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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Capítulo 9 – Perseguida pelo terror

Manoel retornara ao seu trabalho de policial e estava feliz por saber que tudo voltara ao normal mais rápido do que ele poderia ter suposto. Chegando em seu lar, após mais um dia cansativo, Manoel sentiu o cheiro agradável vindo da cozinha. Em busca de Carol, com um ramalhete de flores nas mãos, ele foi direto para a cozinha.
___ Tomei a liberdade de mexer nas suas panelas, estava com saudade de cozinhar.
___ Não deve ficar muito tempo em pé, sabe disso – alertou Manoel.
___ Sei sim, mas e esse arranjo? – interessou-se Carol ao vê-lo com tão belas e coloridas flores.
___ Trouxe para a vizinha.
___ É aniversário dela ou isso é alguma piada? Não entendi, pensei que fossem para mim.
___ É lógico que são para você – sorriu ele.
___ Ah, bom – riu Carol aproximando-se de Manoel após enxugar as mãos num pano de prato.
___ Você tem uma mania de fazer perguntas esquisitas.
___ E você tem uma mania de ficar fazendo piadinha – comentou Carol ainda entre risos recebendo as flores da mão de Manoel.
___ Mas tem uma coisa – disse Manoel antes de soltar o arranjo de flores.
___ O que?
___ Essas flores devem valer por um beijo.
___ Nada disso.
___ Então vou dá-las realmente para a vizinha.
___ Vai ficar sem meu beijo de todo jeito – brincou Carol sem se importar.
___ Está bem – conformou-se Manoel. – Não se esqueceu da promessa que me fez, ou esqueceu?
___ Não, mas primeiro tenho que me acostumar com a idéia.
___ Como assim?
___ A idéia de lhe namorar.
___ Você sempre foi tão complicada assim?
___ Não, é a primeira vez que encontro um parceiro como você.
___ O que quer dizer com isso?
___ Se você não entendeu, não serei eu a lhe explicar – replicou Carol suavemente aproximando seus lábios bem próximos aos de Manoel.
Olhando entre os olhos e a boca de Manoel, Carol fez que ia beijá-lo e quando percebeu que ele fechara seus olhos, observou aquele rosto tão próximo ao seu. Resistindo a uma vontade que saia do seu mais profundo intimo, Carol virou-se e retornou para junto do fogão.
___ É melhor terminar de fazer a comida – disse Carol notando que Manoel continuava na mesma posição como se ainda esperasse pelo seu beijo. – Pensou que fosse beijá-lo? – ela desdenhou.
Manoel riu sem graça e saiu da cozinha sem nada dizer. Depois de tomar banho e colocar uma roupa mais confortável, Manoel sentou-se à mesa esperando que Carol lhe servisse o jantar.
___ Vai ficar aí sentado? Não sou sua cozinheira e nem sua escrava, viu? – reclamou Carol. – Pode tratar de vir me ajudar.
___ Estou triste contigo.
___ Duvido. Ta querendo me pirraçar.
___ Você se acha esperta o bastante para ficar fazendo o que fez comigo, não é?
___ Estou apenas lhe ensinando a ser mais calmo e paciente.
___ Está é querendo me deixar doido com essas suas insinuações e esse seu jeito sedutor de quem não quer nada além de destruir meu coração – reclamou Manoel se levantando e indo até o armário pegar os pratos.
___ Não quero lhe deixar doido – confortou-lhe Carol colocando-se em sua frente e retirando os pratos de suas mãos.
Após colocar os pratos na mesa, Carol virou-se para Manoel que continuava olhando-a na mesma posição.
___ Muito menos destruir seu coração – completou Carol virando-se novamente para Manoel.
Num clima muito romântico, Carol abraçou Manoel carinhosamente e sem entender o porque, deixou um pranto sofrido lhe tomar conta.
___ O que foi? – perguntou Manoel ao constatar que ela estava chorando.
___ Não sei, me sinto tão estranha quando o abraço.
___ Queria que você sentisse a mesma felicidade que eu.
___ Eu sinto, mas não consigo identificar o que existe além do sentimento de felicidade. Parece que é uma dor no peito, algo realmente profundo e sem explicação.
___ Deixe eu lhe fazer feliz, lhe envolver com meus carinhos – pediu Manoel colocando toda sua sinceridade em seu olhar.
___ Como eu queria poder me entregar a esse seu sentimento de carinho e paixão, mas não sei o que se passa comigo, me sinto tão confusa – soluçou Carol na mais profunda dúbia de seus sentimentos.
___ Pois eu lhe mostraria o tom mais melódico das orquestras, o cheiro mais confortante das auroras matinais, lhe faria sentir a mais feliz das mulheres, exatamente por te fazer ter a certeza de que sou o melhor homem que poderia ter ao seu lado, aquele que mais vai lhe amar e lhe ser fiel em todo o mundo.
___ Deu para ser poeta agora? – riu Carol misturando seu sorriso com as lágrimas.
___ Darei para ser o que tu quiseres – brincou Manoel.
___ Pois está parecendo um bobo – tornou a rir Carol continuando a brincadeira.
___ Que seja.
___ Quando foi que terminou seu ultimo namoro?
___ Pouco depois que entrei de sociedade como cúmplice daqueles pintores.
___ E o que ocasionou o fim do seu namoro? Não vai me dizer que fui eu?
___ Não, para ser verdadeiro, naquela época jamais imaginava que fosse me apaixonar assim por ti.
___ E então?
___ É que ela descobriu tudo sobre a minha coleção de calcinhas.
___ O que? – espantou-se Carol.
___ Vou lhe dizer toda a verdade, o que nunca contei a nenhuma das minhas namoradas.
___ Pois então diga.
___ Quando jovem inventei de comprar um monte de calcinhas e falar para meus amigos que cada calcinha era de uma ex-namorada.
___ Pra que falar isso?
___ Ora, para dar a entender que eu já namorara muitas jovens e...
___ Entendi, não precisa explicar mais nada – riu Carol.
___ Depois realmente comecei a pegar escondida a calcinha das mulheres com quem namorava e me dei mal. Foi uma confusão tão grande que nem quero que fique sabendo. E o pior de tudo foi ver aqueles pintores rindo de mim ao ver toda a cena.
___ Quer dizer que é um mulherengo?
___ Não é bem assim – disfarçou Manoel. – Eu garanto que era bastante, até ter conhecido você. Entenda que ficava com as mulheres apenas pelo prazer que elas me forneciam além da companhia de suas belezas. Mas contigo é muito diferente – falou Manoel com seriedade.
___ Tem certeza?
___ Sim, e não preciso lhe explicar porque, tenho certeza que sabe do que estou falando.
___ Está tentando me dizer que se apaixonou por mim, o que nunca lhe havia acontecido antes.
___ Exatamente. Meu coração nunca teve nenhuma dona antes de você. Hoje ele já não me pertence mais, é todo seu.
___ Pois eu já tinha entregado meu coração a Joaquim e isso dificulta bastante...
___ Não diga mais nada, vamos apenas esquecer o passado e tentar viver o presente – interrompeu Manoel enquanto se virava para pegar os talheres.
___ Estou desde muito pensando carinhosamente nessa idéia. Mas por vezes o passado parece falar mais forte do que o , o real momento no qual estou vivendo.
___ Eu a entendo e compreendo os seus sentimentos. Estou disposto a respeitar qualquer que seja sua reação ou decisão, mesmo que isso vá de fato destruir meu coração.
___ Suas rimas me comovem, fala tão bonito que representa bem um galanteador.
___ E olha que nunca fui bom para declamar poesias, embora seja um amante de todas elas.
___ Tem algo em sua personalidade que me atrai muito. Você também é um sedutor.
___ Pois sedução não funciona no campo do amor.
___ Como assim?
___ Sedução é para conquistas e paixões passageiras. Para o amor precisamos cativar com inúmeras dozes de carisma e ternura. Posso saber ser um bom sedutor, mas jamais funcionará para conquistar o vosso amor.
___ Não sabia que conseguia formular versos assim.
___ Nem mesmo eu sabia do meu dom de cortejar uma mulher sem fazer dela apenas um objeto sexual como fazia das que facilmente vinham até mim – Manoel disse sentando-se a mesa e servindo-se primeiramente da salada.
___ Tem certeza de que não serei apenas mais uma a lhe fornecer uma calcinha? – perguntou Carol em tom de brincadeira.
___ Sabe que não, tão bem quanto os pássaros gorjeiam e cantam, como brilha o céu em noite estrelada e como cai chuva das nuvens em momentos de tempestades. Você vai conhecer o que nenhuma outra mulher conheceu.
___ Diga. O que vou conhecer?
___ Vai conhecer meu lado afetivo. Para ser verdadeiro, não imaginava que um dia fosse ser capaz de amar uma pessoa, fosse ela quem fosse.
___ Isso se dá pelo fato de ter recebido pouco carinho em sua infância. Quem nunca foi amado dificilmente sabe amar.
___ Sim, acho que é exatamente isso. Foi você quem desenvolveu em mim essa questão dos sentimentos, do perdão, da união e do amor. Aprendi tantas coisas contigo em tão pouco tempo! – disse Manoel pensativo enquanto levava mais uma garfada na boca.
___ Fico feliz em saber disso, também não tenho do que reclamar. Tudo teve um porque de acontecer e cada acontecimento teve um eqüitativo valor com preciosa carga de aprendizado.
___ É – confirmou Manoel concordando.
___ Como foi seu dia hoje? – perguntou Carol mudando de assunto enquanto comia calmamente.
___ Fui examinar o Túnel do Ramal Leste. Ele ficou sem luz o dia todo. As lâmpadas de mercúrio não deram sinal de vida, o lugar escureceu e o trânsito, que já costumava ser ruim, piorou. Há cinco dias atrás a situação era a mesma.
___ Mas o que você tem a ver com as quedas de energias ou falhas elétricas?
___ Acontece que o caso é mais grave. A falta de luz é conseqüência de um crime inusitado: quadrilhas estão se especializando em roubar os fios de cobre da rede pública. No mês passado foram roubados cerca de cinco quilômetros de cabos. O cobre é vendido para ferros-velhos, que pagam pelo quilo descascado. Como o preço é baixo, a metragem retirada precisa ser alta. Quando o circuito é interrompido, funcionam apenas as lâmpadas antes da área obstruída. Isso significa que avenidas inteiras podem ficar no breu.
___ Mas como conseguem fazer isso?
___ Parte das gatunagens acontece ao amanhecer, quando a corrente elétrica não está ativa ou à noite com uma boa luva de proteção e alicate isolante. Como o processo pode levar horas, os bandos costumam usar disfarces. Os alvos preferidos são os cabos colocados em ramais subterrâneos, que ficam embaixo das calçadas. Tais cabos podem ser retirados com menos trabalho e maior discrição que aqueles que ficam no alto dos postes. Outro tipo de crime que estamos verificando é a respeito dos coladores de cartazes que sujam os muros da cidade. O serviço é feito também durante as madrugadas, antes mesmo do amanhecer. O grupo de coladores age com tanta tranqüilidade que não parecem estar cometendo um crime. De acordo com a lei ambiental, a pena para quem conspurcar qualquer edificação é detenção de três meses a um ano além de receber multa.
___ Pois eu acho mais revoltante a pichação do que os cartazes.
___ Sim, também é crime do mesmo modo. Quem comete pode e deve ser punido. Tolerar que marginais conspurquem a cidade é aceitar a idéia de que a própria cidade se torne um verdadeiro lixo. Uma cidade suja e descuidada confere a impressão de que se habita o caos. Por isso é preciso cumprir a lei e punir.
___ É verdade que a prefeitura, há uns tempos atrás enfiou os pés pelas mãos fazendo as vítimas pagarem pelo delito? – perguntou Carol.
___ Sim, é bem verdade. Deram o prazo de duas semanas para que os proprietários pintassem suas fachadas, depois de notificados pela administração regional. Caso contrário receberiam a multa em casa mesmo. Não adiantou de nada. Quem pintou gastou dinheiro à toa, servindo apenas para limpar a parede aos pichadores que retornaram e fizeram novamente o mesmo serviço sujo. Já foram postos mais de sessenta policiais rondando a cidade, é a única maneira de garantir que os monumentos permaneçam limpos. Depois que a prefeitura verificou a besteira que fizera em mandar os donos dos imóveis pintarem as paredes, sem tratar de prender os responsáveis pela pichação, os resultados apareceram com as novas iniciativas formuladas por um grupo de urbanistas, promotores, delegados e técnicos da própria prefeitura. O vandalismo deve ser combatido com a consciência de cidadania. Estarão sendo programadas algumas oficinas culturais gratuitas, com cursos de pintura e de historia da arte. Isso provavelmente ocorrerá no espaço central, onde os pichadores costumam se reunir.
___ Como arquiteta e decoradora posso afirmar que esses vândalos precisam ter consciência realmente do prejuízo que causam e da importância que tem os monumentos para o patrimônio histórico e cultural da cidade.
___ Aos que são menores de idade e não podem ser levados presos, pagamos uma quantia justa para que limpem donde sujaram. É uma iniciativa que pode dar certo. As quadrilhas são formadas na sua maioria por menores que sabem do fato de não poderem ficar presos.
___ Me diz uma coisa, como são treinados para agir em caso de reféns?
___ Os policiais especializados em lidar com as situações em que há reféns são treinados para seguir três regras básicas: isolar completamente o local em torno da área do crime, em seguida negociar até o ultimo momento e por fim, ter preparado um plano minucioso de ataque.
___ Interessante.
___ Me conte um pouco sobre seu pai Luiz. Como é ser filha de um ilustre ator tão famoso como ele era?
___ Bem, é legal e não é. Posso dizer que como filha sempre estive sabendo das suas intimidades e manias. Sei de muitas coisas que meu pai não quis ou talvez simplesmente esqueceu-se de revelar em sua biografia.
___ Ah, isso me interessou, não pode me contar?
___ O que quer saber?
___ É verdade que pessoas da mídia e celebridades como era seu pai só vivem para festas?
___ Que pergunta, lógico que não. Conhecemos o pendor que uma celebridade tem para a agitação da vida noturna, mas nem sempre é só o genuíno espírito festivo que as fazem aceitar convites. Dependendo do evento, uma celebridade pode cobrar cachê altíssimo para apenas dar o valor da graça e presença.
___ Puxa vida, quem me dera!
___ Meu pai era um dos que recebia bem para aparecer em inaugurações, lançamentos de produtos e entregas de prêmios. O preço da presença, logicamente varia de acordo com a fama. Seja qual for à posição na tabela, enchem de convites aos famosos. Meu pai tinha de selecionar, porque aparecia convite de tudo quanto era lugar. Uma vez ele foi chamado para falar o numero das pedras na inauguração de uma casa de bingos e jogos, além de ter de puxar cavalos em leilão de animação. Os compromissos interestaduais costumavam sair mais caros para os patrocinadores, que também tinham de bancar as mordomias dos convidados de aluguel. Era assim que acontecia com meu pai, além do cachê tinha a melhor hospedagem, transporte, refeições e acompanhante, tudo por conta. Para virar assunto, os profissionais da badalação estimam que a cota de nomes famosos precisa ser de, pelo menos, três por cento dos presentes, esse é o mínimo fotografáveis que se exige.
___ O livro que seu pai escreveu nem parece relatar sobre si próprio. Creio que ele foi muito humilde. Em minha opinião, quem lê aquele livro jamais poderá ter noção de quem realmente ele foi, da fama que teve e tudo o mais.
___ Sim, como disse, muitas coisas ele deixou de escrever para não relatar detalhadamente sobre a sua vida profissional. Creio que ele se empenhou mais em reviver nas entrelinhas o seu caso de amor com minha mãe.
___ É interessante ver você contar sobre seu pai, eu gostaria de poder fazer o mesmo. Fale-me mais.
___ Meu pai era bonito, mas também não era nenhum astro de magnitude da industria cinematográfica. Chegou a ser um dos ídolos mais populares do cinema, principalmente para o público feminino. Ele nada ficava devendo aos profissionais mais experientes.
___ Nunca quis ser atriz também?
___ Poderia ser com facilidade se assim quisesse, mas preferi uma vida mais tranqüila, se é que estou tendo – brincou Carol. – Tem coisas que não gostava na imagem cristalizada que faziam do meu pai. Quando ele fazia papel de vilão, o proibiam de fazer posteriormente um papel de mocinho. Se fizesse o papel de personagem sofredor, nunca mais poderia exercer ou interpretar a de um homem fatal. As exceções só confirmam a regra. Os estúdios dos quais os artistas como meu pai atuavam eram rigorosos quanto a isso. Não sei se gostaria da pressão psicológica de ser famosa e ter tanto dinheiro.
___ Mas mesmo com sua vida normal e sem nenhuma fama, possui muito mais financeiramente falando do que o seu pai.
___ Bem, esse assunto é delicado. Dinheiro nunca me faltou, mas felicidade sim. Como dizia – continuou Carol retornando ao assunto ao mesmo tempo em que mudava o rumo daquela resposta. – Quando um diretor oferecia a meu pai um personagem mais importante do que o previsto, ele aceitava o desafio sem titubear. Para ele a experiência só poderia ser adquirida com a coragem de passar por fatos inéditos e surpreendentes. Se ele não tivesse capacidade para se desenvolver em sua carreira, poderia tomar o caminho da rua, era como ele pensava.
___ Acho que estava certo.
___ Além do mais ele era um produtor exigentíssimo que arregaçava as mangas para se envolver em todos os aspectos do projeto no qual estava engajado. Era exigente consigo mesmo e com o trabalho que exercia. Dizia que o tempo de fazer algo mal feito é o mesmo de o fazer com o máximo possível de perfeição e assim se empenhava o quanto podia. Desde o início de sua carreira, aprendeu a negociar seus cachês e também a cuidar da própria vida e imagem. Ele ficava chocado quando alguém dizia que o cachê era o seu atrativo na profissão. Isso nunca foi verdade e ele sempre contestava dizendo que nunca trabalhara por dinheiro.
___ Gostaria de saber como foi que ele começou a ter crises de ciúme de sua mãe. No principio pensei que fossem boatos de pessoas invejosas, mas realmente foi algo que aconteceu, confirma?
___ Sim, nesses detalhes meu pai foi mais preciso em seu livro. Não posso muito comentar sobre isso, pois no período em que realmente houve as crises de ciúme eu ainda nem era nascida. Mas confirmo sim que meu pai Luiz era bem ciumento.
___ Lamento por você ter perdido sua mãe sem nem ao menos desfrutar do amor materno que com certeza ela lhe teria dado, provavelmente até os dias de hoje se ainda estivesse viva.
___ Sim – confirmou Carol baixando o olhar para o prato.
___ Mas voltemos ao assunto, fale-me sobre esse tema, ciúme. O que pensa a respeito?
___ Os casos são variados, mas o principal eu creio que continua sendo o mesmo: marido apaixonado desconfia que a mulher, linda e simpática com todos o traia com seu melhor amigo. A mulher por sua vez é honesta, o amigo é sincero, mas o marido só enxerga a sua volta indícios da traição inexistente. Por fim, transtornado, o marido mata a esposa e depois se suicida. A tragédia no seu cruel desenrolar é a velha história descrita magistralmente por William Shakespeare, no século XVII, no texto em que Otelo, o general mouro, mata a amada Desdêmona. Antes e depois dele, homens e mulheres mataram e continuam matando pelo mesmo motivo, o ciúme, um sentimento que é insano, totalmente paranóico, doente, insuportável para quem sente e doido, perigoso para quem é alvo dele.
___ Sua mãe não tinha ciúme de seu pai?
___ Nada posso falar sobre minha mãe, pois não convivi com ela, mas logicamente deveria ter. Por certo meu pai saia de casa todo cheiroso, arrumado e ia para suas gravações, fazendo personagens junto a outras mulheres ainda mais belas que minha mãe. A questão é que o ciúme não pode se transformar numa neurose como aconteceu com meu pai. Uma relação na qual se desconfia de tudo o tempo todo não sobrevive.
___ Mas também se deve ficar em alerta quando já não há nenhuma sombra de ciúme entre namorados ou cônjuges. Isso pode indicar que a relação está se diluindo aos poucos, não acha?
___ Sim, o ciúme é um sentimento bom como protetor do compromisso, do vínculo e da família. O que combato são os excessos. Para mim, a devastação causada pelo ciúme e pela rejeição é um dos sentimentos mais terríveis experimentados pela alma humana.
___ Você acha que homens sentem mais ciúmes do que as mulheres?
___ Nem sempre – respondeu Carol. Geralmente os homens se irritam mais quando imaginam sua mulher fazendo sexo com outro homem, já a mulher fica perturbada quando imagina seu parceiro se envolvendo emocionalmente com outra.
___ Acha mesmo que o ciúme dos homens é mais ligado ao sexo enquanto o das mulheres ao afeto?
___ Exatamente. Homens e mulheres costumam encarar do modo diferente uma relação extraconjugal. O marido tende a considerar a própria infidelidade como apenas sexo e sofre calafrios com a idéia de que a mulher irá apaixonar-se por outro se encontrar maior prazer na cama fora de casa. A tolerância feminina com a infidelidade é mais elástica que a masculina. A maioria das pessoas acha natural que a mulher traída perdoe e mantenha o casamento. Já o homem é mais competitivo e intolerante. Além de perder a mulher, teme perder o status, a posse e até mesmo a honra. Para mim, os machões com comichão no dedo do gatilho deveriam pensar e meditar sobre o que dizia o pai da psicanálise, Sigmund Freud, a respeito disso. Freud acreditava que o ciúme decorre, sobretudo, do impulso homossexual. Disse com todas as letras que o homem projeta na mulher o seu desejo pela figura masculina. Traduzindo, ele quis dizer que o homem não sente propriamente ciúmes, mas inveja de não estar no lugar de sua esposa com o outro sujeito.
___ Mas isso é um absurdo! – comentou Manoel.
___ Também penso o mesmo, mas cada caso é um caso. Outra razão para o ciúme é a pouca confiança em si próprio. Diz-se que o primeiro tipo de ciúme ocorre quando a criança tem ciúme da própria mãe com o pai e depois com relação aos irmãos. Já observou que todos os ciumentos se parecem? O que muda é a forma com dão vazão a sua ira e angustia. O que mais espanta é o clamor por vingança, que às vezes se torna à única razão de viver do ciumento. Dizem os livros, nada afirmo ser verdade ou não, que quando Felipe II, pai de Alexandre o Grande, morreu assassinado por um amante desprezado, sua viúva Olímpias, queimou viva a mais jovem e querida concubina do marido.
___ Que horror!
___ Quando estudei história, também me fascinei com isso. Os relatos dizem que Felipe era bissexual, o que era comum na aristocracia grega naquela época.
___ Já que estamos falando nisso, quero que seja sincera. Na sua opinião, como deveria ser um marido ideal?
___ Primeiramente teria de ser homem antes de marido, mas isso não significa que seja um sujeito incapaz de controlar sua potencia sexual. Sou do tipo de mulher que procura um homem para a vida toda. Portanto, quero que ele seja generoso, tenha um bom caráter e uma boa situação profissional. Para mim, nem sempre a harmonia sexual é prioridade num relacionamento.
___ Você não acha que é uma visão estereotipada pensar que tudo o que os homens buscam em um relacionamento é sexo?
___ Pois se não é assim, pelo menos é o que parece. Vocês homens não sabem o que nós mulheres queremos verdadeiramente num relacionamento. Para mim, é importante que os homens manifestem seu interesse pelas mulheres e principalmente a esposa, quando já são casados, mas que não seja apenas sexual. Sexo é divertido, mas não pode ser o único componente do desejo.
___ Para mim, isso é feminismo e vem de mulheres que são mal-amadas – Manoel disse como numa indireta.
___ Para os homens é bastante cômodo pensar assim. Posso imaginar a ridícula cena de um grupo de homens sentados num bar, bebendo cerveja e dizendo que quando uma mulher não arruma um namorado fica contra os homens, mas eu creio que não é bem assim. O feminismo não é uma ameaça a todos os homens, mas sim, apenas àqueles cuja potencia se resume exclusivamente ao sexo.
___ Acha que conseguiria ser feliz passando a vida toda solteira?
___ Talvez, porque não? Se não encontrar um homem com que eu tenha empatia, talvez seja melhor mesmo ficar sozinha, confortável em casa, sem ter de dividir minha cama com ninguém.
___ Egoísta - brincou Manoel. – Não tem medo de ficar sozinha na velhice?
___ Não. Quando ficar mais velha vou dizer ser ainda mais velha para as pessoas me acharem conservada. O segredo é não desistir nunca, pois o medo de ficar sozinha independe da idade.
___ Pois para mim a vida seria um tédio se homens e mulheres tivessem os mesmos tipos de desejos e compulsões para o sexo.
___ De fato eu concordo. Para mim, os homens não entendem as mulheres enquanto estas entendem os homens.
___ Como assim?
___ Se uma mulher diz não na cama, seu parceiro se ofende. Não conseguem entender que não se trata de uma recusa. Assim o homem sai à cata de uma explicação, acha que está sendo traído e pensa que não é mais desejado. Ao contrario, quando uma mulher recebe uma negativa ela é capaz de perceber que o marido pode estar exausto.
___ Quer dizer que homens são inseguros e temerosos?
___ Sim, diria ao certo que são incompreensíveis. Para não criar confusão, muitas mulheres preferem fazer sexo, mesmo sem vontade. É a única maneira de dar a entender ao esposo de que ele ainda tem algum valor para elas. Mas digo isso não em geral, é apenas minha opinião e sei que não sou dona da verdade. Espero que as coisas possam mudar e que os homens melhorem neste aspecto.
___ Legal saber sua opinião, vejo que é realmente uma pessoa bastante sincera e fala abertamente do assunto.
___ O número de homens que se envolvem sem compromisso é grande, mas diferentemente de antes, as mulheres deixaram de se limitar à fantasia e também vão para a cama por prazer, sem nenhum compromisso. Eu particularmente ainda não aceito isso. A busca do prazer é uma atitude humana, mas não sou de ter relações sexuais sem nenhum compromisso, alias tenho a velha visão de achar isso muito negativo. Muitas pessoas se desapontam quando se relacionam achando que o sexo é a primeira maneira de estabelecer um compromisso sério. Não acho que sexo casual faça bem ao ego ou dê alto-estima a ninguém. Acho errado que sejam enormes as possibilidades de encontrar na cama um parceiro que só queira diversão. Além disso, existe o risco de conseqüências danosas que sabemos bem quais são, como uma gravidez indesejada e as doenças. Não sou moralista, mas acho realmente que o sexo é melhor quando as pessoas se conhecem, se amam, estabelecem vínculos e planos para o futuro, estando dispostas a ficarem juntas.
___ Pois eu também penso o mesmo.
___ Desde quando?
___ Juro que desde agora.
Carol riu com espontaneidade enquanto colocava seu prato sujo na pia.
___ É verdade – confirmou Manoel também retirando seu prato da mesa.
___ Para mim, pessoas que gostam de sexo casual têm necessidade de dar vazão a um impulso. No caso dos homens é ainda pior, pode ser por causa de status ou poder perante os amigos. É por isso que continuo dizendo que quem casa ou se une a alguém apenas por sexo acaba se dando mal. Um romance envolve outros sentimentos como afeição, confiança, comprometimento e o mais significativo, amor de ambos. Na realidade, creio que as mulheres que aderem à prática do sexo casual têm esperanças de que depois o parceiro as queira num relacionamento mais duradouro. Não falo de um casamento, mas pelo menos algo um pouco mais consistente. Já os homens, como disse, fazem isso para demonstrarem que são machos. Hoje em dia, são poucos os homens que buscam um relacionamento sério e duradouro em um primeiro encontro. Aposto que já saiu varias vezes com uma única mulher, inclusive tendo relação sexual com ela e nem por isso a assumiu como namorada.
___ Como sabe?
___ Pensa que não entendo de homens como você? – riu Carol pegando a sobremesa na geladeira e se servindo.
___ Como pode saber disso? – perguntou Manoel curioso se servindo também.
___ Pois lhe garanto que odeio essa atitude. Sabe o que mais me irrita? O que mais conta nesses casos é simplesmente a aparência física. É o primordial já que não existe compromisso. Como policial, tendo um corpo assim tão bem delineado, de aparência bonita e saudável, imagino que mulheres nunca lhe faltaram.
___ Não nego isso – disse Manoel com cara safada.
___ Aposto que nunca saiu com nenhuma de suas colegas de trabalho, ou já aceitou o convite de alguma daquelas policiais?
___ Não, mas porque aposta nisso?
___ Porque é muito mais fácil envolver com uma desconhecida qualquer que encontre num bar ou em qualquer outro local que não seja o da profissão. Se você vai para a cama com alguém do trabalho, conseqüentemente a encontrará no dia seguinte e isso cria uma situação bastante constrangedora se não existe a intenção de dar continuidade ao relacionamento.
___ É verdade – confirmou Manoel colocando a ultima colherada da sobremesa na boca. – Parece ser bem entendida do assunto, fala baseada em sua experiência própria?
___ Acertou – sorriu ela sem nada mais dizer.
Carol naqueles últimos dias mantinha-se estudando sobre a arquitetura grega e estava intrigada na pesquisa de um desenho pintado em um vaso coríntio donde o herói Hercules combatia um monstro do mar, que supostamente ameaçava a cidade de tróia. O que mais a deixava curiosa era como o autor da pintura pudera ter feito uma aberração tão tosca, de estilo totalmente estranho, que enfeava as linhas elegantes das demais figuras.
___ O que tanto lê nesse livro grosso de letras minúsculas? – perguntou Manoel que já cansara de ver Carol com aquele livro nas mãos. - Encarar a vista com o estomago cheio é prejudicial à saúde.
___ Sei disso, mas é que fico encabulada por descobrir se os monstros eram mesmo de verdade.
___ Que monstros?
___ A pista para chegar ao animal retratado no vaso coríntio parece estar em narrativas mitológicas milenares. Eram monstros fabulosos com cabeça de ave de rapina e corpo de leão, faziam ninhos no solo e cuidava da sua prole. Apesar da discrição detalhada, não há relatos na Antiguidade de alguém que tenha visto o bicho vivo. Sabemos que supostamente o local onde hoje está o mar Mediterrâneo foi um grande corredor migratório de mamíferos gigantescos. De tempo em tempos à atividade vulcânica, os terremotos e as colisões acabam expondo os fosseis. Muitos desses animais morreram em posições pouco usuais, surpreendidos e soterrados por tempestades de areia. O solo arenoso do deserto faz com que os fosseis apareçam com relativa facilidade, ao mesmo tempo em que oferecem imagens de grande impacto.
___ Pois os povos antigos deveriam observar os ossos também e assim tentavam adivinhar que tipo de animal era, remontando as figuras donde misturavam os animais conhecidos como o leão e a águia.
___ É, pode ser.
___ Você demorou muito tempo para conseguir aprender egiptologia?
___ Sim, é realmente muito complicado. Em si, a própria civilização egípcia é complicada de se estudar e entender. Primeiramente o Egito é um oásis, no meu modo de ver, tem um clima desértico, além de ser aproximadamente dez vezes mais comprido do que largo.
___ Porque diz que é um oásis?
___ Porque possui água do Nilo, carregada de humo, proveniente das terras vulcânicas da Alta Abissínia. É o limo que, enriquecido com o humo vegetal, constitui o solo fértil donde têm até três colheitas por ano. Se fosse lhe explicar sobre o que penso a respeito, falaríamos durante muitas horas sem parar. Esse assunto me fascina.
___ Sabe de onde surgiu à língua egípcia?
___ Admitiu-se, de modo geral, que o egípcio bem como as línguas sudanesas, o berbere e as línguas semíticas formam grupos de línguas independentes, mas que derivam todas da mesma língua comum antiga. Se prestar atenção constatará uma semelhança. Concordo com aqueles que afirmam que o egípcio foi uma das primeiras línguas e o principal interesse dessa escrita é ser manifestamente autóctone. Da escrita hieroglífica teve a hierática, depois deu origem ao demótico e assim foi até surgir à pictografia. O egípcio, contudo, não chegou a criar a escrita alfabética como nós a conhecemos, não abandonou jamais os sinais ideográficos e silábicos para inventar o alfabeto. Posso garantir que os ideogramas ainda estão longe de uma escrita alfabética.
___ Pode me explicar que diferença existe entre cada um dos tipos dessas escrita?
___ Segundo meus conhecimentos, os hieróglifos aperfeiçoados fazem parte da décima oitava dinastia, os mais simples são da décima segunda dinastia, os hieráticos vem da vigésima enquanto o demótico provém do terceiro século antes de Cristo. Possuem-se os sinais silábicos, os alfabéticos e os ideográficos, como pensar, fazer movimento, sentir, etc.
___ É verdade que os egípcios empregavam ano solar ao invés de lunar?
___ Creio que sim, mas nunca cheguei a estudar sobre isso. Sou mais de investigar sobre as construções feitas de tijolo cru, os silos de cereais construídos a base de terracota. Nas necrópoles, as covas não eram só retangulares, a exemplo das casas, também testemunham o alvorecer de uma verdadeira arquitetura: a cripta era feita de alvenaria de terra, coberta por telhados. As celas laterais eram dispostas de modo a servir de despensa para provisões funerárias. O morto era encerrado primeiro numa caixa de vime, depois de terracota e, finalmente, amortalhado em verdadeiro ataúde de madeira. Consta que as necrópoles se situavam próximas às regiões ocidentais do Nilo. As cabeças dos mortos eram voltadas para o Norte. Aparece a representação do homem na decoração dos vasos de argila, em estatuetas de marfim nos cabos esculpidos de certos cutelos e até mesmo nos afrescos.
___ O que sabe sobre as crenças antigas a respeito da morte? – Manoel interessou-se ainda mais.
___ Encaravam a morte, não como decomposição do ser, mas como mudança simples de vida. Acreditava-se no espírito imortal, que podia continuar associado ao corpo mesmo depois da morte. Os ritos fúnebres mostram-nos claramente que se acreditava em colocar algo vivo no túmulo. Existia o costume de no final da cerimônia fúnebre, chamar por três vezes a alma do morto, fazer-lhe votos de vida feliz debaixo da terra. Derramavam-se vinho sobre o túmulo para mitigar a sede além de alimentos para apaziguar a fome. Degolavam-se cavalos e escravos, pensando que estes seres, encerrados com o morto, o serviriam no túmulo, como o haviam feito durante a vida. Foi daí que surgiu a necessidade de uma sepultura para se enterrar o homem. A alma que não tivesse seu túmulo, não teria moradia, se tornava um fantasma malfazejo. Atormentaria os vivos, enviando-lhes doenças, devastando as searas e atormentando com aparições lúgubres. Foi assim que surgiu a crença nos seres de outro mundo. Mesmo depois de se enterrar o corpo, não deixaram de cultivar os velhos rituais de cerimônia fúnebre. Como pode verificar, a cada época o mundo vive de acordo com suas crenças e garanto que são milhares de crendices em cada parte do universo. Os homens temiam menos a morte do que a privação de sepultura. Achavam que na sepultura estava o repouso e a bem-aventurança eterna.
___ Quanta ignorância! – refletiu Manoel.
___ Claro, concordo plenamente. Não existe repouso para a alma e a bem-aventurança só é conseguida com boas, nobres e constantes atitudes. Foi assim que surgiu o maior dos castigos: a privação da sepultura. Cercavam-se o túmulo com grandes grinaldas de plantas e flores e sobre o mesmo se colocavam verdadeiras refeições. Derramavam o leite ou o vinho pela terra até abrir um buraco nesta, donde faziam os alimentos sólidos chegarem até os mortos. Toda a família do morto assistia a essa refeição, sem nem imaginar de mexer nas iguarias do defunto.
___ Se trocassem às comidas por orações, concluo que o efeito seria muito mais benéfico.
___ Logicamente – concordou Carol. – Dizem que o túmulo romano tinha mesmo a sua cozinha unicamente destinada ao uso do morto. Essas crenças são muito antigas e apresenta-se a nós como ridículas, no entanto, o homem acreditou nisso durante muitas gerações. Com o tempo, estabeleceu-se a religião dos mortos e estes passaram a serem sagrados, tendo apelidos de bons, santos e divinos. Julgavam que cada morto era um deus e dentre eles não havia distinção. Tanto era deus o bom como o mau homem.
___ Legal saber disso.
___ Também existiam os altares para sacrifícios aos mortos. Nas casas conservavam o fogo, dia e noite, nem que fosse em forma de cinzas. Não lhes era permitido usar qualquer tipo de madeira. O fogo também era tido como um ser divino. A ele também oferecia frutas, incenso, vinho enquanto imploravam proteção, que supunham ser poderosa. Dirigiam ao fogo preces fervorosas para obter saúde, riqueza e felicidade.
___ Você gosta mesmo desses assuntos.
___ Sim – confirmou Carol voltando à atenção para sua leitura.
___ Vai passar um filme, não quer assistir? – convidou Manoel.
___ Tudo bem, eu já li demais por hoje. Sabe o que gostaria de fazer nesse exato momento?
___ Diga.
___ Algo que fazia quando morava na fazenda em casa de meu pai.
___ E o que era?
___ Lembrar de alguns momentos da adolescência nos trás saudades.
___ Eu nunca senti isso – entristeceu-se Manoel. – Mas diga, o que gostaria de estar fazendo?
___ Passeando a cavalo. Cavalgar a noite é um programa legal para aproveitar o luar.
___ E a lua hoje está bonita.
___ Sim, observei isso. Na fazenda um bom passeio era pretexto para o que vinha depois, um jantar caipira bem-servido acompanhado de muita cantoria, que às vezes invadia a madrugada transformando-se num baile que durava quase a noite toda. Era bem divertido. Embora o passeio fosse feito em terreno pedregoso e íngreme, não achava difícil o percurso. Pelo caminho podia encontrar vaga-lumes e corujas. Cruzava córregos, pastos e porteiras até chegar ao topo extremo da fazenda. Lá do alto tinha uma visão panorâmica da região toda, avistando ao longe as zonas urbanas próximas.
Naquele momento, Manoel estava tranqüilo no sofá de seu apartamento quando o telefone tocou interrompendo sua atenção do assunto. Ao desligar o aparelho, um tanto intrigado, Manoel comunicou a Carol que precisava sair.
___ Aonde vai? – questionou Carol preocupada.
___ Agora dei para virar detetive, mas isso me deixa extasiado. Ainda pretendo conquistar o cargo das investigações.
___ O que aconteceu?
___ Uma jovem morreu na piscina da casa de um amigo.
___ O que tem isso de mais?
___ É o que vou saber? Quer vir comigo?
___ Posso? – animou-se Carol.
___ Lógico. Vou colocar o filme para gravar e já saímos.
___ Mas pensei que...
___ Venha, nesses horários não vou deixá-la sozinha aqui. Ainda estou traumatizado pelo que fizeram com sua irmã.
___ Está bem – concordou Carol animada.
Chegando no local, naquelas horas impróprias, Manoel tomou o posto do investigador da polícia que também saíra de férias naquele mesmo período e ainda não retornara.
___ O que exatamente aconteceu?
___ O sujeito aqui era amigo da jovem. Relate novamente ao policial Manoel o que aconteceu – pediu o outro policial.
___ Tudo se passou muito rápido. Minha amiga havia entrado na piscina quando, de repente, escutei seus gritos. Corri, mas já era tarde.
A vítima era assaz bonita e suas feições continuavam perfeitas, mesmo depois de morta. Manoel observou o cadáver e pôde verificar um detalhe que ainda ninguém verificara, a jovem tinha nas pernas as marcas da sandália de tiras. Sua cabeleira loura apresentava todos os sinais de um penteado ainda não desfeito. Sobre a grama do jardim, estavam espalhados os vários objetos que antes se achavam na bolsa da jovem.
___ Ela sabia nadar? – indagou Manoel ao jovem.
___ Não, eu ia ensinar-lhe.
___ Estavam sozinhos?
___ Não, estávamos numa festinha entre amigos.
___ E onde estão todos?
___ Se foram.
___ Pois como explica o fato da vítima ter entrado na água ainda de sandálias?
___ Mas ela não estava de sandálias, não estão vendo o corpo?
___ E como pode sua perna e tornozelo ficar tão marcado das tiras da sandália?
___ Talvez ela tivesse machucado antes. Ou então ela foi morta pelo rapaz que se suicidou.
___ Que rapaz? – perguntou Manoel.
___ Tem outro corpo lá dentro – explicou outro policial.
Manoel encaminhou para dentro da casa e apanhou sobre os joelhos do cadáver de um rapaz com cerca de vinte e oito anos, um frasco preto e redondo. Examinando o material, Manoel olhou para Carol que se sentia totalmente consternada de estar naquele local.
___ É, pode ter sido isso – confirmou Manoel sem mais suspeitas.
___ Espere um pouco. Como esse rapaz conseguiu esse frasco desse medicamento tóxico? – questionou outro policial.
___ Foi aqui mesmo, é que sou toxicólogo.
___ Poderíamos dar uma olhada no seu material de trabalho?
___ Sim – informou o rapaz levando Manoel e os outros policiais a uma sala donde continha um armaria cheia de vidros e frascos coloridos.
___ Por que este frasco é o único, entre tantos outros, a não ter rótulo? – questionou Manoel notando a diferença entre os vidros da estante e aquele que Manoel continuava segurando. - Estão claramente rotulados todos os vidros de sua coleção de venenos.
___ Esse é novo, ainda estava terminando de formular, não estava completo e nem havia guardado no armário.
___ Quando foi que o encontrou morto? Como duas pessoas puderam morrer em sua casa sem você notar nada?
___ Não sei como tudo aconteceu, foi muito rápido. Eu fui acudir minha amiga e quando retornei meu amigo já estava aí caído no chão.
___ E onde estavam os outros?
___ Já haviam ido embora.
___ Esse rapaz tinha algum motivo para se suicidar?
___ Não sei.
___ Como pode desconfiar que esse rapaz tenha matado a moça e depois suicidado se a morte de ambos parece ter sido simultânea?
___ Não sei, não entendo e nem imagino o que aconteceu aqui.
___ Quer dizer que todos os outros já haviam se retirado? – perguntou outro policial.
___ Sim.
___ Você viu o rapaz entrar aqui nesse recinto e mexer em algo?
___ Não.
___ Era a primeira vez que ele vinha a sua casa?
___ Sim.
___ Chegou a mostrar para ele a sua casa completa? – perguntou Carol como se também fosse uma investigadora.
___ Não.
___ Há quanto tempo é toxicólogo?
___ Dois anos, desde quando me formei em farmácia.
___ Seu amigo sabia da sua profissão?
___ Logicamente.
___ Não parece estranho que ele tenha pegado exatamente o vidro sem rotulo? Se pretendia se suicidar, deveria ter pegado um como esse – disse Manoel pegando um dos frascos no armário, o qual continha informação de perigo.
___ Pois é mesmo – confirmou o rapaz. – É lógico o que disse.
___ Você está preso, tudo indica claramente que não só pode como deve ser você o assassino. Tens o direito de permanecer...
Ao amanhecer, Manoel novamente foi interrompido no seu café da manha e as pressas saiu para uma nova investigação. A mãe do rapaz que fora preso na noite anterior, tinha sido encontrada morta em sua própria casa. Interessada naquelas investigações, Carol foi junto de Manoel, mas novamente não lhe permitiram a entrada no recinto.
A principio ninguém sabia que aquela era a mãe do rapaz, até constarem pelo sobrenome que aqueles dois casos tinham algo em comum e misterioso. Quando Manoel chegou ao local, o serralheiro ainda experimentava sucessivamente abrir e fechar, com algumas chaves que possuía, a porta de entrada da rica residência daquela senhora, que vivia sozinha, desde a morte do marido e a mudança do filho. O portão do jardim não oferecera qualquer problema. Afinal, a fechadura cedeu. Manoel entrou na casa. Completo silêncio se fez. A primeira porta à esquerda era a do banheiro e tudo parecia estar em ordem. À direita, outra porta, a do quarto. Indo até a cozinha, Manoel olhou para o corpo da senhora donde um perito tirava fotos de todos os ângulos.
A senhora estava caída ao solo, com a cabeça voltada para a porta. Pouco sangue. A bala atravessara-lhe a cabeça de lado a lado da direita para a esquerda. O revólver ficara sob o seu corpo. Sobre o fogão a gás, apagado, uma chaleira com um pouco d’água, e o cabo virado para a pia, à esquerda do fogão. Aparentemente, a morte ocorrera a menos de 45 horas.
___ Será que ela se suicidou?
___ Não creio, acho que tem alguma coisa estranha nesse caso e está relacionada às mortes de ontem.
___ Também penso o mesmo – informou Manoel.
___ Olhem os detalhes, a porta da cozinha estava fechada pelo lado de fora, e isso a vítima não podia ter feito. Vejam a posição da chaleira, tudo indica que essa senhora se servia de preferência da mão esquerda. Ora, a bala atravessou-lhe a cabeça da direita para a esquerda.
___ O rapaz preso ontem esteve aqui, o vizinho da lateral esquerda disse que o viu vindo aqui por volta das quatro horas da tarde.
___ Acha que foi ele?
___ Não poderia ter sido?
___ O rapaz está arrasado com a morte da mãe, além do mais, ele não parece ser um sujeito tão hediondo a ponto de matar três pessoas numa só noite.
___ Pois isso está muito estranho – brincou Manoel numa risada típica.
___ Bem, pode tomar conta do caso? - questionou o chefe de polícia a Manoel.
___ Posso investigar, mas não garanto descobrir nada.
___ Assunto encerrado, eu tenho outros crimes para tratar – disse o policial se retirando.
___ Se é assim, estudarei como investigar tais crimes – confirmou Manoel.
___ Está liberado, nos vemos mais tarde na delegacia – disse o chefe de policia entrando no carro policial.
___ Sim senhor.
Diante daquele caso, Manoel comunicou a Carol que necessitaria da ajuda dela. Era ela quem ia auxiliá-lo a desvendar o que realmente acontecera àquelas três vitimas.
Dois dias depois, conforme combinado, Carol se vestiu de freira e envolvida naquele caso também, foi à delegacia conversar com o rapaz que continuava preso, sem dinheiro para pagar a fiança.
___ Bom dia, meu filho – disse Carol com a voz bem suave.
___ Quem é a senhora? – questionou o rapaz preso.
___ Sou do convento das irmãs de fé, venho visitar os presos a cada duas semanas. Ainda não tinha lhe visto por aqui. Pode me contar como ou porque veio parar aqui?
___ Minha mãe, não pude nem se quer ir ao enterro dela – resmungou o rapaz.
___ Ela morreu?
___ Sim, foi assassinada. Outras duas pessoas morreram em minha casa. Não sei o que aconteceu.
___ Estranho! Mas me conte de você, da sua vida.
___ Quando mais novo, era magro e tinha cabelos mais escuros. Usava óculos que acentuavam meu temperamento sério e reservado, sempre tive esse jeito, como está me vendo agora.
___ Porque não tira esses óculos de sol do rosto? Você está dentro de uma cela, aqui não bate sol – perguntou Carol achando realmente estranho vê-lo com aquele óculos.
___ Eu sempre escondi meus olhos.
___ Porque?
___ Escondo os olhos para perceber tudo sem nada ter de revelar.
___ Me parece tímido.
___ Sim, nunca fiz parte das atividades extracurriculares da escola como jogos de interação ou esporte nas aulas de educação física. Tinha constante vergonha de que algo me acontecesse ou de que não me saísse tão bem quanto algum outro aluno qualquer. Na verdade, sempre fui avesso a multidões. Mantive comigo as idéias a respeito do caminho que minha vida deveria seguir. Levei a sério os valores transmitidos pela minha mãe – contou o jovem começando a chorar por novamente pensar em sua mãe.
___ Gostava muito de sua mãe?
___ Sim, ela sempre foi excepcionalmente organizada e meticulosa, gostava de tudo limpo e perfumado. Executava as coisas com prática e tranqüilidade.
___ Os policiais me informaram que você tem todos os indícios para ser o culpado. Iam investigar os assassinatos, mas pelo que fiquei sabendo, como o policial Manoel me contou, os outros visitantes seus amigos que estavam na festa já haviam ido embora quando as vítimas morreram, não é isso?
___ Foi assim, eu estava lá na rua, me despedindo de dois casais que já iam embora. Quando retornei para dentro, passei pela porta dos fundos e fui direto à cozinha, foi quando escutei o grito e corri para a piscina, já era tarde, a jovem estava morta, afogada. Depois, fui correndo ao telefone ligar para emergência e logo na entrada encontrei com meu outro amigo estirado no chão.
___ Você acha que ele a teria matado e depois se suicidado?
___ Sim, eu não ia matar os dois de uma só vez.
___ Pode me passar o nome dos outros que também estavam na sua casa? Vou conversar com uma amiga advogada e quem sabe ela possa te ajudar.
___ Não posso pagar nenhuma advogada.
___ Não se preocupe, eu faço caridade pelos inocentes e não cobro por nada. Jura que é inocente?
___ Sim.
___ E o que pensa que ocorreu com sua mãe?
___ Não sei.
___ Não tem nem pista do que pode ter lhe acontecido? Não ouve roubo ou algo do gênero, ela foi friamente assassinada sem nenhum motivo explicito.
___ Pois é – resmungou em choro o jovem.
___ Retornarei aqui na próxima semana, escreva nesse papel o nome dos outros convidados e o endereço para que eu possa falar com a advogada.
___ Aqui está, o endereço da Fátima, o outro da Bárbara e...
Ao se retirar daquele local, com os endereços na mão, Carol e Manoel rumaram para investigar quem eram aqueles outros figurantes que haviam estado na casa do jovem preso. Carol retirou a roupa de freira e desceu do carro normalmente com seus trajes de costume e conforme combinado acenou para Manoel que não ia demorar muito.
Notando que a casa não tinha campainha, Carol bateu palma aguardando que alguém aparecesse. Depois de um momento, uma senhora olhou pela janela e perguntou o que Carol desejava.
___ Estou procurando por Fátima, ela está?
___ Saiu com o namorado, mas deve estar chegando, eles só foram na padaria comprar uma quitanda para o lanche. Não quer entrar?
___ Bem, se não for incomodar, preciso muito falar com ela.
___ São amigas, de onde a conhece?
___ Não, nem ao menos a conheço.
___ Veio cobrar alguma dívida?
___ Também não – riu Carol.
___ Minha filha é cheia dos costumes de comprar sapato e ficar devendo – revelou à senhora enquanto abria o portão para Carol. – Mas então, o que deseja com ela?
___ É da parte da polícia, mas não se preocupe. Estou ajudando um amigo meu que é policial e sem querer estou dando uma de investigadora.
___ O que minha filha fez de errado?
___ Nada, pode se tranqüilizar.
___ E então porque veio procurá-la?
___ Ocorreram três mortes e...
___ Minha filha esta envolvida em...
___ Não, minha senhora. Eu vim apenas verificar se os relatos dela podem comprovar com os do jovem que está preso.
___ Quem está preso?
___ Benedito, a senhora o conhece?
___ Não. Não tenho amizade com os conhecidos de minha filha, ela já é bem grande e sabe o que faz.
___ Ela morra aqui com a senhora?
___ Sim.
___ Há quanto tempo ela namora?
___ Praticamente três anos.
___ E como é o namorado dela?
___ É um homem mais velho do que minha filha. Ele voltou de viagem não faz muito tempo. Agora estão planejando de irem os dois embora.
___ Embora para onde?
___ Esqueci o nome, fica noutro país – confundiu-se à senhora sem saber explicar.
___ Certo. Desde quando eles têm intenção de viajar?
___ Há algum tempo – respondeu a senhora um pouco nervosa. - Não deseja uma água, refrigerante, um café?
___ Escutei barulho no portão, deve ser eles – comentou Carol sem prestar atenção na pergunta que a senhora lhe fizera.
___ São sim – ela confirmou olhando pela janela.
Ao levantar-se para dar os cumprimentos, quão grande foi a surpresa de Carol. Muda, ela sentiu um choque por todo o corpo quando notou quem era o namorado de Fátima, que de mãos dadas entrou depois dela pela porta.
___ Joaquim?!
___ Carol? – espantou ele sem esperar encontrar com ela ali.
___ Mas...
___ Vocês se conhecem? – perguntou a jovem que supostamente era Fátima.
___ Bem, ela foi minha namorada – explicou Joaquim antes que Carol dissesse qualquer outra coisa.
___ Não ia embora para...
___ Eu ainda vou – ele interrompeu totalmente constrangido.
___ Sentem-se – ofereceu a senhora mãe de Fátima.
___ Obrigada, agradeceu Carol sentando-se enquanto Joaquim e Fátima faziam o mesmo.
___ Nós vamos viajar no mês que vem – informou Fátima.
___ É verdade que estão juntos há cerca de três anos? – perguntou Carol não querendo crer no que percebia.
___ Sim, é verdade – confirmou Fátima. – Porque?
Carol olhou para Joaquim com os olhos prontos para derramarem lágrimas.
___ Nada, por nada – respondeu Carol sentindo uma lágrima insistente banhar sua face, sem vontade de revelar que ambas tinham sido traídas.
___ Mas o que faz aqui? - perguntou Joaquim curioso.
___ Vim conversar com Fátima – disse Carol passando a mão rapidamente no rosto, como se quisesse tirar aquela sensibilidade que lhe abatera inesperadamente.
___ Conversar sobre o que? – preocupou-se Joaquim.
___ Poderia nos deixar a sós? – pediu Carol.
___ É que...
___ Tudo bem, não precisa se retirar. Parece-me que estiveram os dois numa festa na casa de Benedito, certo?
___ Sim, o conhece também? – perguntou Fátima.
___ Conheço há pouco tempo. Devo-lhes informar que ele está preso.
___ Mas porque?
___ Não entrarei em detalhes. Quero que me diga exatamente que horas eram quando saíram da casa dele.
___ Não sei.
___ Também não me lembro, estava sem relógio, mas já era tarde, com certeza – respondeu Joaquim.
___ Bem, a polícia poderá lhes procurar dentro de alguns dias. Não vou interrogá-los, pois não sou perita e nem tenho permissão para fazer isso.
___ Mas então...
___ Estou apenas auxiliando um amigo policial – respondeu Carol sentindo a necessidade de se retirar da frente de Joaquim o mais rápido possível, antes que novas lágrimas lhe descessem realmente pelo rosto.
___ E como...
___ Com licença – interrompeu Carol se levantando. – Tenho que ir – disse ela logo se retirando.
Joaquim intrigado não sentira nenhum baque maior a não ser o susto que tivera a princípio. Ficara evidente que ele enganara Carol durante o tempo em que estivera com ela, já que estava namorando Fátima há praticamente três anos. Fátima também por certo não sabia do envolvimento dele com Carol.
Retornando para o carro donde Manoel lhe esperava, estacionado, na esquina do quarteirão de cima, Carol despejou as lágrimas teimosas e não conseguia dizer nada.
___ O que foi? – preocupou-se Manoel.
___ Nada.
___ Como nada?
___ É que me senti triste de repente.
___ Me explica o que aconteceu, ninguém fica assim sem um motivo qualquer.
___ Me deixa – pediu Carol.
___ Conversou com a Fátima?
___ Sim, quero dizer, não. Vamos embora – solicitou Carol.
___ Ela conhece o rapaz que está preso?
___ Sim, ela realmente esteve na casa dele com o namo...
Carol não conseguiu terminar a frase e entre soluços verificou que seus sentimentos por Joaquim eram maiores do que ela poderia supor. Ficar sabendo que ele a enganara estando também junto de outra moça, era algo terrível e insustável para Carol. Tudo naquele momento ficou claro e somente então Carol se lembrou das viagens que Joaquim tanto fazia enquanto ela ficava tomando conta dos desenhos de arquitetura dele. Tudo indicava que ele a usara juntamente do emprego que seu pai Tiago a oferecera, apenas para conseguir seu sucesso profissional as custas dela.
___ Se não quer contar agora, tudo bem, eu respeito, mas ainda vou querer saber exatamente o que se passou – continuava dizendo Manoel enquanto Carol nem ao menos escutava, mantida apenas com suas dores e pensamentos.
___ Quero ir embora daqui, eu vou retornar para perto de minhas irmãs.
___ Como? – espantou-se Manoel constatando que realmente acontecera algo grave.
___ Se gosta mesmo de mim, pode me acompanhar, mas nessa cidade não fico.
___ Não posso deixar...
___ Então se dane – irritou-se Carol. – Eu odeio todos os homens desse mundo. São sempre falsos.
___ Não te entendo.
___ Vou fazer minhas malas hoje mesmo e não quero nem saber.
___ Você está tensa por algo que não sei o que é, não deve tomar nenhuma atitude precipitada – disse Manoel parando o carro na frente do apartamento.
___ Pois vou embora – respondeu Carol saindo apresada do carro.
Andando ainda mancando e com dificuldade, Carol tropeçou no degrau do passeio de entrada ao condomínio e quando viu já estava no chão.
___ Carol, você não está nada bem – correu Manoel para acudi-la.
___ Eu só tropecei, estou bem.
Manoel ajudou Carol a se levantar e depois de passarem pelo portão, ele a carregou até a entrada do prédio, auxiliando-a em seguida a caminhar até o elevador. Chegando no apartamento, Carol apoiou-se no ombro de Manoel e deitada em sua cama, não conseguia parar de chorar.
___ Não vai me contar o que aconteceu?
___ Não.
___ Não quero te ver assim.
___ Gosta mesmo de mim? – questionou Carol respirando fundo.
___ Claro.
Carol sentou-se na cama e olhou Manoel sentar-se ao seu lado.
___ Não vou mais insistir para que me conte o que aconteceu, mas saiba que estou sempre junto a ti para o que precisar, mesmo que seja para ir embora – disse Manoel com os olhos também brilhantes de lágrima.
___ Ah, Manoel – disse Carol o abraçando com força. – Não sei mais o que faço da minha vida – chorou ela desconsolada.
___ Pois eu sei o que fazer com sua vida. Deixe-me tomar conta de você e será muito feliz. Pode pensar que estou interessado no ouro ou em seu dinheiro, mas lhe garanto que aprendi muito e nenhum dinheiro desse mundo vai valer pelo amor que encontrei em ti. Alias, falando nisso, não acho seguro que continuemos guardando aquele ouro aqui em casa, se quiser podemos ir amanha no banco e colocar num cofre. Não precisará nem me contar a senha se não quiser.
___ Pessoas que julgamos serem honestas nos traem, mas você, eu espero que nunca faça isso comigo.
___ Porque está falando isso?
___ Por nada.
___ Confia em mim?
___ Claro. Vejo que você tem muito mais caráter do que muitas outras pessoas. Erra, mas tem consciência e pede perdão.
___ Não teria tido consciência da gravidade dos meus erros se não fosse vossa singeleza de querer me perdoar.
___ Por tudo o que já me fez sofrer, não seria capaz de me fazer ainda mais infeliz, seria?
___ Jamais. É por isso que digo, se deseja retornar para junto de suas irmãs, eu apenas a apoiarei e sentirei por não poder ir contigo. Gosto daqui e vivo bem nessa cidade, tenho meu trabalho e meus amigos. Mas se puder e me der permissão, irei visitá-la sempre.
___ Eu já não sei mais o que fazer – respondeu Carol pensativa olhando firmemente nos olhos de Manoel.
___ Acalme-se – aconselhou Manoel passando a mão no rosto de Carol e colocando-lhe os cabelos soltos por trás da orelha.
___ Me desculpe – disse Carol novamente se recolhendo nos braços de Manoel. – Tens sido um homem tão gentil e hospitaleiro comigo, não merece o meu desprezo.
___ Sei que algo aconteceu e por isso entendo que...
Antes que Manoel pudesse terminar sua frase, Carol lhe beijou os lábios rapidamente pela primeira vez, fazendo-o ficar completamente sem reação.
___ Lhe darei a chance de me fazer feliz. Está resolvido, ficarei por mais um mês até terminar minhas sessões de fisioterapia, depois se não estiver me fazendo feliz conforme espero, vou-me embora.
___ Como quiser – sorriu Manoel ainda com os olhos brilhantes.
___ Estou com fome, não vai preparar nada de comer?
___ Vou sim.
Manoel ia se levantar quando Carol o segurou pelo braço e com esforço se pôs em pé também.
___ Não sei porque me deixei ficar tão abatida hoje – disse ela. – Encontrei alguém muito melhor – continuou ela novamente beijando os lábios de Manoel que não entendia nem aquelas palavras, nem muito menos aquela reação.
___ Do que está falando?
___ De nada. Assunto meu – aquietou-se ela novamente se sentando.
___ Me parece muito estranha – revelou Manoel enrugando a testa.
___ É impressão sua, estou bem e normal como sempre.
___ Descanse, leia um pouco enquanto vou fazer algo para comermos.
___ Está certo.
Carou continuou aborrecida, mas queria esquecer o episódio daquele dia, além do mais, seus sentimentos por Manoel se despertavam cada vez mais forte. Estavam convivendo juntos e se relacionando com companheirismo e cordialidade. Eram amigos antes de tudo e tinham muitos gostos e afinidades em comum. Enfim, tinham tudo para serem felizes juntos.
No dia seguinte, ainda antes do café da manhã, Carol começou a organizar algumas roupas em sua mala. Manoel que fazia o café normalmente como todos os dias, espantou-se entristecido ao ver Carol segurando a mala.
___ Vais realmente ir embora?
___ Não, irei apenas fazer uma viagem.
___ Para onde?
___ Vou à Casa de Esperança Mãe Santíssima.
___ Mas...
___ Decidi isso agora a pouco, vou comprar as passagens na hora. Preciso partir e levarei o ouro comigo.
___ O que pretende?
___ Liguei para lá assim que o dia amanheceu e conversei com uma das fundadoras, sinto que não posso ficar parada, entende?
___ Seria tão bom se pudesse lhe acompanhar. Você não tem estado muito bem nesses últimos dias.
___ Não carece se preocupar comigo, estou bem e cheia de expectativa. Sabe que é a maior fundação que trata de crianças deficientes do nosso estado, não sabe?
___ Sei sim, não seria má idéia fazer-lhes doação do ouro que encontraste. O que realmente está pensando?
___ Ficarei por lá alguns dias, Dona Flávia, a senhora que me atendeu, disse que ia arrumar um alojamento lá dentro, próximo ao berçário. Verificarei como é o dia-a-dia daquelas crianças.
___ Vai ser muito bom essa viagem para você. Fico mais tranqüilo de saber que não está indo embora de vez.
___ Mas ainda não estou certa de que em meu retorno continuarei vivendo contigo, pelo menos aqui no seu apartamento.
___ Já lhe disse que não é incomodo algum tê-la aqui comigo, além do mais, tens dividido toda a despesa e...
___ Mas sou eu quem me sinto incomodada em certas horas – interrompeu Carol sentando-se na mesa e passando manteiga no pão ainda quente.
___ Bem, não quero discutir isso contigo. Faria o que fosse preciso para que ficasse, mas lhe dou a liberdade de agir conforme própria vontade.
___ Quem sabe você não decide ir comigo, pode arrumar emprego por lá.
___ Não sei.
___ Bem, estive pensando que não tenho capacidade de comandar qualquer instituição de caridade ou filantropia, prefiro realmente fazer uma doação.
___ Pretende doar tudo para...
___ Ainda não sei, estou bem confusa – interrompeu Carol já sabendo o que Manoel ia lhe perguntar.
___ Vai viajar de avião?
___ Isso mesmo.
___ Então eu te levo no aeroporto.
___ Não quero lhe atrapalhar, posso pegar um táxi.
___ Hora essa, para mim vai ser um prazer lhe levar até lá, pelo menos assim desfruto dos últimos momentos contigo.
___ Acho que se ficar muitos dias por lá irei sentir saudades suas.
___ E isso vai lhe fazer refletir sobre o que realmente pretende fazer.
___ Você é quem vai refletir se quer se mudar comigo ou não.
___ É mais fácil você ficar aqui do que eu me mudar. Você está aqui já há tanto tempo.
___ Isso não justifica nada.
___ Pois bem.
___ Vamos logo, eu não quero perder o vôo das oito, isso é, se ainda tiver lugar.
___ Vamos sim – disse Manoel vestindo seu casaco e pegando mais uma rosquinha.
___ Vou levar só essa mala e minha mochila, creio que não estou esquecendo nada.
___ Não sei como consegue tomar decisões assim de uma hora para outra. Deixe que eu levo a mala para você.
___ Obrigada – agradeceu Carol dando-lhe a bagagem.
___ Quando o seguro vai lhe entregar o carro novo?
___ Sabe que nem sei – brincou Carol numa risada. – Depois do que me aconteceu, nem sei mais se vou querer dirigir.
___ Vai doar o carro também?
___ É, talvez o deixe de presente para você.
___ É, você fica só brincando com meus sonhos e ilusões – disse Manoel numa reprovação das palavras de Carol.
___ Mas não estou brincando. Trate de verificar que o carro já é seu. Pelo menos quando não estiver utilizando o carro da delegacia, poderá...
___ Está mesmo falando sério?
___ Lógico.
___ Mas nem posso acreditar.
___ Depois trataremos do resto. Devo minha vida a você e nem todos os carros do mundo poderia retribuir a gratidão que lhe tenho.
___ Mas o seu amor, este sim pode retribuir. Por mais interesse que eu tenha em um carro, preferiria infinitas vezes o seu amor.
___ Pois ainda pode ter os dois – sorriu Carol entrando no carro. – Sempre teve esse carro policial a sua disposição?
___ Sim, quero dizer, na maioria das vezes sim. Pensei que não mais fosse ter permissão de ficar com o veículo depois que fui preso, mas por sorte tudo voltou ao normal. Também tenho tanto a te agradecer. Entrei numa enrascada e era para ser ferido com o mesmo ferro que tentava lhe ferir, mas pelo seu perdão livrei-me desse mal. Sei que fugi da vingança daqueles pintores, mas não terei como sair impune da justiça divina.
___ Suas atitudes podem amenizar os males e sofrimentos e creio que sua própria liberdade é uma prova disso.
___ Também penso o mesmo, não mereceria estar livre. Sei que não fiz mal a nenhuma criança, mas fiz a você.
___ Esqueça o que aconteceu. Diante do que sinto hoje por você e de todas as alegrias que já passamos juntos, bendigo pelo dia que entrou em minha casa daquela forma – consolou Carol. – Pensa que eu apenas mereço felicidades? Não, de forma alguma. Também sou imperfeita e mereço os sofrimentos e as dores do mundo. Não existe felicidade maior para mim do que saber do vosso arrependimento sincero e notar que os erros e tormentos não foram em vão, eles valeram pela nossa união, por estarmos juntos nesse momento, isso não é maravilhoso?
___ Sim, mas me sentirei culpado eternamente.
___ Não deve se sentir assim. É pelas tempestades que germinam os grãos das lavouras, é pela água que desaba dos céus que surge o arco-íres com sua tamanha beleza e perfeição. Não se puna pelos males que cometeu, mas sinta-se orgulhoso de ter compreendido as lições provindas de seu próprio arrependimento. É inexplicável relatar como tudo aconteceu, o fato de ainda estarmos juntos e inclusive sobre a história de eu ter encontrado aquele livro e sem nem ao menos imaginar, ser levada a achar aquele ouro. A vida se desencadeia muitas vezes em fatos surpreendentes dos quais nunca poderíamos imaginar, planejar ou esperar. Recebemos os acontecimentos conforme nosso merecimento, de acordo com o que temos de nos melhorar.
___ Chegamos – disse Manoel ao estacionar o veículo ainda com o rosto entristecido.
___ Não quero que fique triste, não me demorarei mais do que um mês por lá – disse Carol descendo do carro.
___ Um mês? Tem noção de que um mês são cerca de trinta dias?
___ Bem, o que tem isso de mais?
Manoel respirou sem nada mais dizer até que finalmente comentou:
___ Acho que não conseguiria mais viver sem você.
___ Mas é impossível que não consiga viver um mês sem minha presença.
___ Têm certeza que vai ser apenas um mês?
___ Se demorar mais do que isso vá me buscar – riu Carol novamente em tom de brincadeira. – Depositei uma boa quantia em sua conta bancaria, caso realmente não consiga ficar muitos dias longe de mim – tornou ela a brincar.
___ Você me enlouquece, sabia?
___ E isso é apenas o começo, agüenta firme e se cuida enquanto eu estiver fora.
___ Se cuide também.
Depois de tomar todas as providencias, Carol não teve muito tempo mais para conversar com Manoel, pois de imediato, o avião pousou na pista e pela radiofonia fizeram a última chamada.
___ Tenho de ir – despediu-se Carol antes de entrar para a sala de embarque.
___ Não se esqueça que te amo.
___ Também te amo – disse Carol o beijando com paixão e romantismo. – Guarde o gosto do meu beijo e sonhe comigo todas as noites.
___ Me ligue assim que chegar.
___ Tudo bem, eu manterei contato e lhe informarei sobre as notícias e novidades.
___ Vá com Deus.
___ Fique com ele também – disse Carol sentindo suas últimas palavras serem misturadas com uma emoção grandiosa.
Enquanto Manoel via Carol embarcar, uma dor em seu peito o deixava arrasado. Já tivera inúmeros casos amorosos e até perdera a conta de suas namoradas, mas nunca nenhuma mulher tivera em sua vida o sentido que Carol estava tendo. Realmente, ele não saberia quantos dias conseguiria ficar sem ela.
Carol colocou os cintos assim que sentou em sua poltrona, embora estivesse com semblante sereno e calmo, sentia uma ansiedade diferente por estar fazendo aquela viagem. Enquanto o avião decolava, Carol rememorava os acontecimentos que culminara naquela situação presente.
A viajem rapidamente se transcorreu, principalmente pelo cochilo que embalara Carol praticamente durante toda o percurso. A rumo do local destinado, Carol alegre imaginava que estaria fazendo a coisa certa e sentia verdadeiramente grata por ter encontrado aquelas barras de ouro. Para ela, dinheiro nunca faltara e nem muito menos lhe fizera mais alegre do que a felicidade que aquele ato de caridade estava lhe proporcionando.
Chegando no local, Carol foi bem recepcionada e encantada observava a beleza daquele lugar. Era um sítio que refletia paz e harmonia a primeira vista. Diante de seus olhos, ela não apenas podia contemplar a delicadeza do jardim, como também sentir a espécie de integração entre todos os elementos do universo. Por um segundo, Carol teve lembranças fortes de seus antepassados como se pudesse sentir a presença de seus pais ao seu lado. Aquele local parecia querer lhe revelar os segredos da existência humana, assim como lhe transmitia o sentido da eterna busca da perenidade. Era como se aquele verde que ela presenciava, lhe mostrasse a metáfora da vida e do mundo.
___ Então, como se sente? – perguntou Dona Flávia ao receber Carol com carisma.
___ Bem, muito bem. Tenho uma imensa curiosidade de conhecer as crianças e tudo por aqui, eu estou realmente muito feliz de ter vindo.
___ De certa forma, sentimos afortunados com o fato de poder lhe receber.
___ Sim, obrigada pela hospitalidade.
___ Espero que se sinta bem por aqui.
___ Pois garanto que já estou me sentindo. Esse jardim é encantador – comentou Carol.
___ Sim, esse ambiente acalma qualquer criança. O contato com a natureza é sempre muito importante. Trouxemos para essa casa a herança milenar do povo oriental.
___ Você é japonesa, estou certa? – questionou Carol notando os olhos puxados de Dona Flávia.
___ Sim.
___ Começo a entender, isso na verdade é um jardim japonês?
___ Isso mesmo. Nós cultuamos que nos elementos da natureza encontramos os segredos da existência. Criamos aqui um efeito estético e que chama qualquer um a meditação.
___ Percebi isso mesmo, adoraria ficar horas aqui, olhando para a água e refletindo sobre minha vida.
___ Foi à generosidade dos filhos do Sol Nascente que disseminou essa doutrina para os povos ocidentais, cujas civilizações não souberam respeitar a primeira e a mais forte das hegemonias, a da mãe natureza.
___ Sim, a mãe natureza é perfeita – completou Carol ainda sem tirar os olhos do jardim.
___ Neste jardim, todas as árvores, flores, arbustos, pedras, cascalho e a própria água, jazem de forma pensada, para assumir ricos significados e representar alguma coisa ou alguém. Muitos de nós orientais cremos na religião do Xintoísmo e para passar pelo caminho dos deuses, precisamos percorrer a rota da adoração da natureza. É por isso que existem essas trilhas tão bem elaboradas. As infinitas transversais do misticismo oriental fizeram com que os chineses mostrassem aos habitantes das ilhas Nippon os oito caminhos de Buda. E um dia, os raios de sol da deusa xintoísta Amaterasu cruzaram-se com as luzes de Buda, nascendo daí o Shintô, que inspirou jardins muito parecidos com o Nirvana. Para a civilização oriental ou chinesa, o homem atinge a plenitude de Deus pela meditação, sacrifícios, autoconhecimento e reencarnação para atingir o Nirvana, a perfeição. Mas essa não é a única religião da cultura oriental, temos o Confucionismo que respeita as tradições e regras éticas. Possui influencia sobre o pensamento, a educação e o governo. Depois vem o Taoísmo, o caminho do processo do universo e a própria ordem da natureza. Também existe o Budismo com a regra de despertar o Nirvana pela meditação profunda. Essa possui como líder o mestre Dalai Lama. Essas três últimas compreendem o Sankião. Vai observar lá dentro que possuímos uma espécie de altar no centro da sala, é chamado de Kamidana, possui um pequeno espelho, uma vela e um vaso contendo galhos da arvore Sakaki. Bem, mas não veio aqui para falar de religião, não é mesmo? – brincou Dona Flávia ao terminar seu comentário.
___ É, de fato, mas estou achando bastante interessante o assunto de nossa prosa. Conte-me mais sobre os jardins.
___ Com a chegada do século XV, os jardins se tornaram monocromáticos pela inspiração zen-budista, eram chamados de Sekitei. Neles quase não havia plantas, apenas rochas e cascalho branco, quando muito um tapete de musgo. Tudo isso refletia a influencia da pintura chinesa, que expressava numa cor totalitária as aspirações e os sentimentos humanos. Com o passar dos anos e de longa história, os arbustos, vegetações rasteiras, pedras e flores resplandeceram a luz do sol pelas mãos dos paisagistas. Venha um instante aqui – convidou Dona Flavia entrando por um dos caminhos de cascalho, dentre as arvores baixas, bem podadas e retorcidas.
___ Que coisa linda, é uma mini cachoeira?
___ Bem – riu Flavia. – Digamos que sim, pode ser para você.
___ É artificial?
___ Sim, foi criada aí, não é natural ou original do local. Antes da segunda construção, isso daqui era apenas mato. Gastamos muito tempo para conseguir chegarmos a finalizar toda essa estrutura.
___ É lindo! – exclamou Carol notando que nunca estivera num local artificial tão belo.
___ Reproduzimos em miniatura tudo o que existe na natureza. Também usamos materiais reciclados para enfeitar e pode verificar que os detalhes foram criados por nossas próprias crianças. Cada passarinho desses tem o nome de uma delas. Foram feitos com isopor, tinta e garrafa plástica.
___ Parecem ser de verdade, incrível! – comentou Carol encantada.
___ Este mundo minimalista não exige amplidões. Os jardins japoneses podem ser implantados em grandes ares ou em exíguos espaços como aqui. E olha que possuímos vários jardins, cada um com uma estrutura. Todos eles são despojados e simples, mas estão plenos de simbologia, criando um ambiente que conduz ao repouso e à meditação constante. Espécies vegetais, água, rocha e madeira se harmonizam entre si, principalmente quando banhados pela luz solar. Aqui está a cachoeira, do outro lado temos a fonte e mais ao fundo temos o jardim com a roda d’água.
___ E aquele da entrada, é o principal?
___ Sim, é o maior que temos, é o jardim das boas vindas.
___ Observei que os caminhos também são diferentes, passamos por um de cascalho, do outro lado me parece que o caminho já é feito de pedras grandes e irregulares.
___ Sim, aquelas pedras de corte impreciso proporcionam na atmosfera maior inspiração ao individuo de procurar o seu próprio eu. Aquele caminho não leva a nenhum jardim como estes.
___ Não?
___ Vamos até lá, vais ver o que existe naquele canto.
Carol totalmente curiosa e fascinada seguiu Dona Flávia.
___ Esse ambiente todo deve fazer muito bem para as crianças.
___ Sim, isso eu não posso negar.
No final do caminho, havia apenas uma pedra côncava e uma bica d’água corrente. Ao redor havia vários bancos de madeira e mesinhas que pareciam terem sido talhadas à mão.
___ Aqui não é bem um jardim, é um local para reuniões entre nós diretores. Esse recinto foi montado para aguçar o tato, o olfato, a visão e a audição. Aqui também acontecem alguns tratamentos terapêuticos. As áreas sombreadas e ensolaradas remetem aos tempos bons e ruins da existência humana e a bica serve para dissipar as tensões cotidianas.
___ Adorei.
___ Vamos entrar? Deve estar cansada da viagem.
___ Ah, sim – respondeu Carol embora não sentisse vontade de sair daquele ambiente tão encantado.
Carol ainda não tinha comentado com Dona Flavia sobre a doação que pretendia fazer, apenas dissera que gostaria muito de conhecer o local e as crianças. Simpaticamente, Dona Flavia se propôs de lhe arrumar um quarto donde ela pudesse permanecer durante o tempo que quisesse. Sempre tinham quartos desocupados para receber mais crianças ou pessoas que como Carol, gostassem de visitar o local e auxiliar a cuidar das crianças num trabalho voluntário, geralmente em época de férias.
___ Nosso primeiro grupo era formado por dez mulheres, havendo entre elas, Dona Helen, uma sensitiva notável por sua capacidade mediúnica e, ainda mais, pela sua humildade, compreensão e dedicação ao trabalho do bem. As demais eram como eu, pessoas comuns e interessadas também a dedicação da caridade, na ajuda das crianças portadoras de necessidades especiais. São todas crianças órfãs, que não tem para onde ir.
___ É triste pensar que existem pais que abandonam seus filhos apenas por eles terem alguma anomalia ou deficiência.
___ Sim, mas é isso o que aconteceu com a maioria das crianças que aqui estão. Muitos pais deixam seus filhos aqui não por serem pobres e sem condições de as criar, mas porque não aceitaram ter um filho deficiente no lar.
___ Quando desamor e falta de sensibilidade! – exclamou Carol achando aquilo um absurdo.
___ Mas aqui elas são bem cuidadas e acolhemos a todas com o mesmo carinho.
Carol seguiu Dona Flavia até um salão com as paredes igualmente lisas, feitas de um material cristalino muito bem trabalhado. A sua espera, estava uma mesa com costumeiros alimentos. Aparentemente, compunha-se de uma refeição leve, um prato com salada, outro com arroz e uma panela com cozido de peixe ensopado.
___ Todos já almoçamos, mas guardei um pouco para ti, sente fome?
___ Sim, o lanche que comi dentre do avião apenas me deu mais apetite.
___ Pois então fique a vontade – disse Dona Flávia pegando um prato limpo dentro do armário.
Carol sentou-se e sentiu o silêncio tranqüilizador daquele ambiente sendo interrompido apenas pela constante e agradável música instrumental. Vendo uma cestinha com pãezinhos, Carol serviu-se à vontade alimentando calmamente.
___ Temos as hortas por aqui, depois poderá ir até nosso pomar. Tudo é colhido no dia. Ensinamos as nossas crianças sobre a pureza da perfeição dos alimentos e agradecemos sempre pelo mérito de receber a mesa farta para tratar de tantas crianças...
Enquanto escutava Dona Flávia, Carol observava a limpeza e organização do local. Sentia-se bem e estava tranqüila como nunca estivera antes. Comendo com vagar e adotando aquele procedimento, Carol captou a sensação de saborear cada alimento. Ao terminar a refeição, Dona Flávia pegou na geladeira uma travessa e lhe serviu com a sobremesa: salada de frutas, porém sem açúcar. Depois, Dona Flavia pegou o açucareiro e ao abrir a tampa, Carol verificou que este estava cheio, mas não se tratava de açúcar refinado ou branco como comumente Carol usava.
___ Bem, não temos de outro açúcar, só usamos o mascavo – explicou Dona Flávia.
___ Pois está ótimo, vejo que cuidam da saúde das crianças.
___ Todas têm o cardápio nutricional próprio e sempre controlamos o óleo, sal e o açúcar.
Terminado o almoço, Carol tomou chá no lugar de café. Além de gostoso, o chá tinha um aroma suave e relaxante. Após elogiar o almoço, Carol seguiu Dona Flavia mais uma vez voltando à mesma sala em que tinham passado antes. Carol notava todos os detalhes daquele ambiente. Próximo ao sofá havia uma espécie de escrivaninha com poltronas dos dois lados. Obedecendo a uma ordem de Dona Flávia, feita com um gesto de braço, Carol sentou-se no sofá. Flávia sentou-se em seguida:
___ Dona Helen deve estar quase chegando, é ela quem fica responsável pelas chaves e teremos de esperar um pouco. Enquanto isso, nós podemos conversar.
___ Vocês recebem doações especiais nas épocas de natal?
___ Sim, no natal recebemos doações e como chamamos, são as sacolas da alegria. Distribuímos sacolas vazias com as fichas das crianças. Cada participante escolhe aquele que deseja presentear. Recheadas com pacotes, as sacolas são entregues de volta. Também contamos com uma espécie de gincana social, realizada por alguns bancos e supermercados. Geralmente são mais de trezentos kits montados pelos próprios bancários. A cesta de alimentos vinda dos supermercados também nos auxilia muito para uma ceia mais alegre e animada. Alguns funcionários gostaram tanto da iniciativa que decidiram continuar o trabalho voluntário. As sacolas são favoráveis a quem quer ser solidário e não tem condições de contribuir o ano todo.
___ Abrigam apenas crianças portadoras de necessidades?
___ Não exatamente, também temos meninos e meninas em situação de risco social, ou seja, aquelas que sofreram abusos. Na verdade, a Casa funciona como uma ponte para quem quer ajudar e não sabe como. Tem pessoas que apenas contribuem por saber da nossa seriedade e do carinho pelo qual tratamos nossas crianças. Elas serão o nosso dia de amanha, não muito distante. É por isso que não basta apenas cuidar do corpo, mas também do espírito, ensiná-las a amar e ter educação, respeitando sempre o próximo. Também temos uma função assistencialista para com a favela do Butizeiro, quando possível, sempre despachamos a eles algumas roupas, alimentos e brinquedos.
___ Interessante.
___ O atendimento aqui nem sempre é apenas para as crianças, mas também para lactentes, adolescentes e adultos que têm deficiência visual, bem como os surdos, em ações de habilitação, educação e reabilitação. Temos programas especiais voltados para orientação de famílias e crianças surdas na faixa etária de zero a quatro anos e nos aspectos relativos à surdez, lingüístico, cognitivo, educacional, afetivo e social. Oferecemos aulas de língua de sinais para os pais ou responsáveis com vista a contribuir para o desenvolvimento da linguagem da criança no dia-a-dia. A característica fundamental do programa é conscientizar os pais da questão fundamental em relação à criança surda: a do provimento de língua e linguagem. Para as crianças na faixa etária de cinco a oito anos propiciamos o contexto lingüístico para o uso efetivo da Libras, Língua Brasileira de Sinais, com a participação de um instrutor surdo fluente nesta língua. Caracteriza-se pelo trabalho educacional, favorecendo o processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem oral, leitura, escrita e raciocínio lógico matemático que são relevantes para o processo de escolarização. O trabalho é realizado em grupo, com atividades paralelas às de uma pré-escola. Os familiares recebem orientações, bem como os professores da rede comum de ensino, quando a criança freqüenta paralelamente a escola regular.
___ E acima de oito anos?
___ Também atendemos dando atendimento fonoaudiológico que desenvolve atividade de aprimoramento da voz através de programa computacional e desenvolvimento da língua oral através da oralização e da leitura oro-facial. O atendimento a crianças portadoras de deficiência visual exige um atendimento individual ou grupal à criança, com orientação aos familiares. Prestamos serviço de orientações a Instituições que atendem crianças com deficiência visual. O subprograma de atendimento ambulatorial atende crianças com múltiplas deficiências e seus familiares no que se refere às questões da deficiência visual. Os grupos de crianças caracterizam-se pela heterogeneidade, ou seja, tipo de deficiência como baixa visão ou cegueira e grau de dificuldade escolar. Visamos no atendimento promover a convivência através de experiências em que leitura e escrita e outros conhecimentos sejam apresentados de forma significativa. Para os adolescentes e adultos, auxiliamos com o objetivo de instrumentalizar a pessoa deficiente visual para que alcance o maior nível de autonomia e independência no seu cotidiano. São desenvolvidas atividades de reabilitação básica, tais como: Braile, para pessoas com cegueira; auxílios ópticos, para as pessoas com baixa visão; recursos da informática através da utilização de software sonoro, impressora braile e impressora comum; orientação e mobilidade, com locomoção interna e externa; serviços de orientação e readaptação profissional; orientação para atividades de vida diária e apoio psicológico.
___ Muito bom, estou encantada.
___ Vou te mostrar tudo direitinho, vai ter a oportunidade de ver passo a passo como tudo ocorre aqui dentro.
Enquanto conversavam, Carol ia observando todos os detalhes que lhe eram necessários para tomar a decisão de fazer a doação que pretendia.

Depois de tudo resolvido, Carol se despediu agradecida por ter estado ali durante aqueles dias e lisonjeada sentia pelo auxilio daquela doação que realizara. Pegando um táxi, rumou-se para o aeroporto. O vôo que pretendia tomar estava lotado e somo não fizera reserva, ia ter de esperar o próximo. Aproveitando a oportunidade, Carol colocou sua mala no porta bagagens do próprio aeroporto e resolveu caminhar um pouco pelas lojas mais próximas.
Entre uma loja e outra Carol nem sentiu o tempo passar. Aproveitara para comprar uma saia para si mesma e um presente especial para Manoel, um lindo blazer importado. Depois de quase cinco horas passeando pelos shoppings e se sujeitando a andar de ônibus, o que raramente Carol fazia, ela retornou para o aeroporto. Lendo os noticiários de um jornal que comprara numa banca de praça, Carol aguardou calmamente.
Esperava-se o embarque de quase trezentos passageiros, mais os doze tripulantes a bordo, comissários, piloto e co-piloto. Quando o primeiro ônibus de passageiros chegou, Carol tomou posição na porta traseira da direita, no topo da escada dos passageiros. No chão, ao pé dos degraus, um funcionário da polícia aduaneira verificava os passaportes dos passageiros, bem como a identificação dos tripulantes.
Com a chegada do segundo ônibus o avião começou a encher. Foi então que um policial apareceu vindo na frente da aeronave com uma metralhadora. Carol sentiu-se em choque, alguma coisa deveria estar errada, aquilo não era algo normal numa embarcação de passageiros. O policial, de estatura mediana, usava o distintivo de identificação e com o dedo no gatilho, avançou nervosamente, contra o fluxo de passageiros, empurrando Carol para o lado. Ele olhava com desconfiança para os comissários, ocupados em instalar os passageiros, ajudando-os a acomodar a bagagem de mão e esclarecendo dúvidas. Percorrendo pelo corredor, o policial verificou os banheiros, abrindo as portas com um pontapé. Ninguém sabia o que estava acontecendo e podia ver a surpresa e até mesmo o medo nos olhos dos passageiros, inclusive nos de Carol.
O sistema de comunicação interna foi ligado e o comandante começou seu discurso:
___ Boa tarde. Senhoras e senhores, pedimos que permaneçam sentados enquanto a polícia presidencial examina os passaportes.
Carol observou novamente o policial, estava acostumada a andar de avião e nunca presenciara policiais armados daquela forma. Ela tinha certeza de que algo estranho estava acontecendo. Foi quando um segundo policial surgiu então no corredor direito. Era mais alto e carregava também uma submetralhadora pendurada no ombro. Ele examinava os passaportes e respondia educadamente as perguntas dos passageiros. Comparado ao agitamento do outro policial, este parecia mais profissional e distinto.
Um dos comissários de bordo olhou para fora pela janela da porta traseira e comentou que haviam parado de embarcar as bagagens. De repente, um dos policiais atravessou em disparada a pequena cozinha dirigindo-se ao outro policial. Rapidamente lhe arrebatou a submetralhadora, acionou a trava de segurança e só então lhe devolveu a arma. Depois de repreendê-lo, encaminhou-se para a cabine da aeronave.
Seguindo cada um deles com os olhos, Carol pôde avistar mais três policiais que conversavam agitados gesticulando uns aos outros. Em seguida, um dos comissários fechou a porta e sussurrou algo a uma das aeromoças. Carol olhou para o relógio, o vôo estava praticamente mais de uma hora atrasado.
Depois de alguns instantes de silêncio total, apareceu outro policial, de estatura média e um pouco calvo, pedindo para que alguns passageiros mudassem de lugar. Eles obedeceram sem dizer nada, desocupando suas fileiras de poltronas em frente à cozinha. Nenhuma explicação foi dada. Mais outro policial entrou na aeronave, com os mesmos uniformes e distintivo. Não estava armado, mas parecia ainda mais super agitado do que qualquer um dos outros. Ao ver aquele sujeito, Carol sentiu seu coração disparar e algo nele a fez gelar dos pés a cabeça, principalmente quando pôde escutar seus gritos dizendo algo numa língua desconhecida. Realmente, algo muito crítico estava acontecendo, ou ainda por acontecer.
Numa fração de segundos a situação se transformou por completo. Todos ficaram perplexos demais para pronunciar uma só palavra. Foi então que numa das frases o sujeito pronunciou um termo especifico que Carol já escutara na televisão quando acontecera um atentado violento as seitas de determinado país. Carol não precisou de mais nenhuma dica para desconfiar que estavam sendo reféns de um grupo armado de terroristas, os comandantes da guerra santa. Gesticulando e gritando com fanatismo próprio, Carol sentia um frio lhe percorrer o corpo. Não podia acreditar que aquilo estava lhe acontecendo. Para todos os cantos que ia, tragédias lhe seguiam.
Um dos outros policiais percorreu o corredor enquanto comunicava na mesma língua do sujeito. Reagindo ao terror estampado no rosto dos passageiros disse com um sorriso sinistro para que não tivessem medo. Carol voltou a olhar para o relógio, deveriam ter decolado a quase duas horas antes. Em seus questionamentos, Carol se perguntava como aqueles sujeitos haviam conseguido violar a segurança apenas utilizando roupas de policiais. Provavelmente ninguém saberia explicar como aqueles homens haviam chegado ali, num dos aeroportos mais seguros do estado. Ao certo, Carol também não conseguia entender o que realmente eles pretendiam escolhendo aquela aeronave, preparada para fazer uma rota tão curta e rápida.
Dentro da cabine, o piloto prosseguia o checklist de vôo quando um dos policiais ordenou para que pusesse o avião em movimento. A pistola em sua mão deixava claro que ele não estava para brincadeiras.
___ Não posso, ainda possuem duas portas abertas – protestou o piloto. - As portas do porão de cargas não podem ser fechadas por dentro.
Aquilo pareceu ser novidade para o terrorista que virou imediatamente para o engenheiro de vôo ordenando que ele fosse fechar as portas.
___ Mas... – ia dizendo o engenheiro quando o terrorista abriu o paletó mostrando as granadas que carregava presas a cintura.
Enquanto o engenheiro se movimentava para cumprir as ordens, um dos policiais apareceu rapidamente no topo dos degraus e fez alguns disparos para cima. Reunindo todas as forças, o engenheiro movia a esteira de cargas e fechava a porta.
___ Coloque imediatamente esse avião em funcionamento – ordenou novamente o cara armado.
___ Ainda precisam rebocar a escada de passageiros, é impossível...
Os seqüestradores também não sabiam que a escada tinha de ser rebocada para trás por um caminhão especial chamado pushback. A escada bloqueava a asa esquerda do avião impedindo assim qualquer tipo de movimento.
___ Entre em contato com quem tira essa droga de escada – ordenou o terrorista.
___ Sim Senhor – disse o piloto pegando o radio localizado entre os dois bancos. – Torre de controle, respondam, aqui...
Seguido aos primeiros chamados, o terrorista pegou o radio assim que percebeu a comunicação estabelecida e falando em outra língua, provavelmente árabe, ia gritando cada vez mais alto, sem dispensar os gestos. Enquanto isso, na traseira da aeronave, um dos policiais continuava a verificar os passaportes quando um dos passageiros o interrompeu. Foi então que Carol desconfiou daquele perfil muito parecido com Manoel. Seria ele?
___ Quem vocês procuram? – perguntou o passageiro mostrando o passaporte, a licença de viagem e a identificação profissional, demonstrando que também era policial.
Nas outras poltronas mais à frente, Carol observou crianças, e mulheres com bebês. Seu olhar novamente parou no homem que conversava com o policial. Realmente aquele era Manoel. Tinha ido atrás de Carol, mas não sabia que ela estava voltando naquele dia e exatamente no mesmo vôo. Na realidade, ele chegara pouco tempo depois que Carol saíra de lá e chateado pelo desencontro, sem sorte ou coincidência, não a encontrou em nenhum momento antes de embarcarem. Dona Flávia dissera-lhe que ela saíra cedo e retornaria no primeiro vôo daquele dia, portanto, jamais desconfiava que Carol pudesse estar ali dentro.
Depois de mais alguns minutos aflitos, os passageiros sentados na parte da frente do avião foram liberados. Mulheres grávidas, crianças e inválidos desceram se reunindo aos passageiros do terceiro ônibus. Dentre eles, Manoel espertamente saiu da aeronave se juntando aos outros felizardos que se viam livre de qualquer violência. Carol não pôde observar o rosto e confirmar suas suspeitas, mas algo muito forte lhe dizia que aquele era Manoel. Num pressentimento, Carol temeu que algo fosse acontecer a ele, por ser um policial.
Depois de Manoel descer, outros dois homens de boa aparência foram liberados. Depois da classe turística ter sido esvaziada, os terroristas passaram para os ocupantes da classe executiva na parte traseira, donde Carol permanecia encolhida e temerosa. Entrando e saindo da cabine de pilotagem, um dos policiais dava avisos em outra língua.
Exatamente quando o sujeito armado aproximava-se donde Carol estava sentada, uma mulher ao seu lado começou a ter crises de asma e incapaz de respirar, agarrou o braço de Carol gritando por socorro histericamente dizendo que não queria morrer. Carol imediatamente pegou um dos cilindros de oxigênio, enquanto o policial mandava os outros passageiros curiosos sentarem-se. O caos aumentava a cada segundo. Aos poucos a doente acalmou-se e pôde respirar de novo.
___ Me desculpem, mas ela pode sentir outra crise – informou Carol vendo o estado da mulher ao seu lado.
___ Saiam já daqui, as duas.
As negociações com a Torre de Controle provavelmente não estavam adiantando e isso irritava ainda mais os terroristas. Foi assim, que um dos policiais tirou dois cartuchos de dinamite e explosivos plásticos do bolso e os uniu com um esparadrapo. Dois outros fios estavam cobertos com fita isolante. Carol e a outra mulher estavam para sair da aeronave quando o outro policial as barrou.
___ Pode ter quantas crises quiser, de um jeito ou outro vai acabar morrendo – informou ele dando uma dinamite para cada uma.
Carol sabia que para fazer explodir a bomba, apenas precisava pôr os fios em contato. Sem permissão para decolar, as ameaças ficavam cada vez mais sérias. As mãos de Carol tremiam pior do que uma gelatina mostrando que o desespero tomava conta de todo seu ser. A voz que se ouvia no alto-falante era inflexível: os terroristas deveriam se render incondicionalmente. As horas passavam e o impasse se mantinha. Em estado de transe, a mulher ao lado de Carol desmaiou e sem saber o que fazer, Carol notou um ligeiro movimento ao lado de fora do avião. Sem tirar o olhar da janela, ela verificou que realmente poderia ser Manoel quem conversava do lado de fora da aeronave.
Um caminhão aproximou-se para retirar a escada móvel de passageiros. Aquela era a ultima chance que Carol teria para sair do avião.
___ Por favor, ela desmaiou, deixe-me sair com ela.
No mesmo instante ouviu-se o som de tiros, primeiro em rápidas rajadas, depois continuamente. Uma senhora gemeu, não se abaixara rápido o bastante e tinha sido atingida.
___ Mantenham-se abaixados! – gritou alguém do lado de fora da aeronave.
Instantaneamente Carol reconheceu a voz de Manoel.
___ Calem-se todos para não atrair a atenção do terrorista – continuou ele advertindo.
Tudo aquilo era um pesadelo. Um ruído ensurdecedor das granadas se fazia do lado de fora. O silvo estridente das balas junto ao som metálico de seu impacto nas laterais do avião transtornava ainda mais o ambiente. No ar, o cheiro acre da pólvora e a poeira sufocante. As luzes apagaram assim que o tiroteio começou. Pontos de luz vermelha cortavam a cabine a uma velocidade terrível. Era irreal. Outra granada explodiu e Carol observou a bomba em sua mão, aquilo poderia explodir a qualquer momento.
Carol, terrivelmente nervosa, sentiu o estomago embrulhar e a cabeça latejar profundamente. Em estado de pânico, viu um homem arrastar o corpo da mulher desfalecida ao seu lado. Tiros esporádicos começaram dentro do avião. Entorpecida por um frio e sentindo terrível gosto de sangue na boca, Carol fez vomito desmaiando também logo em seguida.
Com esforço, Carol abriu os olhos vendo grande quantidade de sangue espalhada por baixo de seus cabelos. Sentindo-se muito mal, ela tornou a fechar os olhos, mantendo-se exaurida de qualquer força.

Quando Carol novamente abriu os olhos, sem precisão de quanto tempo se passara, notou que estava num local completamente diferente, exatamente próxima a cachoeira artificial de um dos jardins da Casa de Esperança Mãe Santíssima. Aquele leve barulho da água, junto ao canto dos passarinhos lhe deixava mais tranqüila. Pelo menos não estava no meio de tiros e gritos pavorosos. Mas o que fazia ali, deitada sobre a grama?
Carol tentou se mexer, mas era impossível.
“O choque foi tanto que pelo visto voltarei a ficar sem andar, será?” – interrogou Carol a si mesma.
Embora houvesse acabado de acordar, Carol sentia uma espécie de sono profundo e conservava-se lúcida e consciente do que acontecera, embora não tivesse definição exata de todos os últimos detalhes ocorridos. Novamente tentou se mexer e sentiu que era como se suas forças estivessem sidas aniquiladas, como se houvesse perdido totalmente sua mobilidade. Tentou gritar socorro ou chamar Dona Flávia, mas impossivelmente não conseguia articular as palavras e escutar sua voz. Junto de seus ouvidos, continuava escutando o barulho da água e num esforço tentou ficar calma.
Naquele momento, Carol escutou passos atrás de si e movendo com dificuldade os olhos, ela verificou, com as vistas embaraçadas, que era Dona Helen.
___ O que faço aqui, não deveria estar num hospital? – disse Carol sentindo finalmente a voz sair normalmente de sua garganta.
___ Acalme-se, fostes baleada e... Trouxeram-lhe para cá.
___ Porque? Quem me trouxe para cá, Manoel? Onde ele está?
___ Não foi ele quem a trouxe, mas não se exalte, descanse.
___ Meu estomago dói muito, é uma dor insuportável.
___ Vai passar, ainda sente os reflexos da ligação com o... – Helen interrompeu ajoelhando-se próximo de Carol. - É por causa dos tiros – continuou ela sem completar o que dizia.
___ Porque não chama um médico? Quem teve a idéia de me trazer para cá, já me examinaram? – perguntou Carol preocupada.
___ Sim, você vai ficar boa logo, muito logo.
___ Não entendo, sinceramente ainda não entendi o que faço aqui.
___ Não gostou desse jardim?
___ Sim, claro, eu amei esse lugar, mas não acho que seja apropriado para...
___ Eu sou médica, esqueceu-se disso?
___ É verdade, acho que minha memória está falhando. E Dona Flávia? Onde ela está?
___ Cuidando das crianças.
___ Sim, as crianças, claro, como pude me esquecer delas também – surpreendeu-se Carol. – Estranho, minha memória está falhando. Estou com medo que...
___ Tente não ter medo, já lhe disse que tudo vai ficar bem – disse Dona Helen passando a mão nos cabelos de Carol.
___ E aquela moça que está vindo? Quem é ela?
___ Ela vai ficar contigo.
___ Mas quem é ela? – tornou a perguntar Carol. – Pareço conhecê-la.
___ Ela se chama Alva, veio nos ajudar faz seis anos.
___ Não havia conhecido-a.
___ Bem, ela é um doce de pessoa e vai lhe dar toda a assistência que precisar.
___ Mas e Manuel? Ele precisa saber que estou aqui para avisar minhas irmãs, vai que morro de repente e...
___ Olá, como está nossa paciente? – perguntou Alva interrompendo Carol.
Num gesto sublime e de infinita delicadeza, Alva colocou a mão sobre o ombro de Helen e com um aceno de cabeça dispensou-a dizendo que esta já podia ir.
___ Relaxe, você precisa de muito repouso, mas saiba que tudo vai ficar bem. Vou lhe fazer um curativo nos ferimentos. Ainda bem que Helen já estancou seu sangue – disse Alva retirando uns panos brancos do bolso e um saquinho com algodão.
___ Eu perdi muito sangue?
___ Não se preocupe com isso. Olhe para a cachoeira e mentalize em coisas boas, esqueça-se dos últimos momentos.
___ Não consigo, aquelas cenas horríveis não saem de minha mente – respondeu Carol deixando uma lágrima escorrer dos olhos. – Não agüento mais, ultimamente tenho sido perseguida...
___ Não diga nada, por favor – pediu Alva. – Isso vai acabar me desconcentrando.
___ Queria tanto que Rosalinda estivesse aqui comigo.
___ Quem é Rosalinda?
___ Minha irmã, na verdade sempre a tive como uma mãe por ser mais velha.
___ E sua mãe? – perguntou Alva enquanto remexia no estomago perfurado de Carol.
___ Não sei dela.
___ Se esqueceu de sua mãe?
___ Ai, está doendo muito – gritou Carol sem responder a pergunta.
___ Me desculpe, vou tirar a bala e colocar as ervas.
___ Ervas?
___ Sim.
___ Vai tirar a bala com a mão, sem me dar anestesia?
___ Me fale de sua mãe e deixe que sei o que estou fazendo, garanto que não vai doer muito.
___ Ai, você está...
___ Prontinho – disse Alva interrompendo os gritos de Carol enquanto levantava nas mãos a bala retirada.
___ Como fez isso? – impressionou Carol.
___ E sua mãe? – insistiu Alva.
___ Morreu quando eu e minha irmã Carolina nascemos. Conheci-a por fotos e tudo que sei sobre ela foi através do livro que ela escreveu.
___ Ela era escritora?
___ Sim, quero dizer, mais ou menos. A verdadeira escritora da família foi minha avó.
___ E seu pai?
___ Faleceu, mas não quero falar disso agora.
___ Onde acha que seus pais estão agora?
___ Que pergunta tola, como poderia saber?
___ Use sua imaginação.
___ Não consigo, continuo vendo as cenas do que aconteceu repassarem pela minha mente.
___ Assim fica difícil, porque não se esforça um pouco para pensar em algo diferente? Não sabe que somos comandados por vontade e pensamento?
___ Está doendo muito – resmungou Carol. – Porque não me leva para um hospital?
___ Você é uma jovem tão bonita – comentou Alva carinhosamente acariciando o queixo de Carol.
___ O que você tem? – estranhou Carol notando que Alva estava quase chorando.
___ Nada, é a primeira vez que trato de uma mulher ferida assim como você e estou emocionada – disfarçou Alva.
___ Acha que vou morrer?
___ Queria ter uma filha tão bela quanto você.
___ Para com isso, não sou tão bonita assim, sempre achei Rosalinda bem mais...
___ A sua beleza me toca a alma.
___ Vou passar a noite no relento, aqui nesse jardim? – perguntou Carol não dando atenção para os elogios de Alva.
___ Sim, aqui é mais calmo do que lá dentro, as crianças podem alterar seu estado psicológico.
___ Mas aqui deve fazer frio.
___ Posso lhe trazer cobertas caso sinta frio. Quando costumo ficar sem sono, fico andando pelos jardins e não sabe o quanto eles me fazem bem.
___ Dona Helen me disse que veio ajudar a tratar das crianças fazem oito anos.
___ Seis quer dizer?
___ Sim, isso mesmo. Não sei porque, pensei uma coisa e falei outra.
___ Você está apenas confusa, tente se relaxar, o pior já passou. Vou fazer contigo uma técnica nova. Respire fundo, sinta como se o oxigênio fosse lilás, uma cor bem suave. Agora o sinta sair de você com todas as impurezas, num roxo quase preto. Veja só, consegue ver?
___ Sim, o que é isso – observou Carol assustada com uma fumaça leve que saia de suas narinas.
___ É energia condensada e representada dessa cor pelo seu pensamento.
___ Como?
___ Veja só, está indo para as árvores e ao contato com o verde fica transparente sumindo novamente no ambiente.
___ E aquela luz rosa ali, você consegue ver?
___ Não, aonde?
___ Me tira daqui, só posso estar ficando doida, acho que estou tendo delírios.
___ É, você está um pouco febril.
___ Não está vendo aquela luz rosa?
___ Não, vejo apenas uma borboleta.
___ Borboleta? – estranhou Carol.
___ É, não é uma borboleta?
___ Porque minhas vistas estão embaçadas?
___ Você está muito agitada, já cansei de te recomendar que fique calma.
___ Está bem, estou tentando.
___ Tente dormir.
___ Estou cansada, preocupada, com dores, mas não tenho sono.
___ Feche os olhos, vou lhe fazer uma massagem facial que vai lhe ajudar. Faço isso todas as noites em algumas crianças que tem insônia.
Delicadamente, Alva percorria os dedos pelo rosto delicado que colocara sobre seu colo. Sem perceber, a sonolência foi tomando conta dos sentidos de Carol.
Carol precisava de muito descanso, já que as revelações e acontecimentos não lhe dariam brecha de sossego nenhum. O que estava por suceder ia ser surpreendente para ela.

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