito. Rapidamente levei-as para o outro lado da muralha de pedra. Gilda perguntou a pequena criança o que ela estava fazendo sozinha naquele espaço de campo onde se espalhavam milhares de dinamites. Eu estava indignado em vivenciar aquele tipo de realidade distorcida da qual era acostumado em meu mundo particular. A criança chorosa reclamou que não conseguia encontrar sua mãe. Gilda tentou explicar a pequena e pobre criança que sua mãe havia morrido. Meu coração parecia inchado em ter de verificar aquela situação. Senti-me o homem mais frágil da humanidade. Pedi a ela que dissesse o nome de seu pai e depois disso, coloquei-a sobre os ombros e levei-a rapidamente pelo caminho devido a encontrar seu pai.
Eles tinham costumes tão estranhos que nunca compreendi. Pouco depois da guerra, um dos lideres reuniu todas as crianças da região daquela mesma tribo atacada e sobre o corpinho delas esparramou banha derretida, ungindo inclusive o rosto. O processo era feito cuidadosamente para não deixar de fora nenhuma parte do corpo. Depois de todo o processo, faziam símbolos nos ombros e na nuca. Senti-me aliviado ao ter certeza de que eu não teria de passar por todo aquele processo também, realmente aquilo era apenas para as crianças.
Sentir-se preso naquela ilha por certas horas era deprimente, chato e desesperador, mas em momentos tinha suas diversões. Lembro-me quando comecei a usar uma fita nos cabelos. Ela era toda feita de conchas brancas. Também passei a usar adornos que me foram dados. De certa maneira os homens da tribo estavam agradecidos por eu ter contribuído a curar os ferimentos e ajudar a resgatar os mais feridos. Gilda ao ver os colares que ganhara disse-me que eles eram riquíssimos pela especialidade e cor das conchas. Aqueles colares de conchas maiores, enrolados em meu pescoço iam até abaixo do meu tórax. Depois de colocar todos diziam que eu virara um esplendido rapaz, bem, essa foi à tradução feita por Gilda. Eles estavam felizes por me ver com aqueles colares, me adaptando ainda mais com a cultura deles.
Certa tarde nós estávamos reunidos descascando umas bagas de um fruto quando o líder começou a conversar comigo. Eu ainda não compreendia praticamente nada da língua deles e foi preciso chamar Gilda para traduzir. Ele dizia que ainda via medo em meus olhos, isso era impossível perante eles, extremamente proibido. Realmente, eu tinha medo, não tanto deles, mas das guerras. Depois de dizer aquilo, o homem dirigiu-se a uma arvore próxima e retirou dos ramos uma lança negra de cerca de três metros de comprimento. Repentinamente ele tirou de uma sacola pendurada em suas costas, uma armadura. Posicionou o ramo e puxou a flecha fitando com olhar cruel uma seriema que passeava sobre o capim seco. Abaixando-se ele flexionou as pernas e inclinando-se para frente ficou de joelhos disparando logo em seguida o ramo que ganhou velocidade. Depois ele virou-se para mim e disse que eu ainda precisava aprender muita coisa, a primeira delas era não ter medo e mesmo que tivesse, não demonstrá-lo, principalmente perante os inimigos. Com um pio distante e agudo, o golpe da lança atingiu o pobre animal que apenas tombou para o lado. Se não era para eu ter medo, aquela demonstração me deixou tremendo de pavor. Todos caíram na risada como se houvessem percebido a minha cara de espanto. Eles lidavam muito bem com suas flechas.
Assim que cessaram os risos, um jovem carregando uma criança aproximou-se. Solenemente uma garoa fina começava a cair. Era o relento do anoitecer. Um dos lideres perguntou de quem era aquela criança. O sujeito respondeu que era filha de um inimigo. Haviam encontrado-a no interior da tenda donde as mulheres ficavam cozinhando. O líder que fizera a pergunta suspirou sobriamente. Depois fez cara de bravo e questionou porque não havia jogado a criança no rio ou porque simplesmente não atirara nela. O jovem fez sinal com a cabeça e estava se retirando quando me levantei um tanto revoltado. Não poderia deixar que matassem uma criança assim, daquela forma. O líder levantou-se também e disse que se eu me tornasse uma testemunha da morte daquela criança, ia automaticamente me tornar um inimigo deles. A situação ficou pior quando o líder ordenou para que eu matasse a criança quebrando-lhe o pescoço ali, na frente de todos. Eu preferia morrer a ter de matar aquela criança.
Disse-lhe que daria meu sangue, mas não ia matar aquele ser que de nada tinha culpa. Disse-lhe que pensassem em seus filhos, mas nada tocava o coração daqueles homens. Com a ajuda de Gilda que ia traduzindo minhas frases, tentei explicar-lhes que ia proteger aquela criança como faria com qualquer um dos filhos dos homens daquela tribo. Mostrei a eles que nunca deixariam de ser atacados enquanto agissem daquele modo, com tamanha rivalidade.
Pensei que fosse ser morto naquela noite, mas não. Outro líder levantou-se e ordenou ao jovem que levara a criança para comunicar a tribo vizinha que havia uma criança deles perdidas naquele território. O moço se retirou garantindo que ia falar com o pai daquela criança imediatamente. Completei dizendo-lhe que o pai da criança deveria ir buscá-la antes que a lua surgisse no céu.
Dirigi-me apressadamente para o líder e reverenciei-me ajoelhando e encurvando sobre seus pés, de meus olhos escorriam lagrimas de comoção, não sabia como, mas minhas palavras haviam sido ouvidas. O restante dos homens viraram-se tristemente para mim, eles não entendiam o porque reagira daquele modo. Ao levantar-me, o líder colocou a mão nos meus ombros e disse-me que eu era um homem instruído e se conseguisse unificar aquelas terras sem porte de instrumentos mortais, ia ser o novo chefe deles. Pensei estar sonhando e não me conformava que estava conseguindo atingir os meus objetivos daquela forma tão simples. Bastara apenas eu ter a coragem de enfrentar o líder no momento certo. Ao olhar para Gilda, verifiquei que ela me olhava estremecida. As mulheres suspiravam e logo fiquei sabendo que aquilo significava emanação de sorte, era o que elas queriam desejar-me.
A estranheza daquele momento me causava repulsa. Se pudesse teria sumido dali imediatamente, estava com muito medo. Acenderam uma fogueirinha no centro e colocaram folhas de bananeira ao redor. Não demorou muito para que o pai da criança chegasse ao local. Ele não vinha só, era o que temia. Homens fortes e armados o acompanhavam. Levantei-me e segurei firmemente a criança com a mão direita. Esta gritou o nome do pai e caiu num choro profundo. Sem nada dizer, abaixei-me e enxuguei as lagrimas daquele pequeno ser. Dei-lhe um beijo no rostinho e retirando um dos meus colares, coloquei no pescoço dele.
A criança olhou para mim com cara de espanto e parou de chorar, depois percorreu os dedinhos pelo colar que quase encostava ao chão de tão grande que ficara em seu pescoço. Em seguida, olhei para Gilda e comecei a dizer-lhes que independente deles serem de uma tribo diferente e independente das guerras, eu sentia um carinho imenso por aquela criança e queria ser amigo. Repeti a palavra “amigo” varias vezes enquanto batia no meu peito. Sabia que aquele sinal demonstrava reverencia a paz entre os homens. Em seguida, abracei o menino e encurvei-me ainda mais agachando sobre a areia até encostar minha testa no chão. A criança correu para o braço do pai que sem entender o que acontecera, encurvou-se também numa espécie de agradecimento respeitoso. Depois me disse que era um homem honroso por ter protegido a vida daquele ser.
Levantei minhas mãos para o alto demonstrando que não tinha comigo nenhuma arma. Tentei me aproximar e novamente bati no peito repetindo a palavra “amigo”. Eles abaixaram os arcos e começaram a dançar em volta de mim chutando a areia. Convidei-os para sentar-se conosco. Percebi que o líder me olhou com um rosto muito enraivecido. Achando que estava passando dos limites, fiquei calado e um tanto envergonhado abaixei a cabeça. Eles não aceitaram sentar-se junto a nós, mas já me sentia feliz pelo que ocorrera. Assim que os homens se retiraram, os outros que se mantinham sentados aguardando o desfecho do ocorrido, fizeram um barulho típico com a boca e entoaram um cântico que ainda não tinha escutado.
Pouco tempo depois o líder da outra tribo retornou e pedi a todos para que ele tivesse permissão de sentar-se conosco. Orgulhosamente, ele sentou-se bem aprumado no chão duro e seco, no meio dos outros, deliciando-se por ter sido aceito no circulo. Os raios e trovões naquele momento se afastavam, deixando ali apenas o frio, a cerração opressiva e a garoa fina. Iniciamos o banquete espiritual, percebi então que a adoração era tida pelos mesmos tipos de espíritos. Ao termino, pedi oportunidade da palavra e perguntei se eles não se sentiam envergonhados perante os espíritos benignos pelas lutas e mortes. Um deles me respondeu que as mortes faziam parte da vida, tinham de se defender. Tentei mostrar-lhes que aquilo era errado, não estavam se defendendo, estavam lutando pela ganância de território e marfim. Para mim aquilo era um absurdo e deixei todos pasmos com minha demonstração de contrariedade por aquilo que eles achavam natural. Nenhum deles disse nada, mas sei que ficaram refletindo minhas palavras. No fundo eles tinham consciência de que eu estava certo. Eles podiam acreditar nos Deuses que quisessem, cultuar os espíritos de ancestrais e aqueles provindos da natureza, mas uma coisa era clara, o mal não é benéfico a ninguém. O mal apenas desencadeia o mal e sempre será assim. Meu trabalho junto a eles ia ser longo, mas já sentia surgir os primeiros efeitos. Logo percebi que não compreendiam o sentimento do amor e era isso que deveria fazer, ensinar-os a amar.
Também estava aprendendo muitas coisas, passei a ter conhecimento dos rituais de lua cheia e das cerimônias sagradas realizadas na aldeia, na parte baixa da colina, escondida no interior de um corte da montanha. Ali existiam umas choupanas já praticamente em ruínas da qual pretendiam reconstruir caso eu fosse nomeado o novo chefe. Eu mesmo não sabia se queria receber essa nomeação e cargo. Na verdade não queria passar o resto da minha vida ali. Estávamos nos auto-instruindo, entendendo sobre os segredos naturais da vida.
Questionei ao líder qual era o segredo da origem do homem e ele me disse que eu era o primeiro a indagá-lo sobre o surgimento da humanidade. Eu acreditava que os homens vinham dos macacos, mas queria saber o que eles pensavam sobre isso. Ele me respondeu que tudo era um grande mistério e a mais elevada experiência da humanidade seria conhecer o segredo da própria existência no universo. Essa foi à resposta que obtive e nada mais conversamos.
Dentre todo o tipo de comida daquela região, o que mais gostava era de umas frutinhas vermelhas que se fazia porção com chá de uma folha amarelada de um arbusto. Sempre que comia daquilo, olhava para o chão ponderando sobre a tremenda responsabilidade que tinha perante aquelas pessoas. Pensar naquilo me fazia marejar de lagrimas.
Quando me sentia exausto, subia os morros, ia para o alto e sentia que de lá dominava todas as aldeias, ficava durante horas firmemente de pé sobre a grande rocha e rezava com toda a minha fé. Imaginava que os ataques não mais ocorreriam, mas estava tremendamente enganado.
Muitas vezes chorava ao ir deitar-me, sentia muita falta do meu mundo particular, daquele que tinha antes de ir parar naquela ilha. Sentia-me estranho como se fosse enlouquecer de repente. Tinha horas que ficava arrependido de um dia ter tido a idéia de fazer aquela aventura em busca de novas pesquisas e descobertas. Eu tinha apostado em um pensamento que simplesmente me levara longe de mais. Estava vivendo algo que jamais poderia ter planejado ou pensado de viver. Estava num mundo estranho e tirando Gilda, não tinha verdadeiras afinidades com mais ninguém daquele local, isso me entristecia, me fazia sofrer e ficar totalmente perturbado. As atitudes que eles tinham me incomodavam e por mais que tentasse respeitar os costumes locais, muitas vezes me irritava com alguns deles que insistiam comigo para fazer as coisas exatamente do modo como eles faziam.
Eu queria fazer o melhor de mim para ajudá-los, ensinar sobre o amor, mas não me via a altura de tal ato, tinha dias em que me sentia péssimo, um verdadeiro inútil, tinha minhas crises de peso na consciência e mais tempo menos tempo, tudo voltava a ser e estar como antes. Eu não tinha saída, minha permanência naquele local não tinha os dias contados e deveria aceitar essa realidade, por mais difícil que ela fosse. Houvera eu deixado tudo para trás e isso doía em meu peito. Tudo bem que estivesse agregando novos valores e conhecimentos compartilhando do meu viver com aquelas pessoas, mas a confusão que invadia meu peito me deixava entre o tédio e a ansiedade.
Quando queria estar sozinho, dormia no relento, soluçava até dormir junto à luz bruxuleante da fogueira. Escutava o barulho da mata e via o brilho dos vaga-lumes, aquilo me dava serenidade. Tudo ali parecia ser um teste de paciência e resignação. Eu estava suportando da maneira como conseguia. Muitas vezes permanecia acordado por quase toda à noite e tinha de atiçar o fogo varias vezes. Por baixo da luz crepitante, silenciosamente, eu riscava e desenhava com o dedo na areia, imaginando que logo tudo poderia ocorrer novamente. Era como se pudesse ver em minha mente a figura bem típica da cena deles preparando a tinta vermelha com que se cultuavam ante o ataque. Aquilo me atormentava e ficava com medo. Achava interessante a maneira deles preparar as tintas com um pó ocre da terra e outro branco de cal, mas saber para que se destinava o uso daquilo me enervava profundamente. A ultima coisa que faziam antes dos conflitos eram untar os seus arcos, feixes e flechas de ponta de bambu com a água do rio e um óleo vegetal benzido. Era incrível o ato de tantos rituais para se atacarem uns aos outros de forma tão brutal e violenta.
O ataque seguinte que sofremos poucos dias depois aconteceu de forma inesperada, durante a noite. Tivemos de sair sob um verdadeiro temporal de águas que caiam dos céus e fugimos das dezenas de figuras escuras que se ajuntavam do lado extremo do alto muro de pedras que cercava a região do acampamento maior no qual eu estava, exatamente protegendo os feridos que praticamente já haviam se recuperado. Meu desespero era tanto que não conseguia ter nenhuma reação. Não conseguia acreditar que estávamos sendo atacados novamente. Haviam passado apenas poucas semanas desde que ocorrera o ultimo ataque. E daquela vez, o grupo da tribo na qual me mantinha não tivera contra-atacado. Naquele momento percebi que atacar era realmente uma questão de defesa para muitos deles. Ali, quem não atacasse revidando com vingança, acabava sendo morto. Era tudo muito cruel e a responsabilidade se tornava ainda maior em minhas costas. Quando conseguiria mudar a situação daquele local? Tal era meu maior questionamento, um tormento que já fazia parte de todos os minutos do meu cotidiano.
Corri para o ponto mais elevado e gritei com todas as minhas forças pelo nome do líder do clã que se sentara junto conosco no dia do ritual da fogueira, quando tínhamos entregado a ele a criança. Tínhamos ganhado aquela tribo como nossa aliada e mesmo não querendo mais mortes, verifiquei que se não matássemos, iríamos todos morrer e ainda perder tudo o que tínhamos reconstruído com tanto trabalho. Dos lábios de muitos homens partiu o mesmo eco entoando o mesmo nome até que ele surgiu com seus homens dando-nos reforço. O ataque provocava gritos semelhantes entre os guerreiros, que interromperam de repente a guerrilha e iniciaram uma dança selvagem demonstrando que iam se retirar do conflito, eles estavam desistindo e quando isso acontecia, era sinal de que nós sairíamos vitoriosos. Aquilo não queria dizer grande coisa, mas aliviava meu coração saber que a guerra ficara interrompida sem grandes conflitos e sem maiores sofrimentos.
Foi me explicado que em ocasiões especiais, eles dançavam até entrar e penetrar completamente no mundo dos espíritos, trazendo assim a alma de um membro da tribo que estivesse doente. Os mais capacitados para isso eram tidos de possuidores dos xamãs, que também podiam exorcizar os espíritos malignos.
Fiquei boquiaberto quando em meio da dança, todos se reuniram fazendo vibrar os cipós dos arcos em direção ao alto dos céus. Pensei que fossem todos malucos ou que estivessem possuídos por algum tipo de entidade maligna. Nunca imaginara que pudesse existir tamanha maluquice. Realmente eram uns povos muito diferentes e estranhos. Depois da dança, o pessoal da tribo na qual eu me mantivera junto, gritaram, mas não muito alto. Fiquei sem entender o que estava acontecendo e achei por bem nem querer entender. Na verdade tudo não se passava de fingimento, apenas não queriam revelar a nós, considerados como seus inimigos, qual era a intenção que tinham. A essa altura, as mulheres e crianças já sabiam do que se passava e choravam num desespero profundo.
Depois da dança, a horda de homens armados seguiu por um trilho, movendo-se como fantasmas, cada vez mantendo mais silencio. Todos os pertencentes da tribo aliada reuniram-se junto a nossa. As mulheres se esparramavam fugindo pelos bosques de pinheiros e logo alcançando o rio. Dali caminhavam ao ponto donde este se alargava e se tornava suficientemente raso, podendo ser atravessado. Ali tinham refugio numa gruta que era um esconderijo secreto da nossa tribo. Muitas mulheres não agüentavam a pressão da correnteza e eram arrastadas pelo rio afora com suas crianças no colo. Enquanto isso, nós estavam novamente sendo atacados e fazíamos de tudo para defendermos também os atacando.
Tendo ajuda da tribo que se tornara nossa aliada, conseguimos vencer ao ataque tão indesejável. No dia seguinte estavam me colocando no cargo de chefia da tribo. Eu não tinha como recusar e tentei deixar claro que meu objetivo não era lutar por terra ou marfim, mas pela união e o amor dentre as tribos. Eles não ligaram com isso e notei que tinha grandes chances de realmente fazer a cabeça daqueles homens. Permitia a mim mesmo um momento de auto-satisfação, mas sabia que a parte mais difícil de minha tarefa ainda estava pela frente. Ao mesmo tempo em que sentia uma apreensão corroer meu estomago, sorria feliz e satisfeito. Em fila frente à fria escuridão, saímos ao resgates das mulheres que desapareceram pela floresta.
Encontrei-me com Gilda poucas horas depois, ela estava na aldeia e quando me viu, tentou correr ao encontro dos meus braços, mas pisando em falso caiu no lamaçal. Depois de se levantar, ela inclinou-se e atravessou timidamente a porta da colônia, ficou ali parada, tremendo de frio com os braços cruzados no peito até que consegui iluminar o caminho para ela. Eu mal conseguia andar, tinha sido ferido na perna e estava ardendo de febre. Saber que ela estava bem me aliviava o sentido. Beijei seu nariz pequeno e arrebitado, olhei para seus olhos meigos e suaves que pensativos refletiam um sentimento nobre de temor.
Acordei cedo com a radiosa claridade do amanhecer e a primeira coisa que fui fazer foi ajudar a retirar os corpos que ficaram esparramados por todos os cantos. Depois fomos todos trabalhar na horta. Numa das mãos eu segurava um gasto bastão de trabalhar na terra e na outra, uma espécie de capa feita de frondes de pândano, a fim de proteger-me melhor. Armando-se do mesmo equipamento, Gilda seguiu-me deixando a aldeia. Os canteiros nos aguardavam junto a um grupo de arvores, vários metros abaixo, mas a uma distancia visível do resto do povoado vizinho. Nenhuma das mulheres gostava de roçar mais para baixo, na direção do rio, pois sempre havia perigo de emboscadas. As chuvas pesadas haviam carregado para lugares mais baixos o solo mais fértil. Para surgir o alimento de todos os dias, alguém tinha de se arriscar e, portanto a tarefa ficava destinada aos homens mais fortes.
Observei o movimento feminino. As mulheres se afastaram lentamente da colina com sua guirlanda de choupanas. As crianças ao me verem sorriam e me cumprimentavam perguntando quando retornaria a dar minhas aulas. Durante aqueles dias de plantio tivera que auxiliar o restante do pessoal e não estava tendo tempo para ensinar e dar atenção especial às crianças, mas desejava retornar as aulas em breve, assim que fosse possível. Daquelas aulas pretendia evangelizar as crianças e satisfazer o meu maior objetivo, ainda secreto para eles.
Do telhado do local donde as mulheres se reuniam para cozinhar, elevava-se um filete de fumaça significando que estavam dando inicio a merenda da próxima refeição.
Enquanto trabalhávamos, mantínhamos distraídos e nenhum de nós estava olhando encosta abaixo, em direção à emboscada. O restante dos homens do conflito da noite, os quais não ficara ferido gravemente, haviam retornado com idéia de vingança. Enquanto invasores avançavam agachados em meio aos arbustos, retirei a minha sacola das costas e depositei-a cuidadosamente sob a sombra de um arbusto. Chamei as crianças que brincavam ali perto e reunindo-as pedi para que ficassem quietas exatamente naquele local. Corri os olhos pela floresta, um pouco em duvida, mas não avistei nenhum perigo embora estivesse tendo uma espécie de pressentimento. Sendo seguido por um cachorro que ficava vigiando a região das hortas, o qual chamava Herluk, desci até a clareira da horta e enfiei minha cavadeira afiada na terra macia. Enquanto fingia trabalhar, tentava enxergar aquilo que menos desejava e não demorou muito para meus olhos ver.
Naquele momento enxerguei claramente o rosto de um homem qualquer da outra tribo, pintado com tinta vermelha, rindo com seus dentes amarelos por entre os arbustos. No mesmo instante, avistei uma centena de guerreiros pintados e mascarados, surgindo repentinamente da floresta. Disparei junto dos outros pela colina acima berrando o fato de que estaríamos sendo atacado novamente. Ao virar-me vislumbrei rapidamente com uma mãe desesperada que fugia morro acima carregando um bebê sobre o ombro. Foi então que as primeiras duas flechas a lançaram de bruços sobre a areia. Enquanto ela se contorcia no chão, dezenas de outras perfuraram seu corpo. Tentou erguer-se, mas as flechas atingiam-lhe cada vez mais. Abafei o grito de horror que estava preste a soltar. Aquilo era muita barbárie para meus olhos.
Pouco depois, uma flecha atravessou-lhe o pescoço fazendo com que ela desse seu ultimo suspiro. Eu estava tão pasmo que não sabia se fugia ou se tentava salvar o bebê. Antes que pudesse pensar no que fazer, uma flecha me atingiu próxima ao estomago e achando que fosse morrer como a mulher, deixei-me cair no chão e sem forças senti-me desmaiar. Não estava morto, ainda escutava o rumor de correria. Pensei nas crianças e muito tonto tentei arrastar-me pela areia como uma serpente num deserto. Antes que eu quisesse fazer qualquer coisa, senti minha cabeça girando e realmente bati com ela no chão arenoso e quente. Não vi mais nada.
Acordei não sei quanto tempo depois, permanecia junto a uma fogueira e Gilda cuidava dos meus ferimentos. Desesperado eu tentei levantar de imediato e praticamente gritei de dor. Fitei o fogo em silencio, depois comecei a chorar. Realmente havíamos esquecido dos restantes dos inimigos que poderiam nos atacar pela parte mais alta. Gilda afagou minha testa suada e tentou me tranqüilizar dizendo que tudo estava bem. Naquele momento todos estavam vigilantes. Depois ela me explicou que tudo fora horrível, os guerreiros inimigos tinham descido pela encosta da colina e enfurecidos atacaram suas flechas com uma fúria quase sobre-humana, fazendo chover flechas por todos os lados e matando muitos homens da nossa tribo. Eu tentara gritar para advertir o pessoal, pois sentira que aquilo ia acontecer, mas ainda era muito impotente para lidar com aquele tipo de ataque. Quando vi os jovens guerreiros erguendo os olhos, vindo em nossa direção e poucos segundos depois aquela mãe com seu bebê ser morta, já não tinha forças para reagir, estava muito chocado e pasmo. Apesar disso, tentei ser forte e detive-me por alguns segundos a fim de erguer um exultante brado de desafio aos inimigos. Quisera eu ter tido coragem suficiente e condições para salvar aquele bebê. Aparentando calma, Gilda pediu para que descansasse, mas eu apenas conseguia chorar.
Juntando-se a nós, o líder questionou-me se eu lhes dava permissão para um revide. Eles estavam planejando de dispersarem-se pela colina no amanhecer do próximo dia e por entre as arvores realizar uma emboscada. Naquele momento lembrei-me que eu tomara o cargo de chefe e somente então comprovei que eu era quem daria a ultima palavra. Meu desespero aumentou e meu coração parecia querer explodir. Por um momento senti tanta raiva que pensei em desistir do meu propósito e ordenar aqueles homens ao contra ataque, mas depois retive a idéia e pedi a eles que se sentassem.
Disse-lhe que nossos inimigos tinham de ver nossos gestos e entender nossa intenção. Não devíamos carregar ódio conosco, mas sim à vontade de libertação daquele tipo de derramamento de sangue. Eles pareciam que iam escarrar em cima de mim de tão feia que foi a cara que me fizeram. Pedi-lhe para que não se enfurecessem comigo e que me entendessem como um companheiro que quer o melhor não apenas para os amigos, mas aquele que deseja a passividade e abonança junto dos inimigos, pensando na coletividade do grupo. Era complicado dizer-lhe aquilo e tinha medo de que acabassem de me matar, porém algo neles faziam ter respeito, não por mim, mas pelo nome de “chefe” que eu carregava. Eles responderam algo que Gilda não soube traduzir, algo como não suportamos mais o empapar de sangue escorrendo pelas costas de nossos homens. Respirei fundo e tentei fazer com que eles se acalmassem. Disse-lhes que abrissem mão da terra e do marfim. Todos me olharam com espanto, como se não acreditassem que eu havia dito aquilo. Depois repetiram como que para ter certeza e instantaneamente eu afirmei. Disse-lhes que se não mais agüentavam ao derramamento de sangue, que desistissem de lutar. Eles riram e logo comentaram que eu não estava fazendo mais juízo das coisas, ou seja, tinha enlouquecido. Dizer para eles deixarem de lutar era como dizer para deixarem de viver.
Disse-lhes para que adiassem o ataque e sem dar explicações, fiz de tudo até que os convenci disto. Assim que me sentisse melhor, ia apresentar-me frente aos inimigos com minha solene intenção de paz e amor. Não sabia como faria isso e logicamente o teria de fazer as escondidas, mas algo me intuía a reagir de tal modo. Eu estava simplesmente ficando enlouquecido de dor e pavor. Daquele modo, fiz um gesto para que meus companheiros abaixassem as armas e fiquei contente quando eles me obedeceram. A responsabilidade que tinha era muito grande, pois não era apenas minha vida que estava em jogo.
Contando com a ajuda de Gilda, saímos da aldeia dois dias depois ao ultimo ataque e seguimos rumo o clã que nos atacara. Carregava comigo um medo inexplicável, não tinha reforço algum e o fato de estarmos agindo em segredo me deixava confuso. Ao chegar próximo dos trabalhadores da outra tribo, pedi a Deus que me ajudasse e caminhando agachado tentei me aproximar o máximo que foi possível. Não tinha idéia fixa do que ia fazer e muito menos do que poderia acontecer.
Esperamos todos os trabalhadores terminarem sua lida e assim que o dia entardeceu, observamos eles fazerem os rituais sagrados. Quando a noite finalmente caiu e todos se recolheram aos seus cantos de dormir, adentramos pé antipé, cautelosamente para não fazer nenhum ruído. No centro do território rodeado pelas tocas e cabanas, como comumente chamava, observei a noite escura. Tudo era um breu e pouco conseguia enxergar. Ali deixei todas as flechas que carregava comigo e em volta alinhei marfim com montes de areia. Usando tinta concentrada, pintei o símbolo de paz sobre a areia e em oração pedi para que não chovesse naquela noite. Não sabia se eles entenderiam aquilo, mas sentia-me mais tranqüilo, pois tentara de alguma forma.
No amanhecer do dia, retornei acompanhado de Gilda para verificar o que estava ocorrendo na tribo e chegando lá ficamos surpresos, tudo estava vazio. Não sei o que ocorreu, mas talvez tenham pensado que aquilo era obra dos espíritos que estavam contra eles. Simplesmente tinham desaparecido dali levando os pertences que possuíam. Fiquei sem entender e sem revelar o que fizera, contei a novidade para o pessoal da minha tribo. Eles apenas acreditaram quando foram vasculhar a área. Acharam tudo muito estranho e disseram-me que o pessoal daquele clã ainda retornaria. Não estava entendendo mais nada e fiquei ansioso para realmente ver o que aconteceria. Depois o líder me explicou que quando se retiravam todos eram para manifestar sinal de luto. Pensei em contar o que fizera, mas meu receio foi tão grande que fiquei calado. Depois o líder comentou que achava tudo muito estranho. Questionei o que significava o sinal de luto e ele explicou-me que quando recebiam um aviso maligno, se matavam em culto a força dos guias. Eu fiquei ainda mais confuso. Aquilo queria dizer que eles haviam se retirado para se matarem. Não podia acreditar que meu ato pela busca de amor ia matar mais dezenas de homens. Sinceramente, naquele momento, tive vontade apenas de desaparecer dali, de sumir para sempre daquele local e da vida daqueles seres.
Durante a noite, tinha pesadelos horríveis e ficava escutando o cântico de morte que eles entoavam pelos inimigos, aquele som ecoava pelos vales e irritava meus ouvidos. Durante o dia, mantinha-me no trabalho, hora nas hortas, depois na busca de lenha e alimento da floresta.
Nos dias subseqüentes, nenhum ataque aconteceu. Numa bela tarde, estava indo com Gilda para a cachoeira quando vi alguns homens estranhos saindo da floresta que ficava acima da cachoeira. Ninguém havia nos visto porque estávamos atrás de uns arbustos compridos. Olhamos de um lado para o outro e notamos que aqueles homens tinham vindo do mar assim como eu e Gilda. Estariam eles perdidos? Tinham chegado naquele exato momento? Subi correndo para a parte mais alta a fim de tentar visualizar algum barco na costa da praia. Não havia nada. Seriam homens vindos da outra região? Gilda também estava em duvida. Eles falavam numa língua diferente da nossa e, entretanto não era a língua nativa daquele local. Ficamos ser reação até que eles se retiraram.
Naquela tarde, Gilda me explicou que se fossemos nativos da tribo deles, o que fazíamos já teria significado a perda da vida. Estávamos juntos e namorávamos sem ainda termos nos casado. Ela me explicou como se davam os casamentos para aquela gente, mas não entendi muito bem e, portanto nem irei descrever. Disse-lhe que desejava muito me casar com ela, mas não da maneira dos rituais praticados por aquela gente. Na verdade, para eles um homem tinha de esperar a barba crescer até o peito para realizar o ritual do matrimonio. Se assim não fosse, os espíritos enviavam uma maldição sobre a mulher e esta se tornava infértil. Tudo isso para mim era tão sem cabimento que parecia uma piada.
Questionei a Gilda se eles não tinham nenhum mandamento a cerca do amor entre os homens e ela me disse que já ouvira os guerreiros citarem a expressão de respeito recíproco o qual nem parecia estar fortemente implícita nos atos deles. Quando o inimigo estivesse no alto e nós outros estivéssemos no vale, a ordem era não se expor demais ou totalmente. Era por isso que eles tinham aversão de travar luta nas ladeiras. A ordem deveria ser não guerrear, isso sim. Quis saber sobre os outros mandamentos a cerca das guerras. O seguinte era não guerrear em local de terreno sagrado. Este eu já sabia. Aquela realidade me tirava o fôlego, tudo era muito complicado para minha cabeça. Para eles era um erro terrível atirar uma flecha na direção de um chão sagrado ou derramar sangue humano nele. Estar num local sagrado significava total proteção. Um inimigo não poderia ferir quem quer que fosse se este estivesse pisando em areia sagrada. Se alguém da tribo desordenar esse preceito e matar ou ferir um inimigo em terreno sagrado, seus parentes ou afins da mesma tribo tinham de lhe tirar a vida, senão todo o mal retornaria em dobro. Os conceitos deles com relação à ação e reação eram totalmente distorcidos do que eu acreditava como verdade. Também não podia atacar um inimigo durante uma cerimônia sagrada.
À noite fui reunir-me com os mestres regidos para a proteção da nossa tribo e pela primeira vez sentei na sagrada pedra negra que eles designavam para aquele que era nomeado chefe. Para eu sentar ali significava um peso total e não tanto uma alegria como eles imaginavam. Todos dirigiam-se a mim respeitosamente e percebi que durante aquelas reuniões eu era tido como o Deus da verddae. Naquele momento apenas eu era o dono da verdade absoluta. Fiquei sem entender o que falavam, uma vez que Gilda não estava junto pela proibição que as mulheres tinham de comparecer a tais reuniões. Eles também tentavam compreender o que eu falava e tudo o que constatei é que aquele cargo ficara muito mal posicionado uma vez que não havia meio de nos comunicarmos ali dentro daquele recinto.
Dias depois fomos novamente atacados, mas desta vez foi por um único malfeitor que ateou fogo a algumas habitações. Acordamos sobressaltados saindo solenemente de suas moradas em busca de recipientes de bambu que pudessem pegar água para apagar o fogo. Pouco depois, a população despertada conseguiu abafar o incêndio. Não sabíamos se realmente aquilo fora um ataque, pois ninguém se confessou culpado. O fogo tinha surgido misteriosamente. Todo mundo começou a questionar e a observar uns aos outros. Depois cada um voltou a dormir, mas eu não conseguia mais pregar os olhos.
Com o passar dos dias, notei que além das brigas por terra e marfim, também se guerreavam para satisfazer as forças demoníacas desconhecidas que eles julgavam receber. Conforme eles iam se acostumando comigo, ia demonstrando a eles que nem sempre a guerra era a melhor solução.
Certa feita disse-lhes que não podiam seguir ao Senhor se continuassem apegados a seus fetiches de origem vinda aos antepassados. Tentava instruí-los pouco a pouco da maneira como conseguia. O que dizia há primeiro instante era sempre um absurdo. Para eles, renunciar aos costumes tradicionais de vingança até mesmo pela morte dos ancestrais era como uma grande piada de mau gosto. Aos poucos tentei mostrar a eles que eram os únicos a realizar aqueles tipos de rituais e, no entanto, não levavam uma vida melhor do que o restante dos habitantes do mundo. Eles concordaram e a partir daquele momento, minhas palavras tiveram maior ressonância em seus ouvidos. Deixaram assim de fazer questão de vingar pela morte dos antepassados e nada mudou.
Com o passar dos dias, eram eles quem me procuravam com questionamentos a respeito do que eu pensava sobre determinados rituais. Mostrava meu respeito por tudo o que praticavam, mas também deixava claro o que pensava a respeito. Disse-lhes que acreditava nos espíritos, mas para mim apenas existia um Deus, pai da terra e dos céus. Eles me olharam surpresos e inclusive espantados. Disse-lhes que era impossível seguir a Deus tendo dentro deles o sentimento de ódio e vingança como tinham. Naquele momento percebi que eles levariam anos para entender e compreender realmente o que estava lhes falando. A minha permanência ali apenas ia colocar no coração daqueles homens a pequenina germinação de um ensinamento novo. Em todo caso, começava a sentir que tudo estava valendo a pena e meu esforço até então não estava sendo em vão.
Sentia a evolução daqueles povos, principalmente quando descobri que era costume dentre os antigos antepassados, fazerem um banquete em agradecimento quando ganhavam uma guerra e que nesse banquete, comiam a carne dos inimigos mortos. Isso me faz arrepiar de horror e chega a ser difícil de acreditar até hoje.
Passei a contar-lhes trechos bíblicos sobre Jesus e notava o encantamento deles em escutar-me. Sabia que as guerras não se findariam, nas amenizariam uma vez que fazia de tudo para evitar os contra-ataques. Sentia que o clima estava se tornando melhor, embora vagarosamente. Foi dessa maneira que vivi anos de minha vida até que uma embarcação de homens brancos e civilizados chegou na ilha.
O que se sucedeu não foi o que eu imaginava, pensava que ia ir embora juntamente de Gilda para a terra donde viera. Mas não, aqueles homens que lá tinham chegado não estavam a nossa procura, simplesmente faziam parte de um bando formado pelos homens que vira com Gilda quando havíamos ido tomar banho de cachoeira naquela tarde que relatei há pouco.
Aqueles homens simplesmente iniciaram uma conquista brutal, a mais sangrenta que jamais esperava ter de presenciar. Foram muitos os mortos a fio de espada numa ambição humana horrível e miserável. Invadia as vilas, as aldeias e iam matando a todos. Não poupavam a vida das crianças, nem dos velhos, nem das mulheres grávidas. Utilizava-se de pólvora evitando o combate corpo a corpo. Além dos tiros das armas de fogo como mosquete e canhão, usavam armas como espadas, lanças, e punhais. Eu estava horrorizado, muito mais do que estivera durante toda a minha convivência com aqueles homens de raça diferente. Tentei lutar junto das tribos que acabaram se unindo todas numa só. Naquele momento não existia rivalidade por terra ou marfim, mas apenas a defesa da própria existência e da vida que tinham. Inimigos se tornaram amigos ao constatarem que precisavam uns dos outros para sobreviver. Porém, nosso armamento era mínimo, tínhamos arcos, flechas envenenadas, pedras, lanças, machados e pouco disso nos adiantava. Entretanto, podíamos vencer já que éramos cerca de mil homens para cada um daqueles que nos atacava. Foi então que surgiram às desavenças malignas, doenças infecciosas com poder mortal que nós chamávamos de praga do inferno. Estávamos sendo arrastados à morte por grandes epidemias cuja qual não tínhamos resistência a combater.
Eu resolvi fugir com Gilda antes que também morrêssemos. O que se seguiu foi à imposição daqueles povos sobre o costume dos nativos, modificando profundamente a maneira de vida das tribos restantes. Nossos amigos e também aqueles que durante muito tempo houvera sido cultuado como inimigo, foram aprisionados e deslocados de suas regiões de origem, sendo forçados a trabalhar como escravos. As famílias foram dissolvidas e deslocadas do seu meio natural.
Eu tinha feito minha embarcação com meus tripulantes em busca de novos conhecimentos sobre a profundeza do oceano e de tudo o que nele existe, mas aqueles homens que ali haviam chegado não, eles desejavam enriquecer-se. Para isso precisavam expandir suas atividades comerciais e marítimas, quebrando o monopólio dos comerciantes e buscando contato direto com os fornecedores dos produtos de outros locais mais distantes. Sinceramente eu não conseguia entender como depois de tudo aquilo ainda estava vivo. Gilda continuava forte ao meu lado e se não fosse por ela, nem sei o que teria sido de mim nos momentos mais desesperadores.
Assim que as primeiras batalhas se realizaram, foi fincada uma cruz no centro donde julgavam terem conquistado. Padres e soldados andavam juntos e onde se levava à cruz, ia junto à espada. Em tal época já me sentia cansado, não estava velho, mas já era um homem com mais de quarenta anos. Os novos valores foram sendo impostos enquanto as festas, crenças e costumes das tribos eram naturalmente sendo destruídas. Pela nossa cor de pele clara, eu e Gilda não tivemos grandes problemas junto ao novo povoado que se formou.
Se antes tinha idéia em ensinar o amor ao povo indígena daquela raça tão distinta, agora imaginava eu o quanto de amor também faltava dentre os brancos. Verifiquei que o mundo por completo carecia de bons sentimentos. Não entendia o que eu estava fazendo junto a pessoas de tão mau coração. Era imenso o meu sofrimento por ver a existência de tantas mortes e conflitos. Aqueles invasores não deram nenhum direito aos habitantes locais, pelo contrario, tiraram-nos da terra em que vivíamos, destruíram a língua ali existente e os costumes praticados. Eles se julgavam superiores aos homens das tribos que ali moravam. Todos os homens do mundo devem ter direitos e deveres iguais e martirizava imensamente as coisas que meus olhos enxergavam.
Era incrível que tão poucos conseguissem compreender e enxergar que o modo de vida daqueles homens reunidos em tribos também merecia respeito na igualdade e liberdade como seres humanos. Revoltado, queria ficar do lado daqueles com quem aprendera a conviver e a gostar, queria estar do lado dos negros. Queria impor respeito por eles, lutar em busca de ajuda a libertação, mas nada que fizesse ia mudar de um momento para outro aquela realidade. Eram eles quem deveria lutar pela libertação. Não se podem corrigir os erros do passado, mas eu acreditava e tinha esperança de que pudesse auxiliar sempre tentando corrigir os erros e falhas daquele momento presente.
Outras expedições chegaram loucas para conhecer aquela terra que julgavam ser nova. Eles diziam que tinham descoberto-a e cada vez mais se interessavam em explorá-la. Aquele descobrimento teve nome de conquista e depois de invasão. Surgiram as colônias de exploração do trabalho escravo, voltadas para a produção destinada ao mercado externo. As outras colônias mantinham suas propriedades agrícolas que gerava o consumo interno das colônias. Com o suceder dos acontecimentos, descobriram metais que chamavam de “preciosos”. Outros recebiam nome de “ouro” ou “diamante”. A busca por tais metais se transformou numa procura incessante e infernal.
Como aqueles homens invasores e seus povos não tinham pagamento que fizesse jus à reserva das terras descobertas, tiveram-na de dividir e separar em partes para outros homens. Assim, cerca de trinta anos depois, estavam dividindo as terras, transferiam deste modo às despesas para pessoas particulares, aqueles que fossem os possuidores das terras. Já estava eu com mais de setenta e cinco anos nessa altura dos fatos.
Deixando de lado um pouco dos acontecimentos pessoais da minha vida com Gilda, irei escrever neste momento apenas o contesto da época em que vivíamos. Continuando o que contava, o regulamento era feito de dois tipos, um com carta foral donde o comprador recebia a posse da terra e a outra era a carta de doação donde o comprador não tinha posse, mas poderia usufruir a terra com direito de proprietário. Ao tempo que distribuíam as terras, criavam vilas exercendo autoridade total e autorizando pena de morte para os que descumprissem. Os homens das antigas tribos eram torturados e massacrados também sendo muitos deles enviados para outros locais, sendo levados pelas embarcações. Esses eram os direitos que o rei comandante reservava para si e seu povo. Era ele quem ganhava a exclusividade de exploração e usufruía a maior parte dos lucros.
Diziam em montar um governo geral em decorrência do resultado negativo gerado pelas divisões de terra que não geraram o lucro desejado. Esse governo seria dividido também. A função era centralizar poder político na Colônia. Não acreditava que depois de tanto sofrer, atacar e fugir, eu estava completando meus noventa e sete anos. Foi nessa época que perdi minha companheira de longa jornada, Gilda morreu de velhice como acredito. Eu também ia morrer, estava velho e muito acabado. O tempo e a historia continuariam, mas eu apenas ia continuar em espírito.
Minha vida com Gilda foi a melhor que poderia ter. Tivemos uma menina chamada Madalena, mas ela nos foi tirada ainda muito jovem, levaram-na sabe Deus para onde. Assim não tivemos mais filhos, mas vivemos durante muito tempo trabalhando na dedicação as crianças que eram levadas aos colégios chamados de internatos.
Certa vez, com a graça dos céus, nós recebemos uma menina que acabara de completar quatro anos. Chamava-se Marta Madalena e foi com muito orgulho que percebemos se tratar de nossa neta. Ela foi levada por um mensageiro e este disse que sua mãe havia morrido no parto e fora à própria avó quem mandara levar a criança para aquele internato, uma vez que esta já estava muito velha e não tinha condições físicas de cuidar da menina por mais muito tempo. Pensamos em ir falar com a suposta avó “adotiva” de nossa neta e descobrir porque nossa filha nos fora retirada ainda tão pequena, mas depois deixamos a idéia de lado importando-nos apenas em cuidar de nossa neta e dar a ela todo o amor do mundo, deixando que a justiça divina se encarregasse do resto. Marta Madalena nunca ficou sabendo que nós éramos seus avós verdadeiros. Embora mantivéssemos um carinho e amor muito especial para com ela, tratávamos todas as crianças com muito afeto e de tal modo, ela nunca desconfiou de nada.
Resolvemos trabalharmos sempre juntos e não nos separávamos por nada, tivemos a honra e sorte bendita dos céus de estarmos sempre um ao lado do outro, nos apoiando mutuamente. Como não éramos considerados instruídos, tínhamos tarefas menos dignas dentre eles. Eu cuidava dos jardins, cortava lenha, roçava o campo donde cultivavam o consumo da própria alimentação. Gilda cozinhava, lavava e ajudava secretamente nos quilombos. Tínhamos uma visão diferente de tudo o que acontecia e chorávamos por piedade de muitos daqueles sofredores. Mas não podíamos fazer muito por eles a não ser rezar.
Hoje estou escrevendo essas minhas ultimas frases, estarei escondendo o papiro que dou nome de livro e algumas das escritas de pergaminhos que Gilda quis escrever também. Deixarei a minha vida registrada juntamente com o momento histórico no qual vivi. Faço isso pelo fato de não ter nenhum filho para continuar escrevendo nas folhas seguintes. Nem mesmo a minha neta eu poderei entregar, pois como disse, ela de nada ficou sabendo.
Quem ler este livro, terá como missão e sorte encontrar na vida um motivo de paz, o qual me custou tanto a ter. Ter paz e semear o amor é a tarefa mais difícil e complicada que existe, mas qualquer um pode ser capaz se acreditar que esses dois elementos movem o mundo. Pensava que o mundo fosse movido pelo ódio, a revolta, o egoísmo e as vinganças dos homens, mas depois descobri que não, isso não é permitido pela justiça de Deus. Nesse mundo, quem não vive pelo amor, simplesmente não vive, sofre. Se cada homem pudesse compreender o valor do respeito de uns perante os outros, o mundo seria mais produtivo, mais unido e feliz. Lutei com todas as minhas forças, fiz o que pude, mas ao mesmo tempo sinto que nada fiz. Eu me sinto como sendo apenas mais grão de areia daquela imensidão do deserto seco e árido. Porém ao mesmo tempo, tenho comigo que se não fosse por cada grão de areia, não existiriam as dunas.
Posso não ter mudado o mundo, mas aprendi que a mudança dele começa em mim mesmo. Quem não cultiva o respeito não é digno dele. Quem não ama, não merece ser amado. Pense nisso e seja alguém melhor, assim como eu tentei ser. Por mais que tudo pareça dar errado, lute contra si próprio para vencer o mal que existe em seu ser. Eu nunca fui perfeito, mas cresci a partir do momento que aprendi a conviver com os outros e a tentar compreendê-los. Sofri imensamente, mas sinto que tudo valeu a pena e obtive minhas vitórias. A felicidade não é um sentimento constante na vida de ninguém e nem poderá ser. A vida é feita de momentos que devem ser vividos um após o outro. Quem cultiva o amor, enobrece a alma”.
Carol terminou a leitura verificando aquela letra da qual custara traduzir. Poucas frases ocupavam uma folha inteira.
“Pelos meus estudos, esta ilha deve se tratar da própria América Central. Será?” – questionou ela a si mesma em pensamento. - “Segundo o que sei, os primeiros habitantes do Brasil, por exemplo, chegaram há milhares de anos, mas não escreveram diários narrando suas aventuras, creio que eram sinais, rastros de sua chegada e de seus deslocamentos, mas não espécies de diários como o desse livro. Tais sinais para mim eram pistas e são estas mesmas que os arqueólogos tiveram como rastros de vestígio para construir explicações cientificas valiosas. Esse livro é algo muito incrível”.
Carol permanecia pensativa folheado todo o material enquanto aproveitava para retirar a poeira e algumas sujeitas pregadas, também tendo o cuidado de desamassar as folhas menos duras.
“Segundo o que entendo, os primeiros homens surgiram da África. Deles se originaram os grupos que vieram para a América. Os relatos históricos descrevem que da África, os grupos humanos se espalharam primeiro pela Europa e pela Ásia, em busca de vegetais para coletar e de animais para caçar. Quando era criança ficava sempre me indagando como tais homens teria chegado a América se o mar separava os continentes. Depois estudei sobre a teoria que afirma a passagem da Ásia para a América através do Estreito de Bering, navegando. Chegando aqui, depois de centenas de anos, os homens primitivos se espalharam aos poucos de norte a sul e deram origem as suas comunidades com hábitos e técnicas próprias. A natureza era farta e variada, além do que, desenvolveram a própria pratica da agricultura” – pensava Carol.
Não contava no relato nada sobre o habito de furar a orelha e o lábio inferior para encaixarem rodelas de madeira, nem dos botoques. Por certo não eram dos que acreditavam que tais instrumentos poderiam proporcionar audição e fala melhor, assim como não deveriam ser dos botocudos que falavam as línguas dos animais.
“Bem, tem coisas nessa historia que parecem não fazer sentido. Será que esse relato foi vivenciado ou alguém simplesmente o escreveu como imaginador do caso. Pelo visto, vejo que o povo dessa historia não eram nômades. Também não fala se as cabanas eram das mesmas que sempre imaginei, com folhas de palmeira enfiadas no chão, tendo dentro delas camas de estrado de madeira cobertas com cascas de arvore. Também percebi que respeitavam muito aos mortos e entendiam que a alma não morre com os homens, era essa a crença que faziam com que tivessem a constante preocupação de enfeitar o lugar donde enterravam os mortos e também de cuidar deles” – continuava Carol em suas indagações.
Indo até a cafeteira, Carol preparou um forte café e misturando com leite tomou alguns goles ainda permanecendo entretida em seus pensamentos.
“As historias de seu povo e suas tradições também me parecem que eram importantes para todos eles. Tudo era passado de pai para filho, de uma geração para a outra... Quando criança tinha uma flauta de taquara, nunca consegui-la tocar muito bem... Aqui também não deixa claro se eles formavam a aldeia em forma de circulo. Outra coisa que parece desconcertada é que, pelo que sei, tais povos não necessitavam de chefes, pois confiavam nos próprios líderes. Estes sabiam de suas obrigações e as cumpriam com seriedade. Porque nomeariam exatamente um estranho para ser chefe? Tais explicações não me foram convincentes, mas não quero ficar duvidando de tudo o que li, pode ser que minha tradução não tenha ficado tão perfeita, além do mais, estou convicta de que julguei muitas partes da leitura conforme o contesto que sentia, não sei se isso interferiu no relato escrito. Pelos meus conhecimentos, na cultura deles, a guerra era uma atividade sagrada. Nem todos podiam participar, tudo dependia da idade, sexo e aptidões físicas de cada um. A atividade da guerra era entendida como enobrecedora e justa ensinando os valores da justiça, dos direitos individuais, da coragem e da liderança. Aqui deixou claro que ela só podia ser praticada com a aprovação unânime e do chefe do grupo. Uniam suas forças na guerra para vencer e atacar os inimigos” – concluiu ela por fim voltando-se a leitura que acabara de fazer.
Carol observou as paginas do manuscrito mais uma vez, uma por uma. Estava encantada e não sabia o que pensar, muito menos tinha como comprovar a autenticidade daquele material.
“Em 1.500, conforme temos nos livros de Historia, chegaram ao Brasil homens brancos que vinham da Europa, eram os portugueses. Mas então já existiam alguns brancos na região? Poderia realmente estes dados serem do país Brasil? Para mim, a maneira dos índios viverem não significa que eram atrasados, apenas demonstra claramente que eles não sentiam necessidade de transformar seu modo de vida. As condições naturais de vida deles no país eram suficientes para a sobrevivência e não tinham porque mudar isso. Já os europeus não pensavam assim e foi por tal motivo que julgaram os índios como povos atrasados” – Carol concluía mais uma vez.
Aquele relato tinha lhe envolvido de uma maneira profunda. No fundo, sentia-se incomodada. Porque justamente ela tinha descoberto aquele tão velho manuscrito? Tal motivo seria desvendado, mas antes disso, muitas coisas violentas ocorreriam.

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